Momentos Transcendentais no Rio Negro
Parte III

Equipe de Apoio à Deriva

Combinei com o Teixeira que me aguardasse por volta das 13h15 a montante ou a jusante de uma grande ilha, a uns oito quilômetros de onde estávamos e de onde continuaríamos seguindo a rota pelo Canal.

O Teixeira, contrariando o combinado, ancorou no lado Meridional da ilha e eu passei pelo Setentrional, de modo que não nos avistamos. Aportei logo abaixo, em uma ilha com grande areal, descansei durante alguns minutos e, depois de chamar, insistentemente, sem sucesso, pela equipe de apoio, segui avante. A opção de acampamento teria de ser nas praias, já que as ilhas eram de mata fechada; tinha um saquinho com algumas castanhas e isso teria de bastar até o dia seguinte. Resolvi remar forte para adiantar minha jornada quando, depois de remar por uma hora, avistei um barranco nu com algo que parecia, de longe, uma roupa pendurada no varal. Remei freneticamente e aportei na Comunidade Nova Vida às 14h36 depois de navegar 08h06 por 53 km.

Comunidade Nova Vida 

A Comunidade é formada por quatro famílias de piaçabeiros que tinham sido escorraçados da região do Rio Preto (Santa Isabel do Rio Negro), em mais um dos inúmeros desmandos promovidos pela famigerada FUNAI em suas desastrosas e descabidas demarcações de terras indígenas. Hoje, os ex-piaçabeiros dedicam-se à pesca e à venda de peixe salgado sobrevivendo nesta região erma e distante.

Estavam na Comunidade apenas Dona Anésia (esposa de Ocino), suas duas filhas (Ana Cláudia e Ana Paula) e os dois netos (Mateus e Tereza). Com a cortesia peculiar dos ribeirinhos, mandou as crianças matarem um frango e me proporcionou um belo jantar.

Dona Anésia usa uma grande moringa de barro para refrescar e clarear, por sedimentação, as águas do Negro e usa cloro para tornar a água potável. Foi a primeira vez em minhas jornadas, que se iniciaram no Solimões, que alguém me dispensou tal atenção.

A limpeza das instalações mostrava a preocupação com a higiene daquela “amazona” que, com invulgar alegria e fraternidade, recebia eventualmente navegadores que se extraviavam nas redondezas. As palafitas foram erguidas com capricho e cobertas com palha de paxiúba, garantindo o conforto de seus moradores. As crianças criavam três gaivotas esfomeadas que tinham de ser alimentadas periodicamente. Para isso, as crianças estenderam uma pequena malhadeira à frente do barranco e volta e meia retiravam alguns pequenos peixes que eram picados para alimentar as vorazes aves.

O Voo da Gaivota ‒ Anseio de Liberdade  

As pequenas e irrequietas gaivotas fizeram-me recordar outras tantas que encantaram meus amazônicos dias. Perfiladas nas praias, surfando nos troncos levados pela torrente ou simplesmente realizando acrobacias no anil infinito, elas dão um toque de beleza, serenidade ou, quando assustadas, fogem em gritos estridentes anunciando a chegada de forasteiros em seus domínios.

A beleza contagiante dos momentos que vivenciei junto a esses pequenos seres alados transportaram-me para um belo poema escrito pela poetisa Regina de Nazaré Silva Falcão (Nagire) o qual reproduzo uma parte.

[…] a grandiosidade do espetáculo proporcionado pelo Astro-Rei, em cumprimento ao labor divino do Supremo Arquiteto.

É nesse momento mágico, de tocante candura, quando a Natureza me parece em prece ao Criador, que a gaivota amazônica surge dos céus, no seu derradeiro voo do dia.

Com movimentos leves, graciosos, como se acompanhassem o ritmo de uma valsa, ela desliza no ar desfilando sua plumagem branco-acinzentada com invejável desenvoltura.

Escorrega brandamente naquele espaço iluminado, planando, vencendo os ventos contrários em sua aprimorada acrobacia, deixando em qualquer expectador um convite hipnótico para “viajar” nos desenhos sinuosos do seu voo. Nele se traduz em seu sentido maior, a própria liberdade, liberdade tão ansiada por muitos.

A sensação de voar espelha esse sentimento de liberdade absoluta, profundamente arraigado no ser humano, mas que jamais terá condições de ser usufruído na íntegra.

Teto de Estrelas 

A barraca foi montada sem o toldo superior, para que eu pudesse olhar as estrelas. A Lua, quase cheia, me acordou no meio da noite e pude contar seis estrelas cadentes que cortaram o céu rumo Norte. As estrelas brilhavam com uma intensidade sem par; não existiam as luzes das grandes metrópoles para ofuscá-las e elas cintilavam sobre o manto escuro e aveludado da noite. O dia que se prenunciara tenebroso se mostrou pleno de fraternidade, amor e beleza.

Amazônica Hospitalidade

Acordei às 05h30, desmontei o acampamento e carreguei o caiaque depois de tomar um banho no Rio. Dona Anésia convidou-me para tomar um café com bolinhos fritos de trigo e embrulhou alguns para a viagem, que seriam muito bem-vindos caso não encontrasse a minha equipe de apoio.

Despedi-me da gentil senhora e de suas duas filhas e casal de netos antes de partir. Mais uma vez eu fora contemplado com a amazônica hospitalidade e isso me enchia de esperança na humanidade das pessoas.

É impressionante verificar como o espírito cristão está presente nos corações e almas ribeirinhos. A maneira afável como me acolheu dona Anésia e seus familiares é uma demonstração eloquente dessa ternura infinda que está impregnada na alma dos povos da floresta. Embora tenha recebido carinho análogo em minha descida pelo Solimões, continuo a me emocionar cada vez que isto acontece.

Partida (02.01.2010)

Parti às 06h27 e, logo no início da jornada, avistei um enorme gafanhoto, ainda vivo, sobre as águas. Já havia visto diversos deles voando ou mortos levados pela torrente. Recolhi o grande inseto e o coloquei sobre o convés; ele se arrastou vagarosamente e se postou sobre a proa, onde permaneceu imóvel durante todo o tempo. Depois de 01h15 de navegação, acostei e levei meu parceiro até um arbusto da ilha, colocando-o no galho mais forte.

Gostaria de saber o que leva esses robustos animais a atravessar os enormes canais arriscando a vida. Seria um apelo à sobrevivência dos mais fortes e capazes? Instinto de reprodução? Não sei…

Aportei, novamente, num enorme banco de areia e estava comparando o terreno com a rota da Companhia de Embarcações do CMA; o trajeto nas cheias passava direto pelo enorme areal e decidi contorná-lo pelo Sul. Quando estava manobrando o caiaque, vinha chegando minha equipe de apoio. Foi uma visão reconfortante; ofereci uns bolinhos preparados pela Dona Anésia e comi algumas frutas que eles tinham colhido. O nosso piloto tinha pescado mais alguns peixes, garantindo a refeição do dia. O Coronel Teixeira prometeu que dali por diante teriam mais cuidado com o trajeto de maneira a não se afastar demais e me perder de vista.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.08.2020um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].