Momentos Transcendentais no Rio Amazonas I
Manaus, AM/ Santarém, PA ‒ Parte IX 

Berço da Humanidade – Itaituba (PA)

Berço da Humanidade 

Lendas da Origem da Humanidade 

É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura, e altura são proporcionadas segundo as regras da arte […]. Tem seu portal, corpo de Igreja, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco, e Capela-mor tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. (DANIEL) 

Inúmeras lendas indígenas tratam da questão da origem do ser humano, seja brotando de buracos, expelidos pela Cobra-Grande, feridas de trovão, frutas lançadas n’água, canoas gigantescas, mas uma despertou minha especial atenção por se tratar de relatos de consagrados cronistas e se encontrar nas proximidades de Santarém. Conta-nos João Daniel:

Entre os mais Rios e Ribeiras que recolhe o Tapajós é um o Rio Cuparí, a pouca mais distância de três dias e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande “Igreja”, ou “Templo”, que bem mostra foi obra de arte ou prodígio da natureza. […]

A tradição, ou fábula, que de pais a filhos corre nos índios [Mundurukus], é que ali moraram, e viveram nossos primeiros pais, de quem todos descendem, brancos e índios; porém que os índios descendem dos que se serviam pela porta, que corresponde às suas Aldeias, e que por isso saíram diferentes na cor aos brancos, que descendem dos que tinham saído pela porta correspondente à Foz, ou Boca do Rio. (DANIEL)

Relata-nos, por sua vez, Henri Anatole Coudreau:

Um dia, diz a lenda Munduruku, os homens apareceram sobre a terra. Ora, os primeiros homens que os animais das florestas viram por entre as selvas e as savanas foram os que fundaram a Maloca de Acuparí. Certo dia, entre os homens da Maloca de Acuparí, surgiu Caru-Sacaebê, o Grande Ser. […]

Em seguida, olhando para as plumas que plantara em redor da Aldeia, ergueu a mão de um horizonte ao outro. A este apelo, moveram-se as montanhas, e o terreno onde se localizava a antiga Maloca tornou-se uma enorme caverna. […] Aí, como Pompeu, bateu com o pé no chão. Uma larga fenda se abriu. O velho Caru dela tirou um casal de todas as raças: um de Munduruku, um de índios [porque os Munduruku não pertencem à mesma raça que os índios, mas são de uma essência superior], um casal de brancos e um de negros. (COUDREAU, 1940)

Viagem ao Rio Cupari (25/26.01.2011)

Partimos às 05h00, no Barco Piquiatuba, navegando pelas belas águas espelhadas de um, momentaneamente, plácido Tapajós. Depois de navegar  aproximadamente 165 km, aportamos em Aveiro, antiga Aldeia de índios Munducurus, oriundos do alto Tapajós (“Tapajós-Tapera”), por volta das 14h00.

O Padre Sidney Augusto Canto, que nos acompanhava, tentou localizar um guia que nos levasse, depois de visitarmos Fordlândia, ao Rio Cupari e ao famoso Convento (Fábrica ou Igreja) citado pelo Padre João Daniel no seu “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, editado pela primeira vez em 1820. Depois de visitarmos Fordlândia retornamos ao Rio Cupari onde pernoitamos no dia 26.01.2011. No dia seguinte tentei chegar por água ao “Berço da Humanidade”, subindo o Rio Cupari.

A tentativa foi frustrada por uma queda d’água impossível de ultrapassar com a voadeira que nos transportava. Quando aportamos na margem direita do Rio, preparando-nos para voltar, ouvi o som de motores de caminhão nas proximidades e georreferenciei a posição. Retornando a Santarém localizei a posição marcada no Google Earth e verifiquei que a mesma ficava muito próxima da Rodovia Transamazônica (BR-230), decidi, então, realizar uma nova tentativa pela estrada.

BR 163 (31.01.2011)

Resolvi fazer um reconhecimento prévio acompanhando o Ten Cel Lauro Augusto Andrade PASTOR Almeida na sua inspeção diária à BR-163, que se estende da sede do 8° BEC, em Santarém, até o Britador, situado na BR-230 – Transamazônica. Partimos às 10h00, e, no britador, por volta das 14h00, o Soldado Flávio Vianna de Almeida informou que conhecia as tais cavernas e planejei uma nova incursão às mesmas. Percorrendo o trecho, pude ver orgulhoso o trabalho anônimo dos nossos Batalhões de Engenharia.

As chuvas torrenciais exigiam medidas drásticas para manter o tráfego de uma estrada extremamente importante, construída sob as condições mais adversas. Infelizmente, caminhões pesados passam, sem qualquer controle, pelas barreiras das coniventes e omissas autoridades rodoviárias, danificando o leito da estrada ainda em construção.

Berço da Humanidade (01/02.02.2011) 

Acompanhei, novamente, o Ten Cel Pastor na sua jornada e pernoitei em Rurópolis, no Hotel Presidente Médici, que contou na sua inauguração com a presença do próprio Presidente. O belo hotel que teve sua época áurea durante a construção da Transamazônica foi, há pouco mais de uma década, entregue aos ladrões e depredadores, até que a Prefeitura de Rurópolis resolveu recuperá-lo. As instalações se encontravam em péssimas condições, portas, janelas e todo o mobiliário tinham sido roubados. A restauração, oportuna e necessária, do belo patrimônio foi mal feita e a antiga construção perdeu muito de seu antigo esplendor. As instalações, embora simples, são confortáveis. De manhã cedo, guiados pelo Soldado Vianna, partimos de Rurópolis rumo ao km 77 da BR-230. A estrada apresenta perfeitas condições de tráfego e os motoristas abusam da velocidade. Ao chegarmos ao km 77 avistamos uma pequena placa manuscrita, à direita, que anunciava “Cavernas”, seguimos a placa e avistamos, em seguida, o senhor José Frederico Henn, desobstruindo um bueiro na estrada de acesso à sua propriedade. Conversamos com o Henn, um simpático colono e um dos pioneiros a chegar a estas plagas, em 18.10.1972, trazendo a esposa e dois filhos, vindo de Santa Cruz, RS.

Henn confirmou a existência das cavernas e disse que havia doado a área à Prelazia de Itaituba que ali realizava seus encontros religiosos, mas que estávamos autorizados a entrar. A estrada permite acesso de veículos até as proximidades do Rio e a trilha que conduz às cavernas localizadas à direita das construções da Prelazia está coberta de brita fina para diminuir os riscos de tombos.

Chegamos, sem dificuldade, ao nosso objetivo cuja conformação lembrava a descrição do Padre Daniel. Embora o conjunto esteja parcialmente coberto pelas águas, pode-se entrar, em qualquer época, no salão de jusante cuja altura inicial, de mais de quatro metros, vai diminuindo à medida que se progride no estreito e curvo corredor de aproximadamente 12 m de comprimento. Não pude explorar o complexo mais alto e mais profundo, de montante, tendo em vista que as águas, na altura do meu peito, bloqueavam o extenso túnel que, como o outro apresentava uma suave curva para a direita. Eu estava emocionado, havíamos, finalmente, chegado ao “Berço da Humanidade” (04°09’32,8” S / 55°25’ O).

Gostaria de explorar o túnel maior, no verão, onde, segundo Henn, já tinham encontrado um pequeno jacaré e uma paca no seu interior, infelizmente minhas atividades escolares não me permitiam. Henn informou também que ninguém tinha conseguido encontrar o fim do referido túnel. A calha do Tapajós é rica em cavernas, mas essa em especial despertara meu interesse graças ao relato do Padre Daniel e a dificuldade de se determinar sua exata localização, tendo em vista as vagas referências disponíveis.

Berço da Humanidade (04.10.2013)

Realizei neste ano (2013) a tão aguardada navegação pelo Tapajós, em pleno verão amazônico com o intuito de pesquisar, novamente, o local na vazante do Rio Cupari. No dia 04.10.2013, visitei a área acompanhado de meus caros amigos expedicionários, do Grupo Fluvial do 8°BEC, Cabo de Engenharia Mário Elder Guimarães Marinho e o Soldado Eng Marçal Washington Barbosa Santos e conduzidos pelo motorista do Subcomandante do Batalhão – TCel Eng Artur Clécio Aragão de Miranda, o Sd Eng Ademario César Guerra Costa Neto.

Chegamos por volta das onze horas e, mesmo em jejum, não consegui ingerir qualquer alimento tal era minha ansiedade. Tomei um copo de refrigerante, desci célere pela trilha até as cavernas e fiquei satisfeito com o que vi – as águas estavam suficientemente baixas para que pudéssemos adentrar nas furnas de montante, submersas em 2011.

A grande lapa mencionada por Daniel é uma grande caverna de arenito calcário contendo grandes quantidades de óxido de ferro que há milhares de anos sofreu infiltração d’água (ele menciona que a formação é de pedra e cal) criando estalactites e estalagmites de beleza singular de cor avermelhada em virtude da presença do óxido ferroso. As grandes colunas e corredores de calcário de tons avermelhados suavemente matizados, magnificamente torneados estimularam nossos sentidos e fizeram emergir de nosso íntimo os sentimentos mais elevados e, evidentemente, esta sensação não deve ter sido diferente da experimentada pelos observadores pretéritos.

É lógico, portanto, que a grandiosidade e perfeição destas formações naturais tenham estimulado a imaginação das pessoas produzindo relatos fantásticos que, por fim, chegaram aos ouvidos atentos do Padre João Daniel.

As formações que partem do teto da caverna para baixo são denominadas estalactites, e estalagmites quando crescem a partir do chão para cima. Ambas são produzidas pelo gotejamento d’água através das fendas das paredes das cavernas de rocha calcária, carregando consigo parte deste calcário. Um ínfimo anel de calcita, quando em contato com o ar, precipita-se na base de cada gota. Cada uma dá origem a um novo e diminuto anel, consolidando formas cônicas e pontiagudas denominadas estalactites. As estalagmites, por sua vez, possuem forma mais grosseira, mais arredondada e menos pontiaguda com a tendência de se unir à estalactite dando origem a uma coluna.

O processo de crescimento destes elementos é demorado e ininterrupto variando entre 0,01 mm a 3 mm por ano dependendo da quantidade d’água, velocidade de gotejamento, pureza do calcário e temperatura. Quando as estalactites seguem as frestas do teto da caverna atingem dimensões bem maiores como as que observamos no Berço da humanidade, formando verdadeiros corredores.

Bibliografia

DANIEL, João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editora da Biblioteca Nacional, 1976.

COUDREAU, Henri Anatole. Viagem ao Tapajós – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1940.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.07.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  •  Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].