Momentos Transcendentais no Rio Madeira
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte I

Estas infindas jornadas pelos amazônicos caudais além de terem permitido, a este humilde Canoeiro, des­cortinar novos horizontes, perceber outras realidades, descobrir velhas lendas e histórias possibilitou a oportunidade encontrar velhos amigos de outras eras. Um destes caros irmãos foi o Professor e consagrado Historiador Dante Ribeiro da Fonseca.

Quando o convidei para ser o prefaciador de meu livro disse-lhe taxativamente que eu não me considerava nem tinha a pretensão de ser reconhecido como historiador, mas apenas como um apaixonado garimpeiro do longínquo pretérito que procura repercutir, dentro de uma sequência cronológica lógica, os antigos textos na sua própria linguagem, sem maculá-los nem tentar interpretá-los. O dileto amigo, então, respondeu-me:

Caro Irmão e amigo Hiram, és sim um historiador, por formação e, principalmente, por gosto. Creio mesmo que no seu coração o historiador é maior que o militar. Lembras o Antônio Loureiro de Manaus, que abando­nou a medicina, mas nunca deixou de ser um apaixo­nado pela História. Temos isso em comum. Surpreendeu-me e alegrou-me teu convite, nunca pensei em receber tamanha distinção. Aceito sim, com muito gosto farei o prefácio. […]  Com um T\F\A\ Dante Fonseca

Prefácio do Tomo I do Rio Madeira 

Professor Dr. Dante Ribeiro da Fonseca

Prefaciar uma obra é sempre um privilégio concedido pelo autor a outro, um ato de generosa alienação. Explico. Etimologicamente prefaciar, vem do latim, significa: dizer [fatio] – antes [prae]. Aquele que produziu a obra abdica de seu direito de apresentar-se e apresentar o que escreveu e permite que outro o anteceda nesse ato. Sendo assim, devo agradecer ao Hiram Reis e Silva por atribuir-me essa tarefa, um voto de confiança que, espero, faça por ter merecido. Iniciemos, portanto, com algumas considerações.

Primeiramente convido o leitor a uma breve reflexão. Este é um livro de viagem, por certo. De turnê pela Amazônia, como o fizeram antes Agassiz, La Conda­mine, Bates ou Wallace entre outros. Diferentemente desses, entretanto, esse livro não se reduz à fria descrição e das impressões do autor sobre o que viu e ouviu. Há nele um pouco daquilo que a geógrafa italiana Giuliana Andreotti definiu com uma geografia emocional. A Amazônia também é polissêmica e o entusiasmo, a admiração do autor por esse querido e enorme rincão de nossa terra elaborou uma obra que é simultaneamente histórica no seu rigor e sentimen­tal no seu plasmar.

Em segundo lugar, como bem cita em duas partes dessa obra Hiram Silva, só amamos o que conhece­mos, a recíproca também é verdadeira, somente buscamos conhecer o que amamos. O interesse primordial é sempre impulsionado por uma simpatia intuitiva que nos conduz a conhecer qualquer objeto de estudo. Assim, ciência e sentimento não são di­vorciados, objetividade e subjetividade são antípodas de uma mesma simbiose cognitiva:

[…] a noção de emoção ou sentimento é reconfirmada como a capacidade de aprender o valor de um fato ou uma situação. [Andreotti].

Assim, dada essa riqueza de conteúdo não seguirei, portanto, aquele roteiro tradicional de quem apresen­ta uma obra, capítulo por capítulo. A obra não merece esse tratamento. Justifico na medida em que seu escopo extrapola essa dimensão mecânica da escrita e subjaz em cada frase e parágrafo ilusoriamente objetiva. Que me perdoem os rigores acadêmicos, mas tal característica somente se pode imprimir com o sentimento. Esse é o sentido do livro, que não encontraremos explicitado em sua literalidade, mas apenas perceberemos com sua leitura atenta.

Em terceiro lugar nosso costume tomar a atividade principal ou profissão de uma pessoa e transformar essa característica como rótulo genérico. Se fulano é médico, professor ou militar suas características são tais, tais e tais. Porém, cada pessoa é um universo singular. Evidentemente, temos características que são forjadas pelo nosso exercício profissional, mas isso não torna essas características nem únicas nem unânimes. Assim, em que pese as virtudes de enge­nheiro e militar do nosso prefaciado colocaremos aqui em relevo suas virtudes como pesquisador.

Feitas essas considerações, passemos ao autor e à obra. Hiram Reis e Silva é Coronel de Engenharia, professor de diversas disciplinas, entre elas Matemática e Desenho Geométrico, do Colégio Militar de Porto Alegre [CMPA]. É membro de diversas instituições de pesquisa e academias, inclusive é acadêmico correspondente da nossa Academia de Letras de Rondônia ‒ ACLER. Publicou trabalhos de natureza técnica relativos à sua formação profissional, que deixaremos de lado por não representarem o foco da presente obra.

Ocupou-se dos Rios da Amazônia, neles viajando e sobre eles escrevendo. Essas obras, como a que aqui apresento, resultam de ambicioso projeto denominado “Desafiando o Rio-Mar”. Realizando esse projeto tem conhecido todos os afluentes do Rio Amazonas, procedendo daí livros sobre essas viagens nos Rios Solimões, Negro, Amazonas, Madeira [v. 1], Juruá e Tapajós.

Nessas viagens, diferentemente da antiga efígie egípcia que, diz-se, lançava ao viajante o seguinte repto: decifra-me ou te devoro, a Amazônia fascinou Hiram Reis com uma provocação bem ao espírito da cultura Tupi: decifra-me e te devoro. Foi devorado, e o resultado dessa antropofagia fica registrado nessas obras.

A História, a cultura, a vida afinal, saltam das páginas desses livros sob diversas formas. Sob a forma de poesias que cantam nosso passado, nosso povo e nossa natureza: do lusitano Camões a Almino Afonso, um orgulhoso filho do Rio Madeira, de Humaitá. Nas letras dos hinos dos seus municípios como essa:    

No eldorado uma gema brilha

Em meio à natureza imortal

Porto Velho cidade e município

Orgulho da Amazônia Ocidental

Do nosso irmão e brioso portovelhense Cláudio Batista Feitosa. Também é notável o registro de grandes autores da Amazônia: José Veríssimo [José Veríssimo Dias de Mattos] e Raymundo Moraes, um amazônida que não tendo passado da escola primária se tornou um grande intelectual.

Todos eles deixados em segundo plano pela inteligência culta nacional.

A Amazônia produziu também romances, dentre eles um, escrito pelo Tenente da Armada Imperial Lourenço da Silva Araújo Amazonas, publicado em 1857, no mesmo ano do Guarani de José de Alencar, porém mais realista quanto ao índio brasileiro na Amazônia [Simá ‒ Romance Histórico do Alto Amazonas].

Enquanto que o primeiro resultou em um retumbante sucesso nacional, o segundo foi relegado à penumbra até os dias atuais. Não cabe nos programas de ensino de literatura do nível médio, como aliás somente cabe às vezes Inglês de Souza, que descreveu ficcionalmente as desventuras de nosso tapuio em “O Cacaulista”. Mais uma daquelas curiosidades exóticas da Amazônia que eventualmente chamam a atenção dos outros brasileiros, como sua ecologia, biodiversidade e o boto cor de rosa, que na Amazônia é boto vermelho.

Assim, o historiador se agiganta frente ao engenheiro e militar. Dissemos que se agiganta, mas não os emudece. Os projetos do colonialismo internacional descrito nas páginas da historiadora Nícia Vilela da Luz ou propostos pelo militar norte-americano Maury, lembram sempre que projetos internacionais sobre a Amazônia continuam tentando se impor até hoje, nem sempre em atenção ao interesse dos brasileiros. Que devemos vigiar para que essa herança que recebemos do nosso passado colonial continue pertencendo e servindo aos nossos conterrâneos. A disputa revelada pelo clube de engenharia quanto aos projetos Morsing e Pinkas saltam também da parte engenheira e militar do autor.

Também, a ferrovia Madeira-Mamoré instrumento do propalado progresso que nos traria a aplicação dos capitais internacionais.

Foi abandonada pelos apóstolos do progresso tão logo revelou-se deficitária. Apenas continuou a servir às populações locais em razão da intervenção do Estado Nacional. Dizem-nos esses eventos a respeito das questões técnicas de engenharia e dos objetivos nacionais, mas também das questões intermináveis da política viciosa, de tão atual permanência em sua similitude que ainda nos agridem diariamente nas notícias veiculadas pela mídia.

Por outro lado, as cidades, vistas com os olhos míopes daqueles que insistem em trazer na retina a imagem do Sul Maravilha [pelo menos era maravilha há décadas atrás], são cidades frequentemente acanhadas, sujas e maltratadas. Vistas com os olhos do pesquisador envolvido são cidades com passado, com história, com gente, com encanto. De fato: a beleza só está nos olhos de quem a vê. Concentremo-nos agora mais nelas e no ambiente na qual estão imersas.

Esse Rio Madeira, que os portugueses começaram a colonizar no século XVII, a borracha continuou no século XIX e no qual a soja é transportada nesse nosso século. Que foi passagem do ouro do Guaporé no século XVIII e da produção rural dos llanos bolivianos e da borracha no século XIX. Uma História rica e interessante, trágica e grandiosa, como sempre é a História em qualquer parte, nem mais nem menos.

Seus personagens: os índios, os mestiços, os negros o europeu, enfim o mesmo povo e a mesma pátria, que o auriverde pendão de nossa terra representa, constituem a população ribeirinha. O Rio Madeira, belo e majestoso, o maior afluente do Rio Amazonas é percorrido por Hiram Reis com o olho de estudante envolvido, que vê as cidades, beiradeiras como somente as cidades amazônicas o são.

Porto Velho, povoação surgida durante o ciclo da borracha. Herdeira de Santo Antônio, pois ambas resultaram da indústria de transportes, do navio e da locomotiva a vapor respectivamente, servindo à atividade gumífera. Singulares em sua origem na indústria de transportes quando comparadas às outras povoações daquele Rio. A mãe, nas décadas iniciais aleitou a filha com sua população. Humaitá, surgida do empreendedorismo do comendador Francisco José Monteiro, ao ocupar-se da exploração dos seringais no médio Rio Madeira na segunda metade do século XIX.

No baixo Madeira Manicoré, que alguns declaram originada de São João Batista do Crato, pela transmigração de sua população. Crato foi criado em 1797 no médio Madeira para dar suporte à navegação a remo do Rio Madeira, já não existe mais. Manicoré também cresce e se torna uma das povoações mais importantes do ciclo gumífero. Borba sua primeira vila, no baixo Madeira. Pioneira e de História cigana. Vão se seguindo as localidades: Nova Aripuanã, Nova Olinda do Norte.

Entramos então no majestoso Rio Amazonas, o maior Rio do Mundo, de pronto a localidade de Itacoatiara, que pelo Diretório de 1754 deveria se chamar Serpa, tal qual localidade de Portugal, mas a teimosia de seus moradores fez voltar ao nome original, missioneiro. Manaus, que no dizer de Euclides da Cunha era, antes da riqueza da borracha, uma tapera de índios e que a zona franca fez ressuscitar da longa agonia decadente após o fim do surto gumífero.

Assim, percorreu o canoeiro, de caiaque, o Caiari, nome pelo qual chamavam os nativos ao Rio Madeira. Percorreu quase à moda amazônica, afinal de contas caiaque é quase uma montaria, pois que embarcação individual.

As paisagens, as gentes, os contatos humanos, a floresta e a economia, o que conserva e o que destrói, a beleza e a poesia. Desse espírito de aventureiro, do encanto e do envolvimento do autor foi gestado o presente livro. Creio que, pretensiosamente, posso falar em nome dos amazônidas para agradecer e parabenizar a Hiram Reis e Silva. Alguém discordará? Nunca é demais conhecer, escrever, ler e pensar nosso país, foi o que o nosso prefaciado realizou com competência e sentimento sobre o Rio Madeira.

 

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.08.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS); 
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].