Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XII

BANDEIRA” de Francisco de Mello Palheta – IV

Começamos a passar a 9 de julho e a 12 do dito é que saímos dela, e logo avistamos o apartamento ([1]) do Rio ([2]) que vai ao Sul, para onde seguíamos a nossa jornada, deixando o famoso Rio da Madeira a Oeste, entramos pelo dito a que os espanhóis chamam Mamuré ([3]), e neste mesmo dia passamos dele a primeira Cachoeira ([4]).

Sendo pela manhã do dia seguinte depois de Missa partimos a passar a dita temeridade da Cachoeira, e posta a galeota do Cabo para ser a primeira na passagem, não foi possível, porque assim que fomos puxando por ela, para subir um degrau, que só teria seis palmos de altura, por ser muito direita a queda que fazia a água com a velocidade que despenha ([5]) a fúria da correnteza, logo sem mais tempo nem dar tempo se foi a pique largando toda a pobreza que levava dentro em si, sem dar tempo a que lhe pudéssemos acudir, porque inda que fossem as amarras do mais fino linho não poderiam ter mão a estas grandiosas correntes.

Ficou o nosso Cabo nesta alagação destituído de tudo, que uma viagem com dois naufrágios é grande perdição, e sem poder neste sertão remediar-se do preciso; aqui ia morrendo um Soldado afogado se lhe não acudissem; vendo o Principal José Aranha que a primeira se afundava nem por isso deixou de se submeter ao perigo, e querendo passar a sua, lhe disse o Cabo repetidas vezes: quantos hoje hão de ficar órfãos; e indo-se já puxando por duas grossas cordas, tornou a repetir o Cabo aos índios que na galeota iam, que tirassem as camisas para as não perderem; não tinha bem acabado de dizer, quando logo se foi a galeota a pique arrebentando as duas cordas, e por grande diligência do Cabo, a tiramos do fundo do Mar, que já estava cativa das temerárias pedras e soberbas ondas que faz, levantando outra vez ao alto a correnteza que vai de riba.

Aqui obrou Nossa Senhora do Carmo um grande milagre, porque um índio nosso chamado Martinho, por enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos paióis da canoa e escapou sem moléstia quando a canoa se subverteu, de sorte que o susto bastava para molestar.

Estivemos dois dias consertando as duas galeotas e no 3º dia fomos seguindo viagem, sempre levando por proa aquela máquina de pedras e com o trabalho de ir puxando as nossas galeotas até o Porto do gentio chamado Cavaripuna, e como os espias deram com um caminho seguido de gentio, mandou o Cabo uma escolta boa procurando ao Principal daquela nação, e se recolheu a dita escolta com seis pessoas, a saber, um índio de meia idade com dois filhos maiores, duas crianças e a índia mãe desta família.

E vindo estes tais à presença do Cabo, lhes mandou perguntar se entre eles vinha algum Principal, ao que respondeu o índio pai da família que não, e que temido dos brancos de cativá-los, viviam separados, cada um por seu Norte distinguidos e de sua nação, solitário ele vivia naquelas brenhas, mas que sabia que o Principal Capeju, que da outra banda do Rio vivia, desejava muito de ter fala de brancos para se comerciar.

Ouvido pelo Cabo e certificado de seu dizer, lhe perguntou que dias se gastaria a chamar o dito Principal Capeju; disse que quatro dias e que ele mesmo o iria chamar e que esperássemos depois de passada a última Cachoeira ([6]), e que por firmeza de sua palavra deixaria na nossa companhia sua mulher e filhos; despediu o Cabo ao índio [com dois índios mais nossos que lhe falavam a gíria] com bastantes mimos, de ferramentas, facas e avelório aos 18 de julho.

Logo que amanheceu o seguinte dia, nos fomos aposentar na espera do gentio, onde estivemos dez dias e como não vieram, prosseguimos nossa derrota até as Bocas dos Rios de água branca e de água preta, onde chegamos no 1° de agosto.

Este caudaloso Rio d’água preta se aparta do Rio Branco, correndo na Boca a Sueste Quarta de Sul, a cujo Rio chamam os espanhóis Itenis ([7]), e o dito Rio Branco parte a Sudoeste quarta de Oeste, na entrada a que também os espanhóis chamam Mamuré. Entre estes dois Rios nos aposentamos em uma longa Praia de areia e daqui seguimos o Rio Branco por nos parecer mais pequeno [como é] e este declarar sinais de habitado, porque não há estalagem de gente que nele cursa que não tenha cruz. Doutrina seguida em aquela Povoação já seguimos [com estes vestígios] a nossa fatal viagem com a esperança de aproveitar com fruto tanto trabalho e perigos de vida.

E sendo a 6 de agosto, a sentinela que fazia o quarto da lua falou a uma canoa que vinha Rio abaixo com dez índios espanhóis, foi o Cabo em pessoa na sua galeota tomar-lhes o encontro e falar com eles, e trazendo-os para a Praia d’onde estávamos se informou o nosso Cabo cabalmente e tomamos um guia para nos levar seguros ao Porto da grande Povoação de Santa Cruz de Cajuava e, no seguinte dia, por horas de vésperas, encontramos cinco canoas que iam deste Rio Mamuré  para o de Itenis e, assim que nos avistaram, levantaram uma cruz por bandeira e perguntando-nos se éramos cristãos, lhes respondemos que sim e portugueses, a que, sorrindo-se e benzendo-se todos a um tempo: cristãos portugueses? Nós o somos de S. Pedro e, falando com o Cabo, tomamos terra, onde jantamos.

Estiveram conosco este gentio pouco mais de uma hora, e neste limitado prazo tiveram eles e tivemos nós um grande contentamento, de sorte que apagaram-se todos os trabalhos de antes; despediram-se para baixo e nós prosseguimos; e já daqui se não veem matos senão tudo campos gerais assim de uma como de outra parte do Rio e pela terra a dentro.

Pelas 16h00, ouvimos zurros de gado vacum, e ordenou o Cabo fosse o Sargento Damaso Botelho a dar a entrada e lhe recomendou a força da diligência e manifestação ao Regedor ([8]).

Daqui, dizia o guia não chegaremos à Povoação senão amanhã, e como logo ouvido isto, mandou o Cabo se marchasse toda a noite, e se não parasse senão juntos da dita Povoação, aonde esperaria pelo Ajudante, que enviou adiante com a embaixada de sua vinda, o qual chegado pelas 07h00, o levaram pela Povoação dentro os índios, dela com tal amor e cortesia que fazia admirar e, chegando à Praça, falou aos Padres que estavam naquele Colégio, os quais o receberam com repiques de sinos e grande alvoroço daquele povo, mostrando com instrumentos de órgão, cravo e músicas e com clarins e charamelas ([9]) o como nos festejavam alegres. A saudação que os ditos Padres fizeram ao Ajudante foi beijando-lhe a mão com o nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, e o levou para dentro donde estavam mais dois religiosos, dos quais foi abraçado e o levaram para dentro porque se não entendiam nem se podia ouvir a fala de uma pessoa a outra pelo grande rumor da muita gente que a rodeava.

Chegado com os ditos Padres o Ajudante ao sobrado, onde em uma Capelinha estava uma imagem do Senhor Crucificado em um grave ([10]) nicho, que de uma e outra parte tinha janelas rasgadas que caíam sobre o jardim: aqui ajoelhou o Ajudante com uma devida reverência, dando graças a Deus de haver chegado à terra de cristandade com tão bom sucesso depois de tantos trabalhos. Acabada a oração, lhe ofereceram os Padres assento e, pondo-se em silêncio, interrompeu o nosso entrevistado dizendo:

Reverendíssimos Padres, nós somos vassalos do Senhor Rei Dom João V de Portugal que Deus o guarde e por notícias e sinais que se viu neste Rio de muitas cruzes se resolveu o Senhor João de Maia da Gama, nosso Excelentíssimo Governador e Capitão General, a mandar dez galeotas armadas em guerra com infantaria e carabineiros a fazer descobrimento, e trazemos um Sargento-mor por Cabo da tropa, o qual me envia a dizer a Vossas Reverendíssimas que se não alterem, nem a gente deste povo, pois que vem com todo o sossego, paz e quietação até chegar aqui, e por razão de Estado me enviou a dar parte a Vossas Reverendíssimas e ao Regedor deste povo, para que assim se não assustem com a sua entrada.

Respondeu o Padre Miguel Sanches de Aquino que já havia muitos anos esperavam a vinda dos senhores portugueses a aquelas índias, e perguntando que gente trazíamos, lhe deu por conta o nosso Ajudante que 118 pessoas; perguntou se era o Cabo Cavaleiro e lhe foi respondido com a verdade de que era dos Principais da terra na Capitania do Pará.

Perguntou mais se trazíamos Missionário e de que religião, foi-lhe dito que só um clérigo levávamos por Capelão; perguntou mais pelos nomes, o que tudo se lhe disse, principalmente do Cabo, Capitão, Capelão e Ajudante.

Então disse o Padre Miguel Sanches de Aquino que mandava ao Padre Irmão Oliberlo Nogua com Sua Mercê a receber o Cabo, e que estimava muito a sua boa vinda a aquela Povoação e que não só lhe man­dava beijar os pés, mas oferecer-se para lhe obede­cer em tudo, e que entrassem na hora de Deus, que tudo estava sossegado e nem a cortesia dos honra­dos e valorosos portugueses podia em nada alterar os corações e que o seu estava aberto para nele e nos braços o receber com grande gosto; que só tinha o pesar de ser esta vinda em ano tão estéril pela inundação do passado; tornaram a abraçar todos ao nosso Ajudante com demonstrações de muito con­tentamento e debaixo de um chapéu de Sol a uso da terra, o qual é feito de penas de avestruz, acompa­nhado do Padre Irmão, se foram buscando o Porto do desembarque, em busca do Cabo, que o estava es­perando da outra parte do Rio.

Embarcou-se o Ajudante e juntamente o Padre Irmão e Capitães e Alcaides e, se a galera pudera com mais gente, muitos mais iriam nela a receber o Cabo po­rém, nas que se achavam no Porto, também se em­barcaram para acompanhar ao Ajudante e, dando este a senha com um tiro, respondeu a tropa junta com uma descarga ao recebimento do Padre Irmão e, ao salvarem-se com o Cabo, outra; e ultimamen­te, a 3 vivas dos Reis, 3 cargas, abalando-se as ga­leotas da tropa com o mesmo concerto e desfilada ([11]), os mais fomos aportar à Povoação, e já no Porto estariam 2.000 pessoas à nossa espera, para nos cortejarem e, assim com este acompanhamento, entramos pela Povoação, e chegando o nosso Cabo àquela grande Praça do Colégio, vieram os mais Pa­dres a recebê-lo; estavam as 3 portas da Igreja to­das abertas e os sinos se desfaziam com repiques, charamelas, clarins, órgãos e todos os mais instru­mentos e música, que fazia uma grande entoação.

O Altar-mor da Igreja estava ornado e com seis velas de libra acesas, e fazendo oração o nosso Cabo e os mais da sua guarda em ação de graças, entoamos a salva de Nossa Senhora com a sua ladainha e tivemos Missa logo, donde ao levantar a Deus entoamos o “Tantum Ergo” ([12]) e no fim dela o “Bendito”.

O que tudo acabado, vieram os Padres e levaram ao nosso Cabo em braços para uma grande casa, que parece é quarto feito naquele Colégio para hospedar pessoas grandes, onde estava ornado um grande e famoso bufete ([13]) cheio de flores e outras delícias daquelas índias, e a um e outro lado da grande casa tamboretes, catre e rede, à usança da terra, armário com o necessário, e se puseram os Padres a praticar com o nosso Cabo no que a cada um tocava e, sendo horas de jantar, se pôs à mesa onde jantou o nosso Cabo e o Padre Capelão, e os guisados que lhe puseram passaram de trinta iguarias e não vinha vianda alguma que não viesse coberta de flores, e, assim que o nosso Cabo se pôs à mesa, começaram dois índios a tocar harpa e rabeca que certamente enlevavam; os índios é que serviram a mesa sem haver descuido algum nem falta do necessário e com boa compostura e limpeza.

Acabado o Cabo de jantar, se jantou na própria mesa que, acabado de comer a infantaria, vieram os Padres pedir mil perdões ao nosso Cabo do pouco com que se achavam para receber a sua pessoa e tiveram meia hora de conversa os Padres com o nosso Cabo, e se foram recolher até que às 2 horas que tornaram a vir.

A cortesia e o modo e afagos que nos fizeram foi mais de muito e naquelas mesmas horas que nós chegamos se avisaram todas aquelas povoações por terra a cavalo e assim.

Logo a outro dia, pelas 9 horas, chegou o Padre João Baptista de Bosson, sobrinho do Duque de Banhos, o qual é Missionário da Povoação de Santa Ana, veio a cavalo e o acompanhavam seis cavaleiros índios; o modo e o carinho desta grande pessoa foi a maior coisa que vi; logo no outro dia, chegou mais o Padre Gaspar dos Prados; este Padre veio em canoa, da Missão de São Miguel de Moxoquinos; neste mesmo dia, chegou mais o Padre Nicolau de Vargas, da Povoação de São Pedro dos Moxos, e se mais dias estivéramos mais Padres creio chegariam, que a todos os grandes desejos de ver portugueses os fazia vir tão prontos e prestes, e finalmente disse o Padre Nicolau de Vargas que, se nos não topasse ali, havia ir Rio abaixo só para nos ver e falar; mas este o que devia ao sangue português é que o fazia ter este grande desejo.

No dia de São Lourenço, 10 de agosto, rezou o nosso Capelão a Missa da terça neste Santo Colégio de Santa Cruz de Cajuvava, cuja Povoação está situada em 14°30’ ao Sul e a Cidade de Santa Cruz de La Sierra em 17°.

O Governador desta grande Cidade se chama Dom Luiz Alvares Gatto, e o Bispo se chama Dom Leonardo de Valdima Arcaya; este Bispo de três em três anos visita todos os povos que estão situados nos Rios que declara o Mapa incluso deste seu bispado.

Da Cidade de Santa Cruz de La Sierra se seguem estradas ao Reino do Peru, Porto de Mar, cuja Cidade tem Vice-Rei, a quem chamam Dom Thomaz de Espego, tem Arcebispo e Bispo; está logo a grande Cidade de Lima e a Cidade Joam, Cavélica Episcopal, esta outra Cidade chamada Guamanga; também Episcopal, e outra que lhe chamam Cuzco, Corte antiga das Índias, mais a Cidade de La Paz, Episcopal; cuja verdadeira notícia nos deu o Padre Mestre João Baptista de Bosson.

E além do que tenho escrito, me deu a saber o Rio Sará, que fica Leste-Oeste com a Cidade de Lima, e que a água daquele Rio é tão grossa que coalha e faz formar tijolos e que em formas as deixam congelar da sorte que querem, e que tomava a cor parda, muito forte para limpar ferro e muito leve no peso.  (Continua…)

Bibliografia

ABREU, J. Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil – Brasil – São Paulo, SP –Ed. Itatiaia – Edusp, 1989.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Apartamento: desvio.

[2]    Rio: Beni.

[3]    Mamuré: Mamoré.

[4]    Primeira Cachoeira: Lajes.

[5]    Despenha: precipita-se.

[6]    Última Cachoeira: Guajará-mirim.

[7]    Itenis: Guaporé.

[8]    Regedor: antiga autoridade administrativa de uma freguesia.

[9]    Charamelas: instrumento musical de sopro, feito de madeira, com palheta dupla ou simples.

[10]  Grave: digno.

[11]  Desfilada: seguindo ao nosso Cabo.

[12]  Tantum Ergo: palavras iniciais dos dois últimos versos do “Pange Língua”, um Hino Latino Medieval escrito por São Tomás de Aquino.

[13]  Bufete: buffet, bufê.