Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XXII 

Google Maps

Viagem da “Real Escolta” – IX 

Descrevem-se as Cachoeiras do Rio da Madeira Principiadas a passar no Dia 17.12.1749.  

PRIMEIRA CACHOEIRA (Santo Antônio) 

Chegando, no dia 17.12.1749, pelas 16h00, à vizinhança da Cachoeira chamada pelos índios Aroaya, e pelos Portugueses de S. João ([1]), se mandaram os índios mais experimentados em uma canoa a examinar qual dos canais, que fazia o Rio por entre morros de pedras, seria mais capaz de se poder passar com menos perigo: e pela informação que deram, se averiguou ser conveniente puxar as canoas pela margem esquerda e não pela direita, porque pelo meio ela impraticável; e da mesma sorte pela parte direita se fazia igualmente perigoso, em razão de ter já o Rio principiado a encher, e descarregar por aquela margem maior peso de correnteza do que pela esquerda: concordado este parecer se empreendeu no dia seguinte a passagem, que foi com trabalho, mas feliz sucesso.

Desde que se entrou a navegar o Rio da Madeira a este lugar da primeira Cachoeira, se achou serem ambas as margens alagadiças, que nos meses de cheia se inundam todos os anos em distância de uma e duas léguas para o centro de cada parte conforme a quantidade de água que chove nos invernos, que uns são mais copiosos do que outros, donde resulta a imensidade de Lagos, que na vazante do Rio ficam por ambas as margens, de sorte que sendo raras as partes em que a terra se levanta mais do ordinário [que nunca chega a mostrar uma légua de ribanceira alta] sempre se acham estas pequenas distâncias cercadas de Lagos, em forma que mais parecem ilhas do que terra firme; porém indo-se avizinhando à primeira Cachoeira já a ribanceira alta corresponde com o centro, e não dá lugar a inundações, e nesta parte principiam as serras da cordilheira geral a quem navega Rio acima, e finalizam aos que rodam para baixo. E estas mesmas serras são as que se haviam avistado. Essas serras se dilatam por uma e outra margem a vários rumos, e por entre elas faz caminho o Rio Madeira, e como sejam compostas de morraria de pedra, assim mesmo oferecem as suas extremidades a correnteza do Rio, de maneira que na primeira Cachoeira se observou fazer a terra uma pequena enseada da parte Oriental composta de morros de pedras ([2]), os quais atravessando o Rio formam nele duas Ilhas, uma delas maior e com arvoredo alto em distância de 200 braças ([3]) da terra firme da banda esquerda, e outra menor e quase escalvada ([4]), que se opõe ao meio da correnteza do Rio. Da parte Ocidental principia uma dilatada enseada, e na ponta oposta à Oriental há semelhante pedraria da mesma qualidade e postura ([5]) que a já referida.

Por entre as duas Ilhas e as duas pomas de terra firme, rompe a correnteza do Rio oferecendo à vista um espetáculo igualmente formidável e alegre; porque atendendo à valentia, com que a água para atropelar os impedimentos que se lhe opõem em parte, se precipita dos penedos, e saindo por entre outros já despedaçados vai formando em diversos giros várias fenômenos em rodamoinhos ([6]) e fervedouros, até sonegar em remansos mui quietos nas enseadas, em cuja tranquilidade se está debuxando o arvoredo sempre viçoso das margens. Tudo junto dá assunto à contemplação para o recreio; porém oferece aos viajantes horríveis objetos para o temor. Nestes termos, três são os canais que se acham nessa Cachoeira: pelo do meio ainda ninguém passou, nem pode sem acabar infalivelmente na empresa; pelo da parte direita, em tempo de seca, vai qualquer canoa sem perigo; porém, em tomando o Rio as primeiras enchentes, não resta mais que o canal da parte esquerda, que em tempo seco não tem água, e ainda na força de roda a cheia é por onde melhor se pode navegar. No tempo presente, como era princípio das primeiras águas, já neste canal havia a que bastava para se puxarem as canoas; o que se executou no dia 18.12.1749, depois de celebrar-se Missa em obséquio da Senhora do Ó, cuja festividade celebrava a Igreja.

Dois puxadouros se ofereciam pela parte referida ambos por entre pedras, porém com a diferença que, pelo primeiro, podiam ir as canoas carregadas levadas à sirga com grande cuidado; o que se venceu em 4 horas de trabalho: e chegando a um remanso junto ao outro puxadouro, se descarregaram as embarcações, e conduzidas as cargas por cima de imensidade de pedraria em distância de 200 braças ([7]), se deixaram em parte conveniente, aonde já sem perigo se havia de embarcar.

Feito este serviço, se entrou na diligência de transportar as canoas pelo último resto do canal, que era a quebrada de um morro, por onde saía água em altura de dois palmos com pouca correnteza, e teria de distância 30 braças ([8]); para o que foi preciso fazer estivas de madeira para salvar as canoas de alguma ruína, que lhes podia suceder nas pontas das pedras, que ainda não estavam cobertas. Com esta prevenção se puxaram as canoas com bom sucesso, e ficaram por toda a tarde transportadas a lugar seguro já livre dos perigos deste primeiro impedimento, e cada uma com a carga que lhe pertencia para no dia seguinte fazerem viagem.

A 19.12.1749, já dia claro, se principiou viagem pelo remanso que havia entre o resto da Ilha e a terra firme da parte esquerda no rumo de Oesnoroeste; e em menos de meia hora costeando a Oeste se avistou a Cachoeira pela parte de cima, em que mostrava os primeiros princípios da água que cabia entre duas Ilhas e o Canal da parte direita, que na verdade fazia muito mais funesta representação do que a já referida. Costeando a mesma margem esquerda, se acharam a uma hora de caminho, indo no rumo de OSO, encostados à terra, 2 morros de pedra, um dos quais formava uma Ilha, e dela se prolongavam pedras até meio Rio, aonde fazia bastante correnteza, que se venceu a remo […]. Desta parte, se atravessou à direita, costeando a qual se topou ainda à vista do morro antecedente outro mui semelhante, menos em formar Ilha, porém maior correnteza, que se não pode vadear se não a corda e com algum perigo: neste lugar havia na terra firme muitas árvores de cacau frutífero e já quase sazonado, e muito castanhal, e outras árvores de frutas do mato, que os índios comem.

Vencido este passo, se principiou a ouvir o estrondo das águas da célebre Cachoeira chamada Gamon ([9]), e costeando a mesma parte direita nos rumos do Sudoeste e Sul, levando já por guia o ruído das referidas águas se avistou na volta do SSE aquele promontório de água, que se despenhava por toda a largura do Rio, e no mesmo rumo chegamos a ela pela 16h00: e em 6 horas de caminho se andaram 3 léguas desde a 1ª Cachoeira até esta.

SEGUNDA CACHOEIRA (Salto do Teotônio)  

Da parte Oriental e Ocidental forma o Rio duas enseadas correspondendo uma a outra, de sorte que parece se fecha o Rio em um círculo igualando as pontas de cima fronteiras uma a outra no rumo de Noroeste e Sueste. Ambas estas pontas se formam cada uma de um morro de pedra sólida, e se comunicam ambas, fazendo como uma muralha desmantelada, por cujas ruínas, precipitando-se a água do Rio com furiosa violência, resulta um espantoso estrondo, que a haver nas suas margens povoações, seria provável padecerem os seus habitantes à surdez que dizem sucede aos que vivem junto das catadupas do Nilo. Neste impedimento que acha o Rio e rompe com tão furioso estrépito, não há caminho algum para os homens vencerem este passo por canais ou remansos; porque estes não os há junto às pedras, e aqueles se não percebem porque, entre as quebradas dos rochedos, tudo são fervedouros de água, que apenas se chegou a eles qualquer tronco por corpulento que seja, em um instante o sorve, e com brevidade o expele e logo torna a sumir, até que, daí a tempo, o lança em redemoinhos de água, em que anda detido em giros por muitos dias até haver maior enchente, que lhe faça caminho para sair daquela represália. De uma a outra ponta, poderá haver de Longitude e de Latitude de água precipitada 250 braças ([10]).

A altura da queda em partes mostrava nesta ocasião em que já crescia o Rio, ser no mais alto até 16 braças ([11]) fazendo de longe a estimativa. Como a furiosa correnteza que despede das quedas que dão as águas pelos rochedos, encosta à parte direita do Rio, porque topa com uma Ilha e Praia que, no meio da enseada, se lhe opõe, e dá passagem ao maior peso da água entre a terra da mesma parte direita e a Ilha, tomaram as canoas o caminho da margem esquerda, e portaram em uma enseada pequena, donde como era inútil a diligência de explorar canais, se descarregaram de tudo e, depois de transportados os mantimentos e trastes por terra, rodeando o morro por espaço de 600 braças ([12]), se puxaram pelo mesmo caminho as canoas por terra sobre estiva de madeiros, em cujo trabalho se gastou dois dias ([13]); e porque algumas canoas se desconjuntaram no puxadouro, em que havia uma elevação de terra donde foi preciso maior impulso para as mover, se gastou outro dia ([14]) para as refazer do dano, dando o mato vizinho estopa em um pau chamado Jacepocaia, e se lhe tira entre a casca e tronco, e só com o pequeno benefício de desfiar aquela como membrana e enxugar o desfiado fica capaz do ministério a que se a aplica, e de outro pau chamado Cumaá se tirou o suco que serviu para brear ([15]), e é ainda melhor material que o mesmo breu para estancar as costuras, que se calafetaram com a referida estopa.

A terra contígua ao morro da parte direita, que lança a penedia de que se forma a Cachoeira, é de elevação de serra, e assim vai correndo para o centro, e a extremidade dela acaba na ponta do Noroeste em que fecha a Cachoeira. Na ribanceira da enseada da parte direita antes e depois de passada a Cachoeira, há uma qualidade de terra de tão extravagante qualidade, que dela unicamente se sustentam os animais quadrúpedes e voláteis ([16]) que habitam por aqueles bosques, de sorte que as Antas, Javalis, […] Papagaios, Araras, Mutuns, e outros desta espécie, que se apanham para sustento dos viajantes, não se lhes acha nos buxos e papos outra coisa que manifeste a sua nutrição mais do que a referida terra, e nela se acham comendo muitas vezes os animais e já é conhecida esta qualidade de terra pelas covas que deixam os que dela se mantêm. O gosto desta qualidade de caça é mais insípido do que ordinariamente tem a que se sustenta de plantas e frutas do mato. O peixe, desde que se entrou nas Cachoeiras, é de muito melhor sabor do que aquele que se pescava antes de chegar a este Distrito. Somente a água é ainda mais barrenta pelas Cachoeiras do que antes de chegar a elas; e para se beber sem escrúpulo de que os intestinos se reformem de barro, é preciso nas vasilhas em que se toma água lançar-lhe uma porção de pedra-ume ([17]), a qual tem a virtude de fazer precipitar todo o lodo por sutilíssimo que seja, e deixa a água clara, a qual assim bebida é de muito bom gosto, porém sempre lhe fica a qualidade de pouco diurética. Acha-se esta Cachoeira na altura de 09°40’ ([18]) ao Sul da Equinocial, e não se tomou a altura na primeira Cachoeira por não haver horizonte capaz para se fazer observação com o quadrante.

A 23.12.1749, se principiou viagem costeando a parte esquerda no rumo de Sudoeste, e nele com pouco mais de uma hora de caminho, se achou haver uma Cachoeira já quase cobertas as pedras de que se compõe; razão por que foi fácil o vadeá-la, e se acharam canais à parte direita e esquerda, por onde com pouco trabalho se puxaram as canoas à corda. Da margem esquerda do Rio sai, neste lugar, uma ponta de pedra, que se dilata formando vários morros até atravessar o Rio à parte direita que tem três Ilhetas ([19]) formadas da mesma pedra, que tem bastante arvoredo silvestre e, por entre estas Ilhas e a terra firme, se navegou na forma referida por espaço de meia hora no rumo do Sul e Susueste; e indo já a remo, costeando a enseada, se tornou no Sul e Susudoeste e, no fim da enseada, se acha uma Ilha ([20]) cercada de pedras em partes de figura quase redonda no meio do Rio, e oferece passagem por entre ela e a terra firme de uma e outra parte sem correnteza nem trabalho.

Passada a Ilha, se continuou viagem virando a ponta da enseada ao rumo de Oessudoeste, e costeando a Oeste se achou ser a ribanceira, que principiava na referida ponta, uma parede de pedra talhada a prumo de bastante altura, e logo uma correnteza grande, procedida de umas pedras ([21]), que da mesma margem saíam até o meio do Rio, e se passou sirgando a corda com pouco trabalho. Seguindo o mesmo rumo de Oeste, e passando a sudoeste costeando a mesma parte direita, se topou com uma Cachoeira ([22]) semelhante à antecedente, composta de várias Ilhetas rodeadas de pedras, que se dilatavam de uma a outra parte do Rio quase Noroeste e Sueste; e como a água cobria já grande parte das pedras, nos deu passagem entre a terra firme da parte direita e uma Ilheta, sirgando com pouco trabalho, e o mesmo sucedeu às outras canoas da conserva que tomaram à parte esquerda; com que se veio no conhecimento de que tanto a presente Cachoeira e a antecedente tem passagem com facilidade por uma e outra parte do Rio entre a sua ribanceira e os Penedos. Daqui se foi costeando no mesmo rumo até uma enseada pequena, em que já noite portaram as canoas da mesma parte direita, e em 9 horas de caminho se andara três léguas. (G. FONSECA, 1826) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

FONSECA, J.. Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume 4, n° 1, 1826.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Aroaya, e pelos Portugueses de S. João: Santo Antônio ‒ 08°48’05,9” S / 63°57’06,7” O.

[2]    Morros de pedras: Corredeira dos Macacos ‒ 08°50’39,5” S / 64°00’56,31” O.

[3]    200 braças: 440 m.

[4] Escalvada: destituída de vegetação.

[5]    Positura: localização.

[6]    Rodamoinhos: redemoinho.

[7]    200 braças: 440 m.

[8]    30 braças: 66 m.

[9]    Gamon: Teotônio ‒ 08°51’31,3” S / 64°03’51,9” O.

[10]  250 braças: 550 m.

[11]  16 braças: 35,2 m.

[12]  600 braças: 1.320 m.

[13]  Dois dias: 20 e 21.12.1749.

[14]  Outro dia: 22.12.1749.

[15]  Brear: calafetar com breu.

[16]  Gênesis VII, 13-14: Naquele mesmo dia, Noé entrou na arca com seus filhos Sem, Cam e Jafé, e com eles sua mulher e as três mulheres dos seus filhos. Juntamente com eles, entraram os animais selvagens, segundo as suas espécies, os animais domésticos, segundo as suas espécies, os répteis que rastejam pela terra, segundo as suas espécies, e todos os animais voláteis, todas as aves, tudo quanto possui asas, segundo as suas espécies.      ‒   Animais voláteis: uma das cinco classes em que se dividiam os vertebrados, de sangue quente, a qual compreendia animais voláteis, bípedes, ovíparos, de corpo coberto de penas, bico córneo e sem dentes.

[17]  Pedra-ume: sulfato de alumina e potassa.

[18]  09°40’: 08°51’ S.

[19]  Ilhetas: 08°53’23,5” S / 64°05’20,2” O.

[20]  Ilha: 08°55’13,3” S / 64°05’21” O.

[21]  Pedras: 08°58’41,3” S / 64°06’16,3” O.

[22]  Cachoeira: 08°59’41,7” S / 64°08’34,8” O.