Falando da Morte

Sempre que posso, no intervalo de minhas remadas intermináveis, leio poesia. A solidão, as paradisíacas paisagens das praias e Ilhas do Guaíba, a suavidade da brisa, o rumor das águas, tudo convida à meditação e embala a alma para estes mágicos devaneios literários.

Torri, símbolo do Xintoísmo (Pixabay)

Sentado nas pedras, na Ilha do Francisco Manoel, lia a poesia “Falando da Morte” do imortal Gabriel José Garcia Márquez:

Aos homens, lhes provaria como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar… Aprendi que todo mundo quer viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a escarpa […] (Garcia Márquez)

De repente, minha memória, madrugando no passado, recolheu imagens de uma entrevista que dera a minhas diletas amigas, professoras Silvana e Patrícia, do Clube de História do Colégio Militar de Porto Alegre, a respeito do Projeto-Aventura Desafiando o Rio-Mar.

Na oportunidade, quando me indagaram qual era o meu maior medo, acho que esperavam que fosse algo que atentasse contra a minha vida ou a saúde ao enfrentar os “ermos dos sem fim” da Hileia ou as misteriosas águas do Rio-mar e seus tributários. Quando respondi que era a possibilidade de não concluir o projeto na sua totalidade, elas ficaram surpresas.

Espírito de um Verdadeiro Naturalista

A canoagem estimula a harmonia entre a natureza e o canoísta. Nas minhas jornadas aproveito esta conexão com o mundo natural para me purificar, alcançar outros níveis de consciência, refletir e meditar. As fantásticas e aprazíveis paisagens, a amplitude do horizonte proporcionam uma sensação de harmonia indescritível, sagrada mesmo. Nestas horas sinto que Ele me acolhe com carinho. Não preciso, absolutamente, de templos construídos pelos homens, nem de religiões tão distanciadas da palavras de seus profetas. Nestas horas adentro solenemente nos umbrais de um templo místico e avisto, extasiado, a “Terceira Margem do Rio”.  

Como deixar de ouvir o canto do sabiá, o pio da coruja, o coaxar do sapo e das pererecas, o cricri dos grilos, o estrondo das cachoeiras e o murmúrio dos riachos, o rosnar da onça, os gritos dos macaquinhos e o ronco dos guaribas. Sentir a maciez dos musgos e das pétalas das orquídeas e outras flores, o ardor da urtiga, os espinhos das palmeiras e gravatás. (Carla Abreu Soares Aquino)

Certa feita, fui chamado de “Naturalista” pelo Professor Dr. Rualdo Menegat, do Instituto de Geociências da UFRGS. Na época, ele solicitava autorização para reproduzir trecho de um artigo meu sobre o Guaíba.

Refletindo um pouco sobre o termo “Naturalista”, fiquei imaginando se eu era realmente digno de ostentá-lo. Acho que alguns fatores importantes devem ser considerados antes de fazê-lo, o primeiro, e fundamental, é o amor pela natureza; outro, é ser capaz sentir a influência sobre os seres vivos ou inanimados, de cada raio de luz filtrado pelas diáfanas nuvens e, por vezes, multiplicado pelas copas frondosas dos seculares colossos das florestas. Teríamos ainda uma relação infindável de considerações a levar em conta que deveriam caracterizar o “Naturalista”.

Infelizmente, nos dias de hoje, a extrema especialização acadêmica e o rigor científico são colocados acima de cada um destes requisitos. Na verdade, o mais importante, para o cientista da natureza, é a capacidade de interagir com o meio ambiente que o cerca. De sentir os cheiros, as cores, de viajar no tempo e no espaço, observando tudo que o cerca não apenas com os olhos acorrentados ao presente, mas de ser capaz de recuar e avançar no túnel do tempo para poder entender a evolução dos elementos que o cercam. De se emocionar com o alvorecer e o ocaso de cada dia, de extasiar-se com as sonatas inéditas que emanam dos animais, de encantar-se com as acrobacias das aves…

Embora considere que possa me enquadrar em algumas das propostas supracitadas, acho que me falta o conhecimento holístico que possuíam os pesquisadores de outrora. Mesmo quando eram militares com missões eminentemente técnicas, como demarcações de fronteiras ou lançamento de linhas telegráficas, eram capazes de fazer avaliações sobre antropologia, ciências físicas e biológicas etc.

Embora muitas vezes as observações e relatos do “Naturalista” precedam as leituras, o desejável é que, mesmo que a observação tenha sido precedida pelo estudo minucioso de bibliografia, e seja capaz, através de um espírito crítico acendrado, desvincular-se do conhecimento alheio para não enveredar pelas mesmas amareladas páginas sem nada acrescentar de novo. A pesquisadora e Naturalista Carla Abreu Soares Aquino na sua tese sobre a “preguiça comum” faz algumas reflexões bastante interessantes a respeito do verdadeiro naturalista:

O “Naturalista” nato adquire seus conhecimentos em contato com a natureza. O profissional passa pelos bancos escolares, onde nem sempre obtém conhecimento geral e global da natureza e sim de fragmentos, na maioria das vezes sem a perspectiva do todo.

Esta assertiva não quer dizer que o estudo das partes, efetuado nas escolas, universidades e instituições de pesquisa não seja válido. Pelo contrário. Mas não forma o naturalista. Os profissionais cada vez mais isolam-se e protegem-se no casulo da “civilização de laboratório”. São cientistas, mas não devem ser chamados de “Naturalistas”. Estão ligados ao cordão umbilical de fórmulas e formulários, bolsas e relatórios. Presos a engrenagens burocráticas crescentes, anunciadoras de que os meios justificam os fins, estes nem sempre alcançados. […]

A divulgação do que é simples é vestida com uma linguagem complicada, inacessível aos não iniciados: biologês, geologês, etc. Assim, não alcança os objetivos perseguidos consciente ou inconscientemente pelo observador. Que diferença dos textos dos grandes “Naturalistas” e cientistas europeus de menos de um século atrás, que lançaram as bases da ciência atual! Que falta eles fazem! Muitos “Naturalistas” natos desistem de transmitir a outrem o que observaram, frente a essas barreiras com sua ortodoxia […]

Como colocar nessa camisa de força as sensações mencionadas de início? Como encaixá-las no matematismo? ([1]) Alguns “Naturalistas”, contudo, têm coragem para desafiar a corrente. (AQUINO)

Relatos Pretéritos

Quantos naturalistas hodiernos seriam capazes de descrever as raízes aéreas como Spruce o faz nas suas “Notas de um botânico na Amazônia”?

Notas de um botânico na Amazônia (Spruce).

A narrativa, ao mesmo tempo pragmática e poética, empolga quem a lê e, ao mesmo que transporta o leitor para o seio da mata, projeta diante dele um filme mágico, em imagens aceleradas, reproduzindo todo o processo de crescimento das raízes das figueiras desde sua germinação até o estrangulamento final da árvore hospedeira

Richard Spruce (1854)

Nas Moráceas, especialmente nas figueiras parasitárias, temos outro tipo de sapopemas, cuja origem é óbvia. Os excrementos de aves contendo sementes dos figos que lhes serviram de alimento caem numa forquilha da árvore, ou mesmo em seu tronco nu ou nos seus galhos, aos quais adere. Ali a semente germina e, à medida que seu caule cresce para cima, suas raízes, em forma de bandeja, e que, caso a árvore hospedeira seja delgada, acabam por se transformar numa bainha, vão descendo, divergindo um pouco da vertical para todos os lados, bifurcando-se aqui e ali, mas sempre buscando o chão. Caso se formem bem alto, essas bifurcações vão-se repetindo uma, duas ou mais vezes, conferindo ao conjunto a aparência de pares de pernas exploradoras, que estariam descendo de uma habitação na qual teriam entrado não se sabe como, e que agora tateiam o chão com os dedos. Ao atingirem o solo, enfiam-se nele profundamente, aumentando aos poucos em largura pela adição de matéria orgânica a sua borda externa, porém conservando praticamente a mesma espessura ao longo de seu comprimento, e desse modo formando umas espécies de contrafortes tabulares. Depois de ter encontrado esses pontos de apoio independentes, o parasito se instala à vontade sobre o tronco amigo que o acolheu, e, já que seu apoio agora se tornou dispensável, costuma sufocá-lo ingratamente num abraço traiçoeiro, até que ele venha a morrer. […]

Somente umas poucas figueiras se desenvolvem desse modo que acabamos de escrever. Outras deitam raízes que se ramificam em espirais, emaranhando-se umas nas outras, até cingir o tronco de uma árvore, formando uma rede tenaz que impede efetivamente seu crescimento ulterior, e que acaba por sufocá-la. Outras emitem rumo ao solo raízes parecidas com cordas, que pendem frouxamente, a princípio, mas que aos poucos se vão tornando retesadas e rígidas. (SPRUCE)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.07.2020 um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

SPRUCE, Richard. Notas de um Botânico na Amazônia ‒ Brasil ‒ Belo Horizonte, MG ‒ Editora Itatiaia, 2006.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;    

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Matematismo: doutrina que defende que tudo que acontece no mundo pode ser entendido por meio da matemática e obedece a leis matemáticas.