Porto Velho, RO/Santarém, PA ‒ Parte V

Antes de cada jornada, pelos Amazônicos caudais, pesquisamos os relatos dos primeiros desbravadores de cada rota a ser percorrida para poder observar as alterações sofridas no espaço geográfico considerado, tenham sido elas produzidas pela própria natureza ou através de mudanças provocadas pela interferência estabelecida entre os seres humanos e o meio ambiente.

Conhecendo o passado e vivenciando o presente procuramos montar este curioso quebra-cabeça que se foi fragmentando com o decorrer do tempo.  

BANDEIRA” de Antônio Raposo Tavares – I

Os Brasileidas

(Carlos Alberto Nunes)

Canto VI

 Pesa-me aquela solução, a perda

Quase definitiva da esperança

De alcançarmos a serra, à mente aflita

Me ocorrendo de pronto o estratagema

De entrar pelo sertão com os mamelucos

De São Paulo, valendo-me do curso

Sagrado do Anhembi, que, reforçado

Pelo Piracicaba, prometia

Levar os Bandeirantes onde apenas

Chega a imaginação nos seus arroubos

Mais sublimados […] (ALBERTO NUNES)

Revista de História, n° 45

São Paulo, SP – Janeiro/Março, 1961

A Maior Bandeira do Maior Bandeirante ([1])
[Jaime Cortesão]
 

Antônio Raposo Tavares tem sido considerado pelos historiadores brasileiros o maior de todos os Bandeirantes. Não obstante, sobre o mais vasto dos seus empreendimentos pairam grandes obscuridades. Por nossa parte, quando dizemos o maior Bandeirante relacionamos esse qualificativo com o alcance geográfico e geopolítico das suas expedições. Se erguemos aquela que nos vai ocupar à categoria da maior das empresas exploradoras, realizadas por um grupo de homens e num esforço ininterrupto, em todos os tempos, nas duas Américas, também a consideramos uma Bandeira de Estado, Estado em formação, essencialmente política, que buscou, de um só e gigantesco impulso, sondar os possíveis limites entre os dois grandes domínios ibéricos, na América do Sul.

Como exploradores geográficos, essas dezenas de heróis, que foram de São Paulo a Belém do Pará, tem a grandeza do mundo que devassaram. Mas se os consideramos como tipos sociais, esculpidos pelo tempo, o meio, a ação e o perfeito acabamento de um caráter regional, houve sem dúvida alguns poucos Bandeirantes maiores, e talvez Fernão Dias Pais ‒ o maior entre os maiores. Aliás, Raposo Tavares representa um tipo diferente de expansão.

Figura épica, e mal conhecida, tendo realizado, em pleno século XVII, por vastíssimos caminhos totalmente ignorados, uma empresa sobre-humana, a sua personalidade revestiu-se, naturalmente, de um esplendor lendário. O mito da existência de uma vasta Ilha Brasil, rodeada pelo Prata e o Amazonas, teve o seu herói mítico. Essa deformação ideal alcançou, como é sabido, expressão suprema no Quadro Histórico de Machado Oliveira. Segundo ele:

Antônio Raposo, à frente duma partida de 60 homens, tão audazes e aventurosos como o valente caudilho, tendo um séquito de alguns índios, atravessou o Brasil de Sueste a Noroeste, escalando os Andes chega ao Peru, penetra esse País, entra nas águas do Pacífico, com a espada nua levantada, dizendo que “avassalava terra e mar para o seu rei”, é por vezes compelido a recontros e combates com os espanhóis, levando-os sempre de arrancada. Deixa o antigo império dos Incas e, dirigindo-se para o Amazonas, navega esse rio em jangadas, abandonando-se à sua corrente; desembarca em Curupá e, aí foi generosamente acolhido pelo povo, que se assombra de tamanha audácia do paulista. O regresso de Raposo Tavares, através dos sertões que se interpõem às duas regiões, durou anos e no cabo deles se achou tão desfigurado que foi desconhecido por sua família e parentes.

Eis a lenda, mas uma lenda de caráter épico e político, em que o herói, interpretado sob o ponto de vista nacional, leva a soberania portuguesa do Atlântico ao Pacífico. Veio depois a reação e os historiadores brasileiros buscaram entrever e definir a figura real através da névoa lendária. Cabe ao eminente homem público e historiador Washington Luís a primeira monografia solidamente documentada nesse novo sentido e ainda hoje guia indispensável e exemplo a citar de aplicação do método histórico-geográfico.

Fundando-se nos documentos conhecidos, supôs Washington Luís que a Bandeira de Raposo Tavares, saindo de São Paulo pelo Peabirú, fosse tomar o Paraná, na sua confluência com o Paranapanema, passando daquele ao Paraguai, que haveria subido para embarcar no Guaporé, descendo por ele e pelo Madeira até ao Amazonas.

A publicação posterior, e por iniciativa de Washington Luís, das Atas da Câmara de São Paulo e peças similares, a publicação ou divulgação de documentos essenciais, por A. Taunay, Rodolfo Garcia, Basílio de Magalhães, Alfredo Ellis Júnior, João Lúcio de Azevedo e Carvalho Franco, trouxeram uma base nova à interpretação da personalidade de Raposo Tavares e da Bandeira de 1648-1651.

Dentre os documentos que a Washington Luís não foi dado conhecer, avulta sobre todos uma carta do Padre Antônio Vieira, infelizmente apenas conhecida em cópia muito estropiada, mas cujo original foi escrito em começos de 1654 com o testemunho de alguns Bandeirantes, que então permaneciam em Belém do Pará, e com quem o grande jesuíta falava em outubro de 1653 ([2]).

Outro documento, divulgado por Paulo Prado, nas colunas do “O Estado de São Paulo” ‒ um informe do secretário do Conselho Ultramarino sobre “a gente de São Paulo” e dirigido ao Rei, em 1674, isto é, 23 anos após a realização da bandeira, ampliava o seu trajeto pelos Andes até Quito, donde, pelo Amazonas, Raposo Tavares haveria descido até Belém. Perante esta afirmação que estava de acordo com os dizeres de Berredo nos Anais do Maranhão, já no século XVIII, os historiadores paulistas, hesitaram e dividiram-se.

Uns, como Taunay e Carvalho Franco, não rejeitam a hipótese da derivação andina até Quito, mas não a aceitam taxativamente; Alfredo Ellis Júnior, na sua recente e notável monografia sobre Raposo Tavares, faz suas as primeiras conclusões de Washington Luís; Júlio de Mesquita Filho, nos seus excelentes Ensaios Sul-Americanos, inclina-se, ao contrário, francamente para a extensão andina da Bandeira.

Apaixonados de há muito pela história das Bandeiras e atraídos pela grandeza épica do feito de Raposo Tavares e seus companheiros, demo-nos também durante anos a procurar pacientemente esclarecer os mistérios que a envolvem. Os nossos esforços, ainda que em terreno tão batido, e por tão grandes pioneiros, foram coroados de êxito, ao menos quanto ao alcance geográfico da Expedição.

Foi-nos possível descobrir uma série de documentos, quer de origem espanhola, e, em especial, jesuítica, quer de origem portuguesa, na sua grande maioria inéditos, e que nos permitem completar e esclarecer o relato de Vieira e, por essa forma, traçar, nas suas linhas gerais, o trajeto da Bandeira.

Na sua maioria estes últimos documentos referem-se a Antônio Pereira de Azevedo, Capitão de uma das tropas da Bandeira, e sobre cuja identidade havia ainda dúvidas, e a Simão Pedroso, um dos bandeirantes, que permaneceu em Belém, com outros companheiros de aventura, e onde deve ter morrido, depois de haver prolongado na Amazônia por dezenas de anos, suas atividades de sertanista infatigável. Os documentos sobre Antônio Pereira de Azevedo, pertencentes aos arquivos de Lisboa, constam, entre outros, dum requerimento, feito em Lisboa, em 1656, com exposição de serviços, entre os quais o da Bandeira a que nos estamos referindo.

A respectiva consulta do Conselho Ultramarino e o despacho do Rei; a sua habilitação para a Ordem de Cristo e, finalmente, a concessão de várias mercês, entre as quais a de escudeiro fidalgo e a de ser armado cavaleiro, quando chegasse ao Brasil. O documento principal sobre Simão Pedroso é uma carta do Governador do Maranhão e Pará, Gomes Freire de Andrade, dirigida, em 1687, ao Rei, com um depoimento daquele bandeirante, em que revela alguns fatos de grande interesse, sobre a Expedição. Finalmente, várias cartas dos jesuítas do Paraguai pertencentes à coleção De Angelis, informam com pormenores, que as duas tropas de Raposo Tavares e Pereira de Azevedo, atravessaram o Paraguai em direção a Oeste. Nenhum dos documentos que encontramos se refere ao trajeto até Quito. A análise crítica do conjunto das peças existentes leva-nos à conclusão de que a Bandeira atingiu os Andes, mas não os percorreu; e, depois de ter visitado La Plata e alguma ou algumas das cidades próximas, baixou dessa região à Bacia do Amazonas.

Assim, a história aproxima-se da lenda, não só quanto à extensão da empresa mas também, segundo supomos, ao seu aspecto político. Seremos, aliás, forçados a limitar, e sob forma esquemática, o tema desta conferência ao aspecto geográfico e geopolítico da Bandeira.

Vamos, pois, indicar, ainda que rapidamente, as condições geográficas, econômicas, intersociais, históricas e políticas que explicam esse empreendimento. Sob o ponto de vista geográfico, devemos considerar que a Bacia do Prata, desenvolvida no sentido geral do meridiano pelo eixo do Paraná-Paraguai abre, com os afluentes respectivos, vários sistemas de estradas naturais, no sentido do paralelo, entre o Atlântico e os Andes.

Por um desses sistemas já, em 1524, o português Aleixo Garcia ia das costas do atual Estado de Santa Catarina até à região argentífera dos Andes, então ainda sob o domínio incaico. Nos meados do século XVI, os moradores de São Vicente iam daquelas mesmas costas e de Cananéia tomar o Pequiri e, atravessando o Paraná e a serra do Maracajá, baixavam o Jejui e o Paraguai até Assunção. A prática usual desse caminho reflete-se claramente no mapa de Bartolomeu Velho de 1562. Era o chamado caminho do Piquiri, que Nicolau Barreto, segundo o acertado parecer do professor Alfredo Ellis Júnior, foi buscar, em 1602, à frente da sua Bandeira, rumo ao Peru andino.

Por esse ou semelhante caminho seguiram ainda durante a primeira metade do século XVII mais do que uma tropa de bandeirantes. Sob o ponto de vista econômico, convém assinalar, São Paulo oferecia um contraste flagrante com as cidades do Peru seiscentista. Estas, especialmente Lima, Potosi, La Plata [Sucre] e Cuzco eram então os grandes centros do comércio, da riqueza e da cultura, em toda a América do Sul.

As minas de prata e de mercúrio, em pleno e progressivo rendimento até 1630, sustentavam com pequeno esforço dos espanhóis essa economia florescente.

Lima, comunicando pelo seu porto de Callao com o Panamá, e pela estrada de Cuzco, Potosi e Tucuman com Buenos Aires, tornara-se a metrópole mercantil e cultural de toda a América austral, espécie de Meca para todos os estrangeiros [mormente os portugueses], que ansiavam por grandes negócios ou cujas atividades só podiam ser utilizadas nos centros urbanos em plena prosperidade e desenvolvimento.

No polo oposto, São Paulo, era uma pequena cidade de gente vigorosa, empreendedora, ativa, acostumada aos maiores trabalhos e fadigas, mas vivendo em míngua de comodidades e mediania de recursos.

Já as demais cidades brasileiras, como Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, cuja economia assentava no cultivo da cana e no fabrico do açúcar desfrutavam condições de vida mais próspera. Essa mesma fonte de riqueza, que exigia a importação em grande escala do negro de Angola e da Guiné, tornara o Brasil o intermediário clandestino para esse comércio da mão de obra escrava, tão necessária também à indústria mineira do Peru. E, se a prata dos Andes veio intensificar enormemente o comércio e o desenvolvimento da riqueza no Brasil, o escravo negro, vindo dos portos brasileiros ou de Angola com escala por esses portos, tornara-se cada vez mais o instrumento indispensável às atividades industriais no planalto andino.

Se juntarmos aos escravos negros, o açúcar, as fazendas, as peças de mobiliário rico e várias matérias alimentares, concluiremos que a América espanhola e a portuguesa, eram sob o ponto de vista da economia, regiões complementares. (CORTESÃO, 1961) (Continua…)

Bibliografia

ALBERTO NUNES, Carlos. Os Brasileidas ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Edições Melhoramentos, Coleção Cultura e Ciência, 1962.  

CORTESÃO, Jaime. Conferência ‒ A Maior Bandeira do Maior Bandeirante ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP – Revista de História, n° 45, Janeiro/Março, 1961.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.09.2020 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Conferência inédita, proferida no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, gentilmente cedida pela sua direção para publicação na Revista de História como homenagem ao autor, recentemente falecido [Nota da Redação].

[2]    Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo. T. I, Coimbra 1925, N.° LXVI