A professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Nauíra Zanardo Zanin, tem pesquisado a arquitetura das escolas indígenas, junto a comunidades das regiões sul e sudeste do Brasil, como lugares de identificação.

Hoje, a arquiteta faz parte de uma rede latino-americana que aborda o tema, inclusive, para servir como ferramenta de diálogo com os povos indígenas: “comecei a entender que a arquitetura escolar também educa. O espaço não é neutro, ele educa também”, possibilitando “a continuidade, o fortalecimento e a valorização dos saberes que são próprios deles”, comenta ela.

Em um período de publicação da nova encíclica do Papa Francisco, a “Fratelli tutti”, sobre a importância da fraternidade dentro e entre as comunidades, e em pleno Dia Mundial do Professor que motiva a “ensinar com liberdade”, uma arquiteta do interior do Rio Grande do Sul tem apostado no diálogo entre a sociedade e os povos indígenas através da edificação das escolas. Nauíra Zanardo Zanin acredita que “a alfabetização tem um papel fundamental nesse diálogo e na possibilidade dos indígenas buscarem os seus direitos para que a sociedade compreenda e respeite a forma de vida e o modo de educar” dos povos originários.

A pesquisadora Nauíra, em uma das suas visitas a aldeias

A pesquisadora Nauíra, em uma das suas visitas a aldeias

As referências e inspirações

A professora adjunta da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) tem mestrado em Engenharia Civil (UFRGS) e doutorado em Arquitetura e Urbanismo (UFSC). Em setembro, Nauíra fez uma exposição virtual – e em nível internacional – durante o III Encontro de Arquitetura Indígena nas Américas, promovido pela Universidade Nacional de Misiones, da Argentina, e da Universidade Autônoma de Yucatán, do México. A imersão no campo de ambientes escolares para a educação indígena começou no mestrado, quando iniciou a estudar e a aproximar o tema da “arquitetura junto aos povos indígenas, as relações entre construção autóctone, processo de projeto e apropriação de ambientes escolares”. Entre as inspirações da pesquisadora estava um jesuíta e antropólogo espanhol, falecido em 2019, no Paraguai:

“Foi organizado um seminário nas Missões, na época que eu estava começando a pesquisa de mestrado, e convidaram o Bartomeu Meliá, um padre lá do Paraguai, mas que trabalhou muitos anos muito próximo das comunidades Guarani e tem livros importantíssimos que são referências valiosas para quem busca conhecer esse povo indígena.”

Durante os longos anos de estudo, Nauíra chegou a visitar mais de 20 aldeias e acampamentos de beira de estrada para conhecer esse novo mundo em que são utilizados materiais nativos e os próprios saberes como elementos simbólicos, culturais e até espirituais para construir os espaços escolares dentro das comunidades. Existe inclusive uma relação entre a escolha dos materiais, já que podem ter “propriedades para proteger o espírito, que geralmente são madeiras nativas, como dos coqueiros jerivá e das árvores guajuvira, cedro e louro”. Além disso, comenta a arquiteta e urbanista (UFRGS), outros elementos podem ganhar atribuições de significado pelos povos indígenas, que vão além da edificação em si. O processo construtivo, por exemplo, acontece em mutirão, uns ajudando os outros, entre parentes e até com as crianças que participam, se divertindo:

“E é isso que também me fez ficar pensando: que coisa as crianças aprendiam? Elas aprendiam a construir desde pequenos. Isso já é parte da educação deles e, nós, enquanto crianças não indígenas… Bom, a gente brinca de casinha também, mas será que a gente tem oportunidade de brincar de construir uma casa e aprender com isso e compartilhar isso com as pessoas com quem a gente vive?  E saber como colher, quando colher o material? São muitos conhecimentos que eles vão aprendendo na convivência com a comunidade.”

A Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares de Estrela, RS

A Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Manoel Soares de Estrela, RS

A arquitetura escolar também educa

Nauíra também buscou referências em profissionais e pesquisadores de Pedagogia, Psicologia e Políticas Públicas sobre o espaço escolar em si:

“Aí comecei a entender que a arquitetura escolar também educa. O espaço escolar não é neutro, ele educa também.”

Diferente da arquitetura convencional inserida no processo educativo no Brasil, “desvinculada de uma vida que acontece lá fora” e questionada por especialistas desde a década de 30, a relação com o espaço externo que acontece com as escolas dentro das comunidades indígenas é muito pouco pesquisada. Há estudos relacionados à pedagogia e à história nesse campo, mas não na área da arquitetura e, por isso, da participação de Nauíra nessa rede internacional da América Latina sobre arquitetura e povos originários que ajudam a abrir muitas possibilidades de diálogo:

“Eu, como professora de arquitetura hoje, procuro trabalhar sempre trazendo o tema da arquitetura junto aos povos indígenas para dentro do atelier de arquitetura para possibilitar que eles conheçam um pouco mais, não só das culturas indígenas dos nossos vizinhos – a gente tem vizinhos no campus aqui, tanto Kaingang quanto Guarani estão próximos de nós, frequentam o campus e são estudantes também. Então, a gente trabalha essas questões todas.”

Espaço cultural da Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty em Palhoça, SC

Espaço cultural da Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty em Palhoça, SC

Nauíra enaltece a importância de se “conhecer o contexto para poder respeitar e ter uma escuta atenta: estar disponível para o diálogo é também respeitar o tempo deles, de dialogar entre eles, verificar o que para eles é bom”. A própria legislação no Brasil, lembra a arquiteta, fala dessa necessidade de se respeitar e de atender as demandas dos povos indígenas, “as suas formas próprias de aprendizagem, de educação, inclusive, esse reconhecimento necessário e proteção dos territórios que é o que viabiliza os modos de vida, da arquitetura à educação própria deles que está muito vinculado ao território”.

“Se a gente confina as crianças num espaço escolar, deixa elas fechadas em sala de aula para aprender coisas que não fazem parte também do modo de vida delas, a gente vai estar tirando esse tempo tão precioso de vida e de aprendizado, que é tão efervescente na infância, que é tão rico nesse momento que eles estão absorvendo tudo. Então, eles vão deixar de conviver com as pessoas da comunidade e vão ficar fechados em sala de aula? Muitos representantes indígenas falam que a educação pode acontecer em qualquer lugar – mesmo a alfabetização. Claro, vai ter o momento de ir para a sala de aula e escrever, mas as discussões sobre o que vai estar sendo escrito, elas podem acontecer na mata, no espaço cerimonial, nas próprias casas, nos rios. E essa alfabetização vinculada aos saberes e à vivência cotidiana e às experiências, ela vai marcar um aprendizado muito mais profundo, que permanece; não é aquilo que é abstrato, que a gente não consegue relacionar com as vivências, com aquilo que a gente conhece.”

“Os professores indígenas estão fazendo isso: eles estão trazendo esse aprendizado, relacionando com as dinâmicas da comunidade. Mas, para eles, a alfabetização também representa uma ferramenta para a defesa dos seus direitos que foram conquistados com tanto esforço, tanta luta, tantas perdas também.”

Arquitetura padrão x indígena

A legislação brasileira, como outros documentos oficiais, comenta Nauíra, já ilustram, assim, a importância de um diálogo com os povos indígenas para que possam participar da definição da arquitetura das escolas para poder contemplar a forma de pensar da própria comunidade. Geralmente as concepções das escolas contam inclusive com a participação das lideranças e dos professores indígenas que manifestam anseios que procuram “traduzir e apresentar elementos culturais que fortaleçam a identidade e as especificidades de cada povo e de cada lugar”.

Alguns poderão escolher por uma arquitetura mais relacionada com o contexto da comunidade para valorizar os saberes dos ancestrais que, dentro das comunidades, são conhecidos “como as bibliotecas”, criando um vínculo intergeracional com os avós e as pessoas de mais idade:

“Existe, então, uma possibilidade de flexibilizar algumas questões com relação à arquitetura escolar para os povos indígenas. A gente não precisa colocar uma arquitetura padrão, uma arquitetura tão engessada, assim, tão definida de acordo com as nossas próprias formas de pensar a escola. A escola indígena ela tem essa possibilidade de ser algo novo e próprio deles. E, claro, que algumas comunidades vão preferir um modelo padrão, um modelo igualzinho ao que tá na cidade porque eles vão acreditar que aquilo ali é que vai dar uma educação de qualidade para eles. E, se é a escolha deles e eles desejam isso, e também talvez desejam separar o que é educação indígena do que é a educação escolar – criança na escola vai aprender a se virar no mundo dos não indígenas, e quando ela está na comunidade vai aprender a viver como um Kaingang ou Guarani ou Kayapó – e tudo bem.”

A Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkrê em Ipuaçu, SC

A Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkrê em Ipuaçu, SC

A arquitetura das escolas indígenas como lugares de identificação pode possibilitar a continuidade, o fortalecimento e a valorização dos saberes que são próprios deles, finaliza Nauíra:

“A arquitetura das escolas indígenas pode fortalecer a identidade das comunidades no momento em que se dialoga com elas para definir como gostariam de ensinar – às vezes até mesmo o desenho do mobiliário, a organização da escola, a relação do espaço interno com o espaço externo, existem muitas possibilidades. Eu acho que é um campo que está superaberto e fazendo esses questionamentos: a possibilidade de trazer os avós para dentro da escola; de que as atividades da escola vão para lá, junto das casas cerimoniais, das casas, enfim, dos lugares de aprendizagem que são específicos deles também. E lá, naquele momento, eles não vão precisar talvez fazer anotações nos cadernos. Depois eles trazem para a escola esses saberes que eles aprenderam.”

Veja a participação de Nauíra no evento internacional

Ouça a reportagem especial e compartilhe

Andressa Collet – Vatican News