Pistoleiros atiraram 29 vezes contra a barreira sanitária dos Kayapó, que foi instalada para prevenir o vírus da Covid-19
Cuiabá (MT) – Dois homens armados tentaram invadir com uma camionete a Terra Indígena Capoto/Jarina, do povo Mebêngôkre Kayapó, onde vive o cacique Raoni Metuktire – mundialmente reconhecido pela defesa dos povos indígenas e da Amazônia. Na noite da última segunda-feira (24), os pistoleiros atiraram 29 vezes contra a barreira sanitária montada pelos indígenas na entrada da aldeia Piaraçu para evitar a disseminação do novo coronavírus nas aldeias. Ninguém ficou ferido.
“A nossa preocupação é com Covid-19 e de repente aconteceu esse atentado contra nós”, lamentou Megaron Txucarramãe, uma das mais importantes lideranças Kayapó. A barreira tenta manter o isolamento social para os 2.423 indígenas do território, distante a 931 quilômetros de Cuiabá.
A Polícia Civil de Mato Grosso suspeita que os mandantes sejam produtores rurais inconformados com a barreira sanitária, que impede o acesso ao rio Xingu e rodovias. Pelas rodovias, como a MT-322, escoa a produção de soja, milho e algodão. Policiais ouvidos pela agência Amazônia Real suspeitam de crime por encomenda.
“Não consigo ver outro motivo pra isso [atentado], pois há um debate muito grande em torno dessa barreira. Produtores rurais e empresários do setor de alimentos e do ramo atacadista pressionam pelo fim da barreira sanitária e a retomada pelo serviço de transporte de balsa”, afirmou Edson Araceli Santini, coordenador do Instituto Raoni.
O cacique Raoni, de 90 anos, ainda não se pronunciou sobre o atentado ao seu território. No mês passado ele foi internado para tratamento de saúde e está em recuperação na aldeia Metuktire, que fica na TI Capoto-Jarina.
A barreira sanitária foi instalada em 22 de março a cerca de 5 quilômetros da Terra Indígena Capoto/Jarina. Ela impede o acesso de carros e caminhões ao serviço de balsas sobre o Rio Xingu, que na região funciona como uma extensão da rodovia MT-322 – um entreposto comercial do Norte do Estado. As balsas ficam dentro do território e o serviço de transporte é administrado pelos indígenas.
Lideranças indígenas ouvidas pela reportagem afirmam que os homens arrombaram a barreira a tiros e invadiram o território com o veículo até chegarem na entrada da aldeia Piaraçu, onde vivem 327 pessoas, inclusive uma das netas do Raoni. Para a Polícia Civil de São José do Xingu (MT), que investiga o caso, o que houve foi uma tentativa frustrada de invasão.
Papre Kayapó, uma das lideranças de Capoto/Jarina, disse à agência Amazônia Real que dois pistoleiros foram vistos por um motorista do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) e por um morador da aldeia Piaraçu. Eles estavam saindo de carro da comunidade para esperar na porteira de isolamento um indígena que havia ido mais cedo para cidade, mas demorava a retornar. Nesse trajeto, avistaram uma camionete Toyota/Hilux, de cor preta, que seguia em direção a Piaraçu. Papre contou que o motorista do Dsei chegou a dar sinal de luz com o farol para que a camionete parasse.
“Mas os caras que estavam na Hilux passaram por ele numa velocidade de 120 quilômetros por hora. O motorista pensou de que era algum carro de frete, mas a porteira estava fechada”, afirmou Papre. Ainda segundo seu relato, os dois homens chegaram até a segunda porteira da TI, e viram que também estava fechada. No retorno, encontraram-se novamente com o carro do Dsei Kayapó. “Eles perguntaram se a balsa estava atravessando e o motorista respondeu que não. Nisso o cara fechou o vidro do carro preto e acelerou. O carro da saúde tentou alcançar, mas não conseguiu.”
Ele disse que quando o motorista da saúde indígena e o morador da aldeia chegaram até a porteira principal viram muitas cápsulas espalhadas pelo chão e a madeira da porteira cravejada com marcas de bala. “Eles voltaram para aldeia e nos comunicaram para que entrássemos em contato com a polícia local”, destacou Prape.
De acordo com uma nota de repúdio do Instituto Raoni – escrita a partir dos relatos dos indígenas – foram efetuados 29 disparos durante o atentado à TI Capoto/Jarina. “De imediato, os indígenas estão mantendo distância da entrada do território para que não sejam surpreendidos por um novo ataque. O Instituto Raoni repudia toda e qualquer manifestação de violência, desrespeito e intolerância contra os indígenas e exige uma resposta das autoridades em relação a esse ataque”, finaliza a nota.
De acordo com a Rede Xingu+, que articula as comunidades que fazem parte do chamado Corredor Xingu, a TI Capoto/Jarina tem 114 casos de coronavírus e duas mortes. Os dados foram sistematizados a partir das informações coletadas dos boletins epidemiológicos do Dsei Kayapó do Mato Grosso. A última atualização é de segunda-feira (24).
Já em São José do Xingu, distante 23 quilômetros da TI, há mais de 50 pessoas infectadas pela Covid-19 e três óbitos, de acordo com o levantamento “Covid Fora da Aldeias” do Instituto Centro de Vida (ICV).
Barreira divide opiniões
Sem acesso ao trecho bloqueado pelos indígenas, caminhões que transportam alimentos e produtos da agropecuária e do agronegócio, como a carne bovina, a soja e o milho, precisam dar uma grande volta, passando por várias rodovias, para chegar até o outro lado, na BR-163, que liga Mato Grosso ao Pará. “Os produtores dependem do transporte de balsa para diminuírem a quilometragem. Então muitas empresas pedem a retomada da travessia”, destacou Edson Santini, coordenador do Instituto Raoni.
A questão da barreira divide opiniões na região, mas, de acordo com Santini, há muitos não indígenas que estão do lado dos Kayapó. “Têm muitos brancos que apoiam a postura dos índios, pois, para eles, já que o governo fez pouca coisa, os índios têm o direito de se protegerem do vírus controlando a entrada do território.”
O que dizem as autoridades?
Policiais civis que pediram para não serem identificados relataram à Amazônia Real o andamento das investigações. Um deles, que atendeu ao chamado dos indígenas, disse que ao chegar no portão de acesso ao Terra Indígena Capoto/Jarina havia várias cápsulas de pistolas pelo chão, uma evidência de tentativa de arrombar o portão. Mas o policial disse que o cadeado estava intacto.
Após o episódio, a Polícia Civil bloqueou a única estrada que dá acesso à cidade de São José do Xingu, com objetivo de localizar os suspeitos. “Acreditamos que depois da ação, eles entraram com a camionete em alguma fazenda. Não tem como eles terem ido para a cidade, porque a estrada está bloqueada por nós”, salientou o policial, acrescentando que a investigação tenta identificar a camionete utilizada na ação criminosa.
Na semana passada, foi realizada uma reunião entre indígenas, membros da Casa Civil do governo estadual, representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Mato Grosso, para tentar pôr fim à suspensão da operação das balsas que fazem a travessia do rio Xingu, em São José do Xingu. A intenção da reunião foi discutir a retomada das atividades da balsa para liberar o trânsito na MT-322.
Mas segundo nota divulgada pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (Sinfra), não houve avanço no encontro, pois os kayapós “não abrem mão da operação das balsas”. A Sinfra ressaltou que os indígenas também não querem que o Estado terceirize o serviço, mesmo que de forma temporária. “Desse modo, o governo segue em tratativas com a Funai para que o órgão auxilie a solucionar essa situação, uma vez que a balsa está localizada em terra indígena”, reforçou o documento da Seinfra.
ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: AMAZÔNIA REAL
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