Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte VIII
“BANDEIRA” de Antônio Raposo Tavares – IV
Revista de História, n° 45
São Paulo, SP – Janeiro/Março, 1961
A Maior Bandeira do Maior Bandeirante ([1])
[Jaime Cortesão – Conclusão]
[…] A esta data, estes conhecimentos, tão exatos para a época, não podiam relacionar-se senão com a Bandeira de Raposo Tavares. Na história da cartografia só nos começos do século XVIII os mapas dos jesuítas [1703] e dos cartógrafos franceses, como Guillaume de L’Iale [1703], começam a traçar o Rio Grande ou Guapaí, desde as origens, cerca de Cochabamba, e com a característica curva do seu alto curso. Mas, pelo que respeita às Latitudes mais elevadas do traçado e à direção geral do Madeira, essas cartas mostram-se ainda muito inferiores à descrição do Padre Antônio Vieira.
Finalmente, o Conde de Castelar, Vice-rei do Peru, referia-se, em 1667, às correrias dos paulistas, que assolavam a Província do Paraguai, levando os índios como escravos:
y con este ejercicio llegando hasta la población de Santa Cruz de la Sierra, y extendiéndose por más de 800 leguas hasta el rio Marañon o de las Amazonas [Documentos Interessantes, v. 47, pág. 27].
Esta etapa pela povoação de Santa Cruz confirma também e inteiramente o trajeto pelo Guapaí. E aqui chegados propomos um problema. Ter-se-iam limitado Raposo Tavares e os seus companheiros a visitar Santa Cruz de la Sierra, pequeno burgo, àquela data paupérrimo de habitantes e recursos? Eles próprios ausentes há mais de ano de São Paulo, desfalcados de alimento, vestimentas e apetrechos pelas terríveis inclemências da travessia, não teriam buscado alguma ou algumas das grandes cidades andinas para refazer-se?
Se a essa certíssima urgência somarmos a circunstância de muitos portugueses e, entre eles, alguns paulistas, enxamearem nessas cidades, cuja fama retumbava em todo o mundo, temos por absurdo que Raposo Tavares e alguns dos seus companheiros não tivessem penetrado em La Plata, quase sobre o seu caminho e, por ventura na então legendária Potosi. Não rejeitamos até a hipótese ‒ mera hipótese ‒ de que ele houvesse chegado a Lima, de cujas eminências se avista o Pacífico a curtíssima distância, dando assim mais realidade à lenda.
Não teria então a Bandeira alcançado Quito? Os documentos, que se referem ao percurso total da Bandeira podem dividir-se em duas categorias; os que pertencem aos próprios Bandeirantes ou procedem diretamente deles; e os que se lhes referem em lugares ou época recuada. Só estes últimos, um dos quais escrito em Lisboa, em 1674, e outro, meio século mais tarde, se referem à passagem por Quito e à descida desde esta cidade pelo Amazonas.
Nenhum dos outros documentos, mais dignos de fé e que são a quase totalidade, mencionam esse fato. Observe-se que até hoje não encontramos na documentação espanhola qualquer referência donde pudesse inferir-se semelhante traçado. Esta carência assume proporções de um desmentido, quando se trata da “Relación de los Maynas” do Padre Francisco de Figueroa, que à data da realização da Bandeira habitava no Marañon e, naquela hipótese, era natural, quase fatal a referisse.
Como explicar então a divergência? A carta de Vieira e o próprio depoimento do segundo comandante da Bandeira estão de acordo em considerar a viagem pelo Madeira como um descobrimento do próprio Amazonas, no seu curso principal, e não de um afluente. Na carta de nomeação de Antônio Pereira de Azevedo para provedor da fazenda da Capitania do Espírito Santo, diz-se do nomeado e transcrevendo do seu próprio requerimento:
e estando servindo na capitania de São Vicente foi no descobrimento do Rio das Amazonas em cuja jornada gastou tempo largo e viu morrer a maior parte de seus companheiros à fome e à sede; e vindo sair à parte do Maranhão e Pará…
Não só Antônio Pereira de Azevedo, mas, ao que parece, também as estâncias oficiais de Lisboa, consideravam a viagem, no objetivo e resultados, como o descobrimento do Amazonas. Vieira, por sua vez, chama ao curso do verdadeiro Amazonas e Marañon, incluindo o Napo, e por comparação com o rio navegado pelos bandeirantes, “outro braço” do Amazonas. Ao que supomos, pois, terá havido um documento inicial, primeiro relato dos bandeirantes, em que estes afirmavam que haviam atingido o Peru, donde haviam baixado pelo Amazonas desde o seu nascimento.
O secretário do Conselho Ultramarino e o governador Berredo interpretaram mais tarde esse texto, à luz dos seus conhecimentos geográficos. Para os dois descobrir o Amazonas desde as suas fontes, implicava, segundo a concepção corrente na época, passar por Quito e daí baixar até ao curso principal do Rio. Trata-se, ao que supomos, de um equívoco, que assenta numa dualidade de concepções, em tempo de geografia incerta.De qualquer forma esses dois testemunhos não podem invalidar o requerimento de Pereira de Azevedo, a carta de Vieira, a do Conde de Castelar e a relação de Heriarte, mais dignos de fé e todos acordes entre si.
Resta-nos acrescentar que, só volvido mais de um século sobre a grande Bandeira de Raposo Tavares, a documentação escrita ou cartográfica dos espanhóis acusa um conhecimento do Guapaí igual ao dos paulistas em 1650. O mesmo poderemos dizer quanto à sua navegação.Aliás, este tardio conhecimento da navegação do Rio Grande desde os contrafortes andinos até à planície cruzenha, dá a medida das qualidades humanas e da cultura geográfica que representavam o Bandeirismo em meados do século XVII.O Padre Antônio Vieira eleva ao último grau da hipérbole os trabalhos sofridos por esta Bandeira, em especial na travessia do Paraguai, e até embarcar no Rio Grande. Passado um mês sobre o ataque à redução de Mboymboy, diz êle na sua carta:
se viram os executores dele castigados com a fome, peste e guerra. A peste foi tal que nenhum deles ficou que não adoecesse mortalmente; a fome era quase extrema, porque as raízes e frutos das árvores eram o maior regalo dos enfermos… sobretudo no meio desta fraqueza e desamparo eram continuamente assaltados de bárbaros de pé e de cavalo, que os atravessavam com flechas.
E chama a essas provações:
as maiores misérias que jamais se passaram.
Nesta parte a narração de Vieira é inteiramente corroborada por outro jesuíta, o Padre Altamirano. Tais desastres referem-se principalmente à tropa de Antônio Pereira, que atacou Mboymboy. E já vimos como este se lhe refere no seu trágico laconismo:
viu morrer a maior parte de seus companheiros à fome e à sede.
Mas o Padre Vieira, na sequência do relato, continua a desfiar durezas de combate, ciladas de índios e trabalhos de toda a espécie na região dos Serranos. Depois tiveram de marchar dias a fio com as canoas às costas, na planície cruzenha e nós sabemos que lhes foi necessário repetir a operação mais de dez vezes, em piores condições, ao baixar as quedas do Madeira. Não dissente destes relatos o Padre Souza Ferreira, pois afirma que nas campinas alagadas do Paraguai, andaram dias inteiros com a roupa pela cabeça e a água pela barba, e aos combates com os índios acrescenta que os Bandeirantes tiveram seus recontros com os castelhanos do Peru, confirmado nesta parte por Berredo. Vieira, que tão asperamente censura estes mesmos Bandeirantes, pelos, desacatos cometidos contra os jesuítas espanhóis, um dos quais morreu em combate, todavia não hesita, num momento de assombro, em proclamar dessa empresa:
que verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até hoje se tem feito no mundo.
Mas seriam esses Bandeirantes tão ímpios e cruéis com os sacerdotes da Companhia, como afirmam “una voce” ([2]) Vieira e os seus confrades espanhóis?
Lendo com atenção as cartas e relações destes últimos, apura-se que a verdade era outra. Que esses homens, capazes de jogar tão facilmente a vida própria não respeitassem mais a alheia, é de crer. Aplicavam aos demais a lei do perigo em que viviam. Sua vida tão cheia de terríveis asperezas, não tinha o mesmo valor que para nós. Mas o Padre Bonilla descrevendo o assalto da tropa de Antônio Pereira aos Itatins, em novembro de 1648, falando da detenção por alguns dias do Padre Cristobal de Arenas, confessa:
Verguenza me da el tratamiento que en ciudad de la Asunción se hace a la Compañía, cuando sigo al Padre C. de Arenas contar la cortesía con que estos enemigos le trataran así de palabra como de obra en su sustento y regalo que se compadecía con la cuantidad que allí había.
Acusa o Padre Vieira, é certo, esses Bandeirantes de haver despojado a Igreja da redução assaltada de vestiduras e vasos sagrados. Mas o Padre Altamirano contava, em 1554 que depois de atravessado o Paraguai:
hollando el caudillo a los pocos que habían queda-do, les dijo que aquella mortandad y despejo eran conocidamente venganza de la muerte y despojo de aquel ministro del Señor. E pareciéndoles que aplicarían algo su ira, con restituir los ornamentos y cosas sagradas, que llevaban, lo hicieron luego, despachándote todo con un indio que remetieren, aunque tarde a los Padres.
O fato despido de interpretação, mais ou menos forçada do narrador, é este: chegada a tropa de Antônio Pereira ao acampamento de Santiago, Raposo Tavares mandou devolver aos jesuítas o produto do saque da Igreja. Para o carregar bastou um índio, o que prova também que o despojo fora diminuto.
Estes homens, pois, que pecavam por assomos e atos de violência, eram capazes de cortesia, humanidade e nobreza. Em conclusão:
A Bandeira de Raposo Tavares foi essencialmente uma Expedição de descobrimento geográfico e de minas, relacionada com o problema dos limites e as dificuldades financeiras e políticas em que se debatia o Reino, após a Restauração da Independência. Ela foi também a primeira Expedição de reconhecimento geográfico que abrangeu todo o espaço continental da América do Sul, compreendido entre as ribas do Atlântico e a cordilheira andina, entre o Trópico de Capricórnio e o Equador, alargando-se por cerca de 23° de Latitude e vinte de Longitude, maior e mais árdua de quantas se realizaram em toda a América, não só até à sua data, mas ainda até aos começos do século XIX.
Pondo de parte o trajeto andino e considerado apenas o percurso fluvial do Tietê ao Paraguai e daí por terra ao Guapaí, e baixando por ele o Madeira e o Amazonas até Belém esse vasto périplo mede 10.000 quilômetros, números redondos. Se lhe acrescentarmos o trajeto do Chaco e os percursos de desvio na região das cidades andinas, terá excedido por certo os 12.000 quilômetros.
Para falar apenas das mais notáveis expedições realizadas antes e depois de Raposo Tavares, o descobrimento de Orellana em 1541, embora épico pelo arrojo, limitou-se a baixar o Amazonas e sempre nas mesmas Latitudes.
As de La Salle, o grande explorador francês do Mississipi, entre 1679 e 1682, desenvolveram-se em clima temperado e quase que exclusivamente no sentido do Meridiano.
Duas expedições: a de Lewis e Clark que, entre 1804 e 1806, exploraram o médio e alto Missouri e o Colúmbia até ao Pacífico, embora tão notável pela audácia e os resultados, desenvolve-se num espaço continental de trinta e três graus de Longitude, mas muito reduzido em Latitude, por consequência, de um âmbito muito menor.
Talvez, e para terminar, a melhor forma de definir a personalidade de Raposo Tavares, seja por comparação com outro dos grandes Bandeirantes, seus pares.
Dissemos, de princípio, que Fernão Dias Pais se afigurava o protótipo do Bandeirante, isto é, o mais evoluído e diferenciado pelas capacidades e virtudes gentílicas da sua grei. Homem que obedecia a um conceito e imperativo ibérico de honra, Quixote do sertão, levou até à loucura a obsessão e o sacrifício, na sua luta com o fantástico moinho de vento das Esmeraldas. Como os poetas, os filósofos e os místicos, ele pertence também, pela vontade e a ação, à raça rara dos enamorados do Absoluto. Lembra aqueles terríveis patriarcas bíblicos, que sacrificavam os filhos a Jeová; que permaneciam, como Jó, sob a torrente devastadora dos flagelos e das catástrofes, inabalavelmente fiéis à sua Lei; ou morriam numa agonia, ao mesmo tempo estática e pungente, à vista da Terra da Promissão.
Há nele qualquer coisa de abstrato e de irreal, que transcende o homem. Sabemos que viveu. Conhecemos documentalmente a sua história. E, todavia, aureolado pelo esplendor dos seus feitos, mais parece um daqueles deuses tutelares, em que os povos, ricos de imaginação, à maneira dos gregos, fundiam e idealizavam os seus maiores anseios e virtudes.
Menos diferenciado no estilo de vida e no caráter Bandeirante e protótipo de outro tipo de expansão, Raposo Tavares, não obstante, não lhe cede em estatura. A maior diferença que os distingue é que o Governador das Esmeraldas viveu, pela ação, voltado para o interior. Abriu as portas de ouro da riqueza e da independência da sua Pátria. Foi, na rigorosa acepção da palavra, um deus-lar. O outro, Raposo Tavares, o Governador da Aventura Continental, cujo heroísmo raia também pelo irreal, viveu de face voltada para as fronteiras. Em Guairá, como nos Tapes, no Itatim, nos Andes ou na Amazônia, ele busca traçar e sempre na consciência do esforço realizado, a fronteira ideal com a América espanhola. Rasteou desde a profundidade inicial os alicerces das nações dum continente. Foi um deus-termo, olhando ao largo, em todos os rumos de dois quadrantes.
Para enaltecer seu esforço e bravura, alguns historiadores brasileiros chamam a Raposo Tavares ‒ homeríada ([3]). Seja-nos lícito fazer um reparo. Dos heróis de Homero decorreram os horrores no Mediterrâneo, Mar interior cuja maior extensão não ultrapassa quatro mil e quinhentos quilômetros; e cujos perigos não excediam o canto das sereias e o agitado Mar entre Cila e Caríbedes, no doméstico estreito de Messina.
Se temos de comparar aqueles Bandeirantes a grandes navegantes há que recorrer então aos descobridores, que afrontam os cabos das Tormentas, que dividem os Oceanos. Como Vasco da Gama no Índico, ou Fernão de Magalhães no Pacífico, Raposo Tavares mediu a sua grandeza pelos dois maiores padrões da Natureza no seu gênero: os Andes e o Amazonas.
Por mais a despropósito que se tenha usado e abusado da palavra, acreditamos que a Raposo Tavares e aos seus companheiros cabe, sim, por justo título e direito, o qualificativo mais épico, mais nobre, mais humano e mais brasileiro de Lusíadas. (CORTESÃO, 1961)
Bibliografia
CORTESÃO, Jaime. Conferência ‒ A Maior Bandeira do Maior Bandeirante ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP – Revista de História, n° 45, Janeiro/Março, 1961.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Conferência inédita, proferida no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, gentilmente cedida pela sua direção para publicação na Revista de História como homenagem ao autor, recentemente falecido [Nota da Redação].
[2] “Una voce”: de comum acordo, em coro, unanimemente.
[3] Homeríada: analogia com a figura do poeta Homero, considerado o autor das epopeias Ilíada e Odisseia.
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