Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XIX
Viagem da “Real Escolta” – VI
Dia 18.10.1749. Neste dia, se principiou viagem costeando a referida Ilha pelo braço maior do Rio entre ela e a margem direita, e não se venceu mais neste dia de caminho do que duas enseadas, em que se andara três léguas por causa da grande correnteza. O rumo principal foi Sudoeste. Em uma Praia que saía da ponta da Ilha ([1]) em que ela finalizou, portaram as canoas, e na mesma Praia se conservaram no dia 19.
Como já por este Distrito eram grandes as correntezas, e mui frequentes os baixios, que tudo dificultava a navegação de canoas grandes, se gastou todo o dia 19.10.1749 em explorar as matas da mesma Ilha e da terra da parte Oriental, na diligência de se achar madeiros capazes de fabricar embarcações ligeiras para nelas se prosseguir viagem, tanto para se vencerem os obstáculos referidos, como para o trânsito das Cachoeiras, para cujo trabalhoso passo se ia avizinhando a derrota.
Não se acharam na dita Ilha troncos com capacidade da obra que se projetava, e somente na margem Oriental de terra firme se acharam os precisos e próprios para o intento, porém com o desconto de ser preciso formar o Arraial para a fatura das canoas no mesmo continente, em que de necessidade havia maior risco dos ataques do gentio, do que poderia suceder na Ilha, aonde não costumam invadir os viajantes, por não terem retiro fácil depois de cometida a hostilidade, o que não lhes sucede em terra firme, aonde mais a seu salvo acometem favorecidos do terreno e dos bosques, em que se embrenham, o que depois se verificou por experiência.
Não houve outro arbítrio se não fazer alojamento na terra da margem Oriental do Rio, cuja planície por então estava desalagada, e para efeito de se entrar à operação das novas canoas passaram as grandes no dia vinte ao amanhecer ao sítio que na parte referida se achou mais próprio para formar alojamento, para o qual se reservou parte suficiente dos índios, e a outra se destinou ao corte dos troncos que eram precisos, para deles se fabricarem as novas embarcações, e com felicidade se acharam os tais madeiros na vizinhança do alojamento, e de mais desta comodidade se encontrou também a abundância conveniente de víveres para o sustento, assim de caça como de peixe; e só de um Lago ([2]) que se descobriu perto do Arraial, houve uma tal fertilidade de tartarugas que, além de ministrarem a maior parte do sustento a toda a escolta, ainda dele se tiraram, na despedida do sítio, as que bastaram para fornecimento de muitos dias de viagem.
Construído no dia referido e 21.10.1749 o Arraial, cingido de uma trincheira de estacarias, e faxina para reparo suficiente de qualquer invasão dos bárbaros, se guarnecia de noite aquela circunferência com sentinelas, que eram três, para fazerem sinal de qualquer movimento que se oferecesse, observando-se também o estilo militar de rondarem os Oficiais da escolta as ditas sentinelas para evitar algum descuido.
Doze dias ([3]) se passaram de alojamento sem neles haver sinal de gentio, até que, na madrugada de 03.11.1749, estando de fora da trincheira uma porção de índios abrindo o casco da canoa a fogo [serviço que só àquela hora é proveitoso, em razão de não haver vento, que é mui prejudicial à obra].
De repente se sentiram assaltados de gentio Mura que, favorecidos do escuro e espessura do mato, dispararam quantidade de flechas sobre os ditos índios, que se achavam com suas armas, e escoltados pelo Sargento-mor, Comandante, e Ajudante da Tropa. Nesta avançada, não houve ofensa na nossa parte, antes um dos nossos índios teve o acordo de poder empregar uma flecha em um dos inimigos, que avistou em parte que a luz do fogo lho fez perceber. Tocou-se a rebate, e posto todo o Arraial em armas [ficando guarda conveniente às canoas que estiavam no Porto] sucedeu que, ao sair um índio do seu alojamento acudindo ao rebate, o apanhou uma flecha por entre o osso da fúrcula ([4]) e o pescoço da parte esquerda, que logo o deixou sem vida. Botou-se um cordão de gente por fora à trincheira da parte acometida, e outro pelo mato com desígnio de se apanharem ao romper do dia em cerco onde fosse castigado o seu atrevimento; não teve efeito o projeto, porque os Muras, carregando o seu ferido que dava grandes brados, se acharam longe daquele sítio quando aclarou o dia.
Não houve lugar, na ocasião do ataque, de ter efeito o uso das espingardas, porque se não podia ver onde fazer pontaria; caíam as flechas, porém não se distinguia o vulto que as impelia; cessou ainda assim a flecharia, depois que, para aquela parte donde saíam, se disparou uma descarga de quatro armas.
Para se continuar o serviço da fábrica das canoas, foi preciso dobrar as sentinelas na trincheira e, quando era necessário ir ao mato buscar cipó, folhas, estopa, e outros materiais, sempre os índios iam escoltados, e só em uma ocasião apareceram os Muras em um corte de pau, porém, como foram vistos, e atenderam a disposição de armas, usaram da sua covardia retirando-se sem obrarem ação alguma.
Somente de noite rodeavam ao largo o Arraial, e não se resolveram mais chegar perto da trincheira, sem embargo que das portas para dentro, é que se abriram as mais canoas a fogo. Como aos índios trabalhadores era já mui custoso de dia lavraram madeira e de noite fazer sentinela, pareceu conveniente, depois de estarem cinco cascos de canoas abertos, que eram os precisos, mudar o Arraial para a parte mais acomodada, em que os desvelos noturnos nos fossem de menos trabalho.
Tomada esta resolução, se abandonou aquele lugar no dia 19.11.1749 no qual, com quatro horas de caminho Rio acima, se elegeu uma Ilha pequena com sua Praia onde, no dia 20.11.1749, se armaram somente os estaleiros em que se acabassem as cinco canoas, o que se efetuou sem a menor perturbação do gentio até o dia 01.12.1749, em que carregando-se as novas embarcações, se expediram no dia seguinte ([5]), de manhã as canoas grandes para baixo, preparadas de mantimentos, armas e lenha, para evitar o portar em terra a cortá-la, com ordem os soldados que as governavam de portarem na Aldeia dos Abacaxis, e aí esperarem a volta da escolta.
Esta ([6]), no dia 03.12.1749, pelas 08h00, principiou sua derrota Rio acima, no rumo de Oeste, e logo a Sudoeste rumo geral. Costeou-se à parte esquerda, que quase toda a ribanceira é de terra caída, e à parte direita deságua um Lago mui abundante de Peixe, o qual, ou seja guisado com temperos ou assado, não tem sabor a coisa alguma, razão por que os índios, no idioma da sua língua geral, lhe chamam Lago de Jerupari-pirá, que no Português quer dizer: Lago que tem peixe do Diabo. Não se sabe atribuir ao certo de que procede aquela insipidez tão extraordinária. Sendo já noite portaram as canoas em uma Ilha chamada de Santo Antônio ([7]): e em oito horas de caminho se andara três léguas nos rumos já referidos.
Em 04.12.1749, se prosseguiu viagem costeando à esquerda uma grande enseada de terra alagada, sendo a outra terra da margem direita de barreiras vermelhas.
No fim da dita enseada, deságua um Lago chamado Pirá Jacaré ([8]), defronte de cuja boca principia uma Ilha encostada à parte direita, que se dilatava até a meia enseada que se seguia.
Defronte da ponta desta enseada, havia uma restinga de pedras, em que havia grandíssima correnteza, passada a qual, sendo já de noite, portaram as canoas na ribanceira da parte esquerda com 13 horas de caminho, em que se andara 4 léguas nos rumos do Sul a que se principiou, e logo a maior parte do caminho a Sudoeste, e se portou no de Oeste ([9]).
A 05.12.1749, se continuou viagem costeando à esquerda no rumo de Sudoeste e Sul, terra alagadiça; defronte desaguavam dois Lagos de terra que não alagava. Passada a enseada, se seguiam três Ilhas lançadas a rumo de Sueste ao qual se navegou pelos que fazia o Rio e, passando a enseada, se costeou à direita, e entrou já de noite por um canal entre a terra e uma Ilha, e se portou na ribanceira às 8 horas da noite, e em 15 horas de caminho, se andara cinco léguas.
No dia 06.12.1749, que sucedeu ser mui tempestuoso de chuva e vento, se continuou a navegar o canal referido nos rumos de Sudoeste e Sul, seguindo-se mais duas Ilhas à antecedente, e saindo a enseada, costeando à direita, foi visto um gentio na ribanceira encarando o arco para disparar flecha sobre a gente de uma canoa; porém andando mais destra a espingarda de um soldado em ser disparada por ele, não se sabe ao certo se foi ou não chumbado, porém é sem dúvida que não foi mais visto.
Seguiu-se logo na mesma ribanceira uma restinga de pedras, em que, com algum trabalho, foi preciso sirgar ([10]) as canoas à corda, e acabada esta operação por ser quase noite, portaram as canoas em uma Praia de Ilha que havia no meio do Rio. Neste dia, em 6 horas de caminho, se andara nos ditos remos 2 léguas.
Dia 07.12.1749. Prosseguiu-se viagem costeando à esquerda no rumo de Susudoeste e Sul, e da margem direita deságua defronte da ponta da enseada um Lago, e logo mais adiante um Ribeiro de pouca entidade, e a este se seguia outro de pouca entidade também e, antes de chegar umas barreiras vermelhas, desaguavam dois Lagos também insignificantes. Passadas as ditas barreiras, fazia barra um Riacho chamado Marani ([11]), que teria de Boca [ao parecer] 50 braças ([12]), e a sua direção mostrava ser a Oeste.
Continuando a derrota da parte esquerda no rumo de Lessueste, se achou a terra da ribanceira mais alta ([13]), e à vista da água várias vigias [à maneira de guaritas] cobertas de palha, em que o gentio costuma registrar o que passa pelo Rio, e quando descobrem as suas praias, para eles saírem a pescar; no fim desta margem mais alta deságua um Lago chamado das Piranhas.
Deste lugar, já sobre a tarde, se avistaram umas Ilhas ([14]), por entre as quais se dividia o Rio em vários canais com uma tal disposição, a verdura do arvoredo representada na tranquilidade das águas oferecia aos olhos o mais agradável objeto que até esse passo se havia logrado.
Já de noite, portaram as canoas na Praia de uma das Ilhas ([15]); com doze horas de caminho, em que se andara cinco léguas. (G. FONSECA, 1826) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 23.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
FONSECA, J.. Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume 4, n° 1, 1826.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Ilha: 06°36’33,7” S / 62°19’38,4” O.
[2] Lago: Tapuru – 06°34’55,7” S / 62°17’49,7” O.
[3] Doze dias: 22.10.1749 a 03.11.1749.
[4] Fúrcula: clavícula.
[5] Dia seguinte: 02.12.1749.
[6] Esta: esta escolta.
[7] Santo Antônio: 06°46’31,4” S / 62°25’27,7” O.
[8] Pirá Jacaré: Carapanatuba.
[9] No de Oeste: 07°00’35,2” S / 62°48’03,1” O.
[10] Sirgar: puxar.
[11] Marani: Lago Puruzinho – 07°23’14,9” S / 63°00’01,8” O.
[12] 50 braças: 110 m.
[13] Terra da ribanceira mais alta: Humaitá.
[14] Ilhas: Salomão e Fausto.
[15] Ilhas: Ilha Fausto – 07°39’25,6” S / 62°56’18,2” O.
Deixe um comentário