Momentos Transcendentais no Rio Negro
Parte II
Manoel Menezes (“Forrest Gump” Tuiuca)
Menezes, da etnia Tuiuca ([1]), morava num sítio paupérrimo com a esposa, o genro e a filha, que não parecia ter mais de 13 ou 14 anos e já era mãe de quatro crianças. Montei a barraca sob uma rala cobertura de palha e, depois de tomar um revigorante banho e ingerir uma porção de macarrão, crua, estava pronto para conversar e descansar. Fiquei conversando, ou melhor, diria, ouvindo meu novo amigo. Menezes falou ininterruptamente sobre o Nhengatu (língua geral) que dominava perfeitamente embora tivesse certa dificuldade em se expressar na sua própria língua.
A língua Tuiuca chegou a ser considerada, pela UNESCO, há algum tempo atrás, como uma das mais vulneráveis no mundo.
Hoje, graças a experiências bem sucedidas na área da educação, como o da Escola Indígena Municipal Utapinopona ([2]), houve uma significativa reversão no processo de perda de identidade linguística e hoje a grande maioria dos cerca de 900 Tuiucas falam sua língua mãe.
O senhor Menezes contou-me que havia se desentendido com um mercador que lhe comprava os produtos artesanais que produzia no seu roçado nas cabeceiras do Tiquié e sentindo-se ameaçado pelo comerciante, refugiou-se naquela bela região do Rio Negro.
Falou das dificuldades para manter seu roçado, de sua vida desde Pari da Cachoeira até as cercanias de Boa Vista, da preparação do caxirí… Fiz algumas observações, fáceis de serem executadas, de como ele deveria proceder em relação ao plantio de árvores frutíferas, preparando as cavas previamente com matéria orgânica já que as margens do Negro são muito pobres.
Lenda de Como os “Tuiucas” Viraram Macacos
Menezes me contagiou com seu espírito hospitaleiro e sua humildade. Depois de conversarmos longamente sobre diversos assuntos, perguntei se ele poderia me contar alguma lenda Tuiuca, o que ele fez sem pestanejar:
Há muito, muito tempo atrás, um grupo de Tuiucas colhia frutas em um imenso miritizal ([3]) onde também se encontrava, escondido, “Uakti”, o diabo. Entretidos com a colheita dos frutos, os índios não perceberam que a noite se avizinhava e, quando escureceu, por mais que procurassem, não conseguiram encontrar o caminho de volta resolvendo, por segurança, dormir por ali mesmo. O “Uakti” aguardou todos dormirem profundamente para se aproximar silenciosamente. Depois de soprar-lhes no rosto para anestesiá-los, arrancou-lhes os olhos, sem acordá-los. Um dos Tuiucas, porém, estava acordado e a este o diabo não fez nenhum mal.
Ao amanhecer, os Tuiucas, cujos olhos haviam sido arrancados, nada enxergavam e começaram a reclamar que o dia custava a raiar e que a noite era longa demais. O Tuiuca que permanecera acordado contou-lhes tudo o que acontecera à noite. Os Tuiucas cegos começaram a chorar e a maldizer sua triste sina, pedindo ao companheiro que os levasse de volta para casa. O Tuiuca cortou, então, um cipó e determinou que todos o agarrassem para que ele os conduzisse de volta à Aldeia.
Durante o deslocamento, os Tuiucas infelizes pediram que o seu guia lhes conseguisse olhos postiços para que não fossem objeto de escárnio quando chegassem à Aldeia. O Tuiuca foi à procura de sementes que parecessem com os olhos humanos e entregou duas a cada um deles. Depois de colocarem seus falsos olhos, os Tuiucas voltaram a agarrar o cipó. O Tuiuca cortou o cipó e fugiu abandonando-os à própria sorte. Os Tuiucas desesperados subiram nas árvores lamentando-se e acabaram se transformando em macacos barrigudos.
Aquele único Tuiuca que se salvou originou toda a linhagem dos Tuiucas que habitavam as cabeceiras do Rio Tiquié. (Manoel Menezes)
Partida para Boa Vista (28.12.2009)
Um dos netos do senhor Menezes, o caçula, apresentava fortes sinais de gripe e, a pedido dos pais, deixei com o Manoel todos os comprimidos para gripe de minha caixa de primeiros socorros. Recomendei que os administrasse depois das refeições e, inocentemente, perguntei a ele qual era, normalmente, o horário em que se alimentavam e ele respondeu-me com a tranquilidade de um asceta ‒ “quando temos o que comer”. Chocado com a penúria daquela gente, deixei-lhe todo meu estoque de alimentos.
Na maioria das vezes, Menezes e sua família tinham apenas o chibé (tiquira ou jacuba) para saciar a fome. O chibé nada mais é que um alimento levemente ácido resultante da mistura da farinha de mandioca com água. A farinha incha com água apresentando a textura de um mingau que é consumido para mitigar a fome.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.08.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Tuiuca: é um dos grupos linguísticos “Tucano Oriental” do Alto Rio Negro. Atualmente os Tuiucas estão divididos em dois grupos que habitam o alto Tiquié e o Igarapé Inambu, afluente do Papuri. Estes grupos, embora geograficamente próximos, mantêm pouco contato.
[2] Escola Indígena Municipal Utapinopona: a escola Tuiuca é uma escola Ocidental ressignificada que permite refletir e recriar as identidades; espaço de negociação de valores e práticas culturais Tuiuca e de outros povos; é um dos espaços que favorece a construção de novas relações humanas, produção de novos conhecimentos e acesso a outros recursos. (REZENDE)
[3] Miriti, buriti (Mauritia): é uma das mais belas palmeiras, com seus cachos pendentes de frutos avermelhados e suas enormes folhas abertas, em forma de leque, cortadas em fitas, cada uma das quais, na opinião de Wallace, constituindo a carga de um homem. (AGASSIZ)
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