Números não revelam drama que lideranças vêm denunciando: a cada indígena morto, perde-se uma biblioteca, um guardião dos saberes tradicionais de cada povo do Rio Negro
São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, atingiu na semana passada a triste marca de 50 mortes provocadas pela Covid-19. Na terça-feira (25/08), já havia 51 pessoas falecidas. O município tem a maior concentração de população indígena no país, o grupo mais afetado pela pandemia: pelo menos 44 pessoas que morreram após contraírem o novo coronavírus, o que corresponde a 86% do total, eram indígenas de etnias como Baré, Baniwa, Tukano, Wanano, Piratapuia, Tariano e Dessano.
Como os idosos estão no grupo de risco da Covid-19, os anciãos indígenas são as principais vítimas. Entre os mortos em São Gabriel, 69% têm 65 anos ou mais, ou seja, dos 51 óbitos, 35 ocorreram entre pessoas com 65 anos ou mais, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.
Esses números ajudam a mostrar a dimensão da pandemia e como os indígenas vêm sendo atingidos, mas não contam a história dessas pessoas. Não falam, por exemplo, da dor dos familiares em não prestarem as homenagens a seus mortos devido às exigências sanitárias. Ou que algumas das vítimas encararam a falta de estrutura pública, tendo que enfrentar fila para sacar benefícios ou serem transferidas de hospital pela falta de estrutura adequada no interior. Os dados não revelam o que as lideranças repetem: a cada indígena morto, perde-se uma biblioteca, um guardião de saberes tradicionais.
Histórias de vida
Os números não contam a história de Casimiro Pena, de 81 anos, indígena da etnia Tukano, casado com dona Amália Gonçalves e pai de três filhos. Sobrinha dele, a professora Osmarina Pena é quem revela que Casimiro era agricultor e benzedor.
“Na nossa família, ele era um dos mais velhos. Ele que benzia as crianças, benzia quem adoecia. Ele era a nossa referência. Nós perdemos muito. Alguém vai ter que começar a prática, assumir esse papel. A prática do benzimento é passada de pai para filho, não pode falar para qualquer um”, explica. “Não paro de chorar. Estou até evitando ir ver minha tia”, conta.
A família acredita que Casimiro contraiu a Covid-19 no dia 1º de agosto, ao sair de casa para a sacar o dinheiro da aposentadoria. Começou a piorar justo no Dia dos Pais, em 9 de agosto. Na terça-feira seguinte, foi levado ao Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira (HGuSGC), onde foi internado. Não resistiu e morreu na sexta-feira, sendo o 50º óbito registrado pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa). Ele morava no chamado Ramal, numa área mais afastada do Centro, e vinha conseguindo se proteger.
Durante toda a pandemia, o saque de benefícios sociais, como aposentadoria, Bolsa Família e auxílio emergencial, colocou os indígenas em risco de contaminação pelo novo coronavírus. Muitos aglomeraram-se nas filas da única casa lotérica de São Gabriel para retirar o dinheiro. O Ministério Público Federal (MPF) exigiu que fossem feitas adequações no pagamento aos povos tradicionais, mas o Governo Federal descumpriu a determinação e foi multado pela Justiça. Ainda assim, nada mudou.
“É difícil. O mais difícil nessa história é que a gente agora queria levar o corpo para velar. Mesmo sabendo que a [Organização Mundial de Saúde] OMS não permite, é inaceitável. Não é assim na nossa cultura. Nós fomos educados pelos Salesianos. Aprendemos que temos que despedir. É muito difícil”, disse Osmarina. Casimiro foi sepultado em São Gabriel, com a presença de poucos familiares.
Durante a pandemia, a professora enfrentou o luto pela morte de quatro parentes: seu tio Casimiro, o tio Graciliano Pena — morador de Santa Isabel do Rio Negro — e os parentes mais distantes Sabino Fontes e Higino Tenório. Esse último, da etnia Tuyuka, era um grande conhecedor, educador e líder indígena.
Tristeza do luto
Um dos primeiros óbitos a ser registrado no município pela Covid-19 foi o do professor, especialista em educação e liderança indígena Walter Antônio Benjamin Baniwa, de 44 anos. A morte aconteceu em 4 de maio. A família, aos poucos, vai superando o luto.
A máscara de proteção contra a Covid-19 não é suficiente para esconder a tristeza de Michelle da Silva Luciano, ao relembrar os últimos dias de seu tio. “Ele nunca disse ‘não’ a quem fosse procurar ajuda com ele. Com humildade, simplicidade, ajudou a todo mundo”, afirmou ela, enxugando as lágrimas. Ela conta que o professor Antônio tinha grande envolvimento com sua profissão de educador e que se orgulhava de seus alunos.
Michelle é enfermeira e acompanhou o tio até Manaus, quando ele precisou ser transferido do HGuSGC para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital de Referência Delphina Aziz, na capital. E foi ela a única da família a acompanhar o sepultamento de seu tio.
“No hospital, quando eu vi o médico que cuidou do meu tio, não aguentei e perguntei: o que o senhor fez com ele? Nós dois juntos, eu e o médico, choramos no corredor. Eu pude entrar na UTI e ver meu tio já sem vida. Agradeço por esse momento, por poder vê-lo. E o tempo todo, eu o senti ao meu lado”, disse. Inicialmente, a família resistiu em autorizar a transferência para a capital, mas acabou concordando, pois a equipe médica indicava que ele era jovem e deveria ter a chance de prosseguir com o tratamento. Ao chegar ao hospital em Manaus, ele ainda precisou esperar algumas horas até a liberação da vaga na UTI.
Católica, ela conta que vem encontrando forças na espiritualidade e na família para superar a perda. Como enfermeira, também quer ajudar os parentes. Ela está trabalhando no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei ARN) e atua exatamente na região do Içana, onde seu tio Benjamin foi criado.
Em São Gabriel da Cachoeira há apenas uma unidade hospitalar, o HGuSGC, que é estadual e gerido pelo Exército. Não há UTI na cidade, sendo que os pacientes graves são encaminhados para Manaus, em unidade aeromédica. A viagem demora, em média, duas horas.
Entre a morte do professor Walter Benjamin e do agricultor Casimiro, muitos indígenas foram contaminados. Entre eles o policial aposentado e agricultor Jonas Teles, da etnia Baré, de 88 anos, que faleceu em 7 de junho. Ele era casado com Nely Andrade e tinha 10 filhos.
Portador de deficiência visual, ele preferia não sair de casa mesmo antes da pandemia. Com isso, conseguiu se proteger. Mas a movimentação de familiares acabou o contaminando. Jonas Teles foi internado em São Gabriel da Cachoeira, no HGuSGC, e precisou ser transferido para Manaus, onde morreu. Alguns familiares que moram na capital do Amazonas acompanharam a despedida. O relato é do caminhoneiro Manoel Silva de Souza, filho de Jonas, mora em São Gabriel e não participou do último adeus.
“Ele era a base da família, a gente tinha um guia. Então, a gente perde e fica desorientado. Ele tinha os conhecimentos, sempre falava. A gente sentava para ouvir como era antes, como eles faziam, as dificuldades, como viviam. A gente não acompanha a cultura por necessidade de estar na cidade, temos que migrar e aprender outros costumes. Mas o conhecimento fica, ficou no sangue, nunca deixa de lado”, contou Manoel de Souza.
Ele acredita que faltou informação para os cuidados com os mais vulneráveis. “Está tudo voltando ao normal. É um pouco estranho. Temos que lembrar dos mais vulneráveis”, alertou.
Rotina
Em São Gabriel da Cachoeira, a rotina vai sendo retomada: o comércio está cheio, as pessoas andam sem máscaras, os bares estão animados, o movimento na orla do Rio Negro quase faz esquecer que ainda há uma pandemia. O município foi fortemente atingido pela Covid-19. Até 25 de agosto eram 3.749 casos, com 51 óbitos. O índice de letalidade no município é de 1,36%, número inferior ao de Manaus, que é de 5,38%, conforme levantamento do Governo do Estado de 24 de agosto.
Um dos fundadores da Federação da Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), com sede em São Gabriel da Cachoeira, o professor Gersem Baniwa fala da tristeza do número de mortes causadas pela Covid-19 já estar acima de 50. “Essas mortes são lamentáveis. Talvez desnecessárias. Talvez políticas sérias, responsáveis, com sensibilidade humana, teriam evitado algumas delas”, opinou.
Gersem Baniwa é coordenador do curso de Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), mora em Manaus, mas é nascido e criado em São Gabriel da Cachoeira e vem acompanhando a situação da pandemia na região. Ele tem duas maneiras de olhar para o cenário da pandemia na região.
Para o professor, de um lado, a ausência de políticas públicas ou precariedade das ações impuseram uma dura realidade aos povos indígenas durante a pandemia. Ele cita, por exemplo, a falta de adequações no pagamento do auxílio emergencial, ausência de oferta de UTIs no interior do Amazonas e desinformação – fatores também relatados pelos próprios familiares de vítimas da Covid-19.
Por outro lado, ele aponta que a situação no Rio Negro só não foi pior devido à ação de lideranças indígenas, principalmente a Foirn, e parceiros, como o Instituto Socioambiental (ISA). E reforça a importância da atuação do presidente da Foirn, Marivelton Barroso, da etnia Baré, na coordenação do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 de São Gabriel da Cachoeira.
“A situação não foi tão dramática pela capacidade dos próprios indígenas, de suas organizações, parceiros e alianças. Sempre com uma palavra de vigor e enfrentamento, além das ações. Houve uma ação heroica e solidária das lideranças com os parceiros, além do uso dos conhecimentos tradicionais”, completou Baniwa.
Ele considera que os indígenas criaram um protocolo próprio de combate à Covid-19 usando seus conhecimentos tradicionais. “Essa questão precisa ser valorizada e contada ao mundo. Nesse caos da estrutura política, falta de equipamento, de oxigênio, na ausência de hospitais, houve a aposta dos indígenas naquilo que eles têm, que é o conhecimento tradicional. Todos os indígenas usaram intensamente de seus saberes tradicionais”, ressaltou.
Gersem Baniwa conta que no início da pandemia se desesperou e pensou em um cenário trágico para São Gabriel. Ele tomou a providência de encaminhar a mãe, que estava no município, para a sua comunidade no Médio Içana. “Tive a ilusão de que a doença demoraria a chegar lá. Quando minha mãe chegou lá, já havia casos no Içana”, disse.
Com cerca de 90 anos, ela teve Covid-19. E se recuperou. Laços de solidariedade e remédios tradicionais lhe deram força. “Ela disse que se curou com banhos de casa de cupins”, contou Baniwa. “Primeiro, ela e meu irmão ficaram doentes e foram cuidados por minha tia. Depois, é claro, minha tia se contaminou. E foi cuidada por minha mãe e meu irmão”, relatou. Os três se curaram.
Sobre o processo de reabertura das atividades em São Gabriel da Cachoeira, Gersem Baniwa considera que deve ser feita de forma gradual e acompanhada de campanhas educativas. “Não abro mão de pensar a vida de todos em primeiro lugar”, finalizou.
PUBLICADO EM: JORNAL DA CIÊNCIA
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