Ações da Fiocruz integram pesquisadores em eixos de apoio ao diagnóstico, atenção à saúde, pesquisa, educação, apoio emergencial e comunicação. Objetivo é intensificar a vigilância e aprimorar informações sobre impactos da pandemia nessas populações

Pesquisadores da Fiocruz elaboram plano de apoio ao enfrentamento à Covid-19 junto aos povos indígenas. Um dos objetivos é intensificar a vigilância e aprimorar informações acerca dos impactos da pandemia nessas populações, por meio de seis eixos de atuação. A iniciativa mobilizou diferentes unidades e vice-presidências e foi destacada pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. “Essa é uma ação conjunta da Fundação, presente em todo território nacional, para dar suporte ao enfrentamento desta grave crise humanitária que atinge os povos indígenas no Brasil”, alertou.

O avanço do coronavírus na população indígena vem acompanhado de uma série de desafios. Os povos indígenas são um grupo particularmente vulnerável à Covid-19 devido às elevadas prevalências de diferentes doenças e agravos à saúde (desnutrição e anemia em crianças, doenças infecciosas como malária, tuberculose, hepatite B, hipertensão, diabetes, obesidade e doenças renais) e as prévias dificuldades de acesso ao sistema de saúde, particularmente da atenção especializada. Além disso, os indígenas sofrem com o aumento das queimadas e do desmatamento, com baixo saneamento e, em muitas situações, enfrentam uma enorme fragilidade econômica, o que dificulta a manutenção do isolamento social, que é uma medida fundamental no enfrentamento da pandemia.

“O cenário visto nas populações indígenas é dramático, mas ainda há muito que pode ser feito. É a isto que estamos nos dedicando. A Fiocruz atua há mais de 30 anos na saúde indígena. Agora, estamos integrando diversos eixos de ação para olhar com atenção para as necessidades dessas populações historicamente vulnerabilizadas”, afirma a presidente da Fiocruz.

Por seu histórico de atuação na saúde indígena, recentemente, a Fiocruz foi convocada para compor um grupo de trabalho para dar apoio técnico na elaboração de um plano de enfrentamento e monitoramento da Covid-19 em povos indígenas pela União, após determinação do Superior Tribunal Federal (STF). Pesquisadores da Fiocruz e da Abrasco têm se reunido e devem apresentar suas recomendações no início de agosto.

Desafios na produção da informação

A disparidade de informações sobre os impactos da pandemia nas populações indígenas também reforça essa vulnerabilidade. De acordo com a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Ana Lúcia Pontes, uma questão central é dimensionar a quantidade de casos e óbitos na população indígena. Isso porque, inclusive por diferenças nos procedimentos de registro e na cobertura, há divergência entre os dados oficiais fornecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e os números divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os dados da Sesai, por exemplo, se referem somente à população indígena em territórios indígenas, não incluindo, via de regra, os indígenas que vivem em áreas urbanas ou em territórios fora das terras demarcadas.

Até o dia 27 de julho, a Apib contabilizou 581 mortes por Covid-19 na população indígena, com 18.854 casos confirmados, em 143 povos afetados. Enquanto os dados oficiais da Sesai, em 29 de julho, registraram 15.012 casos confirmados, com 276 óbitos no Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). “Acompanhamos a progressão da Covid-19 na população indígena. Os casos suspeitos são muito baixos, e não sabemos se trata-se de um problema da busca ativa ou falta de acesso aos testes diagnósticos. Além disso, os dados poderiam ser desmembrados, pois a distribuição de casos não é homogênea”, explicou Ana, que também coordena o GT de Saúde Indígena da Abrasco e acompanha as atividades da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas (FPMDPI), que apresentou o projeto de lei 1.142 sancionado com vetos em 8 de julho.

Para a pesquisadora, mais do que as altas taxas de incidência da doença e do número de mortos, é importante olhar para o que isso representa. “Os mais velhos estão morrendo e essa é uma perda imensa. Eles são muitas vezes lideranças que guardam conhecimentos únicos, transmitidos de forma oral intergeracionalmente, e têm papel importante na organização social e luta desses povos”, explica. A médica reforça a necessidade de analisar como diferentes povos estão sendo atingidos, pois alguns grupos podem estar em maior risco. O Brasil possui aproximadamente 300 etnias e 270 línguas faladas, o que representa um dos maiores níveis de sociodiversidade do mundo. “Historicamente os povos indígenas enfrentam epidemias que os colocam em risco de genocídio. Temos uma responsabilidade”, alerta Ana Lúcia Pontes.

Apoio ao diagnóstico

Para aprimorar esse aspecto, o eixo de atuação “apoio ao diagnóstico da Fiocruz” propõe diferentes frentes, como o fortalecimento dos laboratórios Fiocruz para apoio ao diagnóstico molecular e distribuição de testes sorológicos. A primeira iniciativa tem o objetivo garantir suprimento adequado e ágil de insumos para os laboratórios das Unidades Fiocruz e para os pesquisadores que estão atuando nas redes de diagnóstico molecular. A ação é conduzida pelas regionais da Fiocruz da Amazônia, Bahia, Rondônia e Mato Grosso do Sul.

A pesquisadora da Fiocruz Amazônia, Luiza Garnelo, lembra que a subnotificação não é um problema exclusivo do subsistema de saúde indígena, e que esses dados são importantes para entender a dinâmica da pandemia, aprimorar ações de vigilância e da atenção primária em saúde, e para reduzir a mortalidade. “Estamos trabalhando na aquisição de equipamentos de proteção individual e testes para profissionais e agentes de saúde que estão nas comunidades. Uma das iniciativas é capilarizar esse recurso de diagnóstico e trabalhar diretamente com as equipes que atuam nas comunidades. É inverter um fluxo. Depois que o processo está instalado e você tem a gravidade da doença, é que o paciente é removido. A tentativa é interiorizar as ações e reforçar a atenção primária”, comentou Luiza.

A Fiocruz irá distribuir 4 mil testes rápidos para diagnóstico da Covid-19 para os povos indígenas do Alto Rio Negro, do Alto Solimões e do Purus. Os testes foram doados pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) a Fiocruz Amazônia, que coordena as ações na região. Em junho, uma equipe da Fiocruz esteve em São Gabriel da Cachoeira realizando treinamento de multiplicadores para manejo dos testes rápidos para Covid-19. Garnelo enfatiza: “a ideia é que se consiga capilarizar o diagnóstico para facilitar o monitoramento e vigilância numa região remota e de difícil acesso, com aldeias pequenas espalhadas num território extenso, o que dificulta o trabalho das equipes no enfrentamento da Covid-19”.

Os multiplicadores estão se deslocando para implantar essas testagens nas localidades. Após essa fase, os resultados serão transmitidos por radiofonia ou orelhões públicos, únicas formas de comunicação disponíveis. “Com isso, estamos cobrindo cerca de 18 milhões de hectares dos municípios de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel, onde ficam aproximadamente 700 comunidades. Temos o grande desafio de percorrer esses rios para chegar até eles com os devidos cuidados, seguindo os protocolos”, explicou Garnelo.

A proposta é fortalecer a atuação dos Agentes Indígenas de Saúde que atuam em comunidades na região do Alto Rio Negro. A pedido da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), a Fiocruz Amazônia realizou em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Secretaria de Estado de Educação (Seduc/AM) e Distrito Sanitário Especial indígena do Alto Rio Negro (DSEIARN) a elevação da escolaridade e profissionalização técnica de 139 Agentes Comunitários Indígenas de Saúde e estão hoje habilitados a atuar nessas comunidades. “Eles serão ponto focal dessa rede para que os profissionais de nível superior possam se deslocar com mais assertividade”, explica a pesquisadora.

Outros eixos de atuação

Além do eixo de apoio ao diagnóstico, as ações da Fiocruz contemplam iniciativas de atenção à saúde, pesquisa, educação, apoio emergencial e comunicação e informação. Nos eixos educação e comunicação e informação, um grupo de pesquisadores vem atuando na disseminação de subsídios técnico-científicos e materiais educativos, por meio de podcasts, para os Agentes Indígenas de Saúde (AIS). A iniciativa, conduzida pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), teve uma primeira etapa que resultou em dez programas da rádio Policast sobre o enfrentamento da Covid-19 em contexto indígena, abordando aspectos da prevenção, saneamento, atenção à saúde e a atuação do AIS, que estão disponível na sessão Saúde Indígena da plataforma O SUS em Ação: Agentes de Saúde em tempos de coronavírus.

A segunda etapa da iniciativa tem como ideia central, de acordo com a professora-pesquisadora do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Ana Claudia Vasconcellos, produzir informações que possam ser utilizadas na reorientação do processo de trabalho dos AIS durante o período da pandemia. “Os podcasts abordam os cuidados que devem ser tomados durante as visitas domiciliares, o acolhimento dos casos leves e graves da Covid-19, as recomendações as gestantes e puérperas, sobre o uso correto das máscaras, sinais e sintomas, formas de contágio e diversos outros temas”, detalhou.

Para que os áudios cheguem até os AIS, foi criada uma rede de disseminação do material informativo via WhatsApp e uma parceria com o Instituto SocioAmbiental (ISA) para transmitir as informações por radiofonia. Ana Lucia Pontes, que participou da concepção e produção dos podcasts na primeira etapa, chama atenção para a importância dessa iniciativa para fazer chegar informações qualificadas e de forma capilarizada nas comunidades indígenas.

Informação para ação

O Observatório Covid-19 Fiocruz tem o objetivo de desenvolver análises integradas, tecnologias, propostas e soluções para enfrentamento da pandemia por Covid-19 pelo SUS e pela sociedade brasileira. A Ensp, por meio da articulação dos pesquisadores do Departamento de Endemias Samuel Pessoa e em parceria com o GT de saúde indígena da Abrasco, vem contribuindo com o Observatório Covid-19 com subsídios como estudos, notas técnicas e webinares, na temática de saúde indígena.

Ademais, um grupo de pesquisadores da Ensp/Fiocruz participou de nota técnica apontando que a Covid-19 não é a única ameaça à saúde indígena e organizando Centro de Estudos sobre Coronavírus e povos indígenas: vulnerabilidades ambiental e territorial na Amazônia. “O documento alerta para problemas de insegurança alimentar, que ameaçam o estado nutricional principalmente de crianças, casos de malária, tracoma, surtos e epidemias de doença diarreica aguda, tuberculose, infecções respiratórias, doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros”, afirmou Paulo Basta.

Já o Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes), da Ensp/Fiocruz, desenvolve um trabalho interdisciplinar e um diálogo intercultural com o povo Munduruku, na Região do Tapajós, envolvendo não somente o tema do mercúrio e do garimpo, mas os conflitos ambientais e resistências para preservação das identidades e dos direitos territoriais dessa população. Nesse momento, as iniciativas, coordenadas pelo pesquisador Marcelo Firpo, foram direcionadas para apoiar os povos indígenas no enfrentamento da Covid-19.

Investigadores do Grupo de Pesquisa Saúde, Epidemiologia e Antropologia dos Povos Indígenas da Ensp/Fiocruz, do Programa de Computação Científica (Procc/Fiocruz) e da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas (EMAP-FGV) produziram duas edições do relatório Risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas, com foco em questões de vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Nas diversas apresentações públicas realizadas sobre esses documentos, os pesquisadores Andrey Cardoso, da Ensp/Fiocruz, e Claudia Codeço, do Procc/Fiocruz, destacaram a importância da produção de análises atualizadas acerca do espalhamento da Covid-19 em populações indígenas. Segundo eles, a iniciativa, integrando diversas bases de dados, busca identificar quais os segmentos da população indígena que apresentam maior vulnerabilidade segundo diferentes recortes populacionais, representados por indígenas residentes em municípios e zonas urbanas e rurais, residentes em Terras Indígenas (TIs) oficialmente reconhecidas e em municípios abrangidos por Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).

As análises baseiam-se na exposição geográfica em municípios classificados segundo níveis de probabilidade de epidemia, definida para a população brasileira em geral. Esses relatórios têm tido ampla circulação não somente na comunidade de especialistas em saúde coletiva como na sociedade civil em geral, inclusive nas organizações indígenas e seus parceiros. Para visibilizar essas e outras contribuições, a BVS Saúde dos Povos Indígenas está levantando e disponibilizando documentos, materiais didáticos e webinares sobre a temática da Covid-19 e povos indígenas, que podem ser acessados aqui.

Em um cenário de extrema necessidade de diálogos interculturais, Ana Lúcia Pontes, Ricardo Ventura Santos e Felipe Machado, pesquisadores da Ensp/Fiocruz, em parceria com um coletivo de pesquisadores indígenas de diversas regiões do país, estão desenvolvendo a iniciativa Vozes Indígenas na Produção de Conhecimento. A proposta envolve um comitê editorial formado por pesquisadores indígenas que formularam duas chamadas públicas, com foco na autoria indígena, que visam captar contribuições que deem visibilidade às múltiplas especificidades inerentes às realidades sócio-territoriais de cada povo, com ênfase nas complexas inter-relações sócio-culturais e políticas com a saúde dos povos indígenas, incluindo a questão da Covid-19.

No lançamento público dessas chamadas, que ocorreu durante o webseminário Povos Indígenas na Produção de Conhecimento: Por uma Saúde não Silenciada, no dia 26 de junho, Inara do Nascimento Tavares, do povo indígena Satere-Maué e professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima, enfatizou: “São muito importantes as parcerias institucionais que se colocam de forma simétrica, na forma do diálogo”. Maiores informações sobre essa chamada e o projeto, que inclui uma playlist no canal do YouTube da VideoSaúde com depoimentos de trajetórias indígenas na academia, estão disponíveis aqui.

Julia Dias (Agência Fiocruz de Notícias) e Filipe Leonel (Informe Ensp)

Agência Fiocruz

PUBLICADO EM:   JORNAL DA CIÊNCIA