O Ministério dos Transportes do governo Bolsonaro desprezou uma decisão judicial e abriu uma licitação ilegalmente para a reconstrução e asfaltamento de parte da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho).

A foto deste artigo mostra transporte de madeira ilegal na BR-319, no trajeto entre Porto Velho, em Rondônia, e Humaitá, no Amazonas. Foto: Michael Dantas/WWF-Brasil

A ameaça que isto implica é detalhada em uma carta publicada em 07 de agosto de 2020 na prestigiada revista científica Science. Segue a tradução em português do texto original [1]:

A região amazônica do Brasil está passando por um período de retrocesso ambiental, durante o qual grandes projetos de infraestrutura estão sendo promovidos e a proteção ambiental está sendo reduzida (2). Um desses projetos é a reabertura da Rodovia BR-319, construída em 1973, mas abandonada em 1988. A estrada liga Porto Velho, localizado em uma área de desmatamento abundante, a Manaus, no coração da floresta amazônica (3,4).

Com a BR-319 e suas estradas laterais planejadas abertas ao tráfego, a área desmatada provavelmente aumentaria para mais de 1.200% do nível de 2011 em 2100 (3). A estrada e o desmatamento relacionado afetariam 63 terras indígenas oficiais, que abrigam 18.000 indígenas (4). O imenso bloco de floresta aberto ao desmatamento por essas estradas contém um estoque de carbono que, se liberado, aumentaria muito as chances de os esforços globais de mitigação falharem em conter as mudanças climáticas (5).

Uma decisão judicial que não está mais sujeita a recurso determinou que estudos ambientais devem ser realizados antes da pavimentação de uma parte da rodovia designada como “lote C” (6). No entanto, em 24 de junho, o governo federal abriu licitação para pavimentar esse trecho de estrada (7). O Ministério Público Federal caracterizou essa violação de uma decisão judicial como “má-fé” e uma “afronta” ao judiciário (8). A justificativa de um representante do poder executivo era que a pavimentação não causaria aumento no tráfego na rodovia (9), uma opinião sem qualquer base técnica. A pavimentação de estradas no interior da Amazônia tem sido demonstrada a aumentar o número e o tamanho dos veículos e resultar em maior migração, especulação de terras e desmatamento (10–11).

O não cumprimento da decisão judicial pelo governo abrirá um precedente perigoso para outros mega-desenvolvimentos na Amazônia, incluindo barragens hidrelétricas e o projeto Barão de Rio Branco, que construiria uma estrada através de uma série de unidades de conservação e áreas protegidas para povos tradicionais (13). Se a rodovia BR-319 for pavimentada antes da realização dos estudos ambientais necessários, será um indicador decisivo da relutância do Brasil em cumprir seus compromissos sob as convenções de clima e de biodiversidade e provavelmente acelerará as mudanças climáticas antropogênicas.

Por: | 07/08/2020 às 12:14

NOTAS

1.Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Amazon’s road to deforestaion. Science 369: 634.

2.Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. Brazil’s new president and “ruralists” threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263.

3. M. dos Santos Júnior et al., “BR-319 Como Propulsora de Desmatamento: Simulando o Impacto da Rodovia Manaus-Porto Velho” (Instituto do Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, 2018).

4.Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy 94: art. 104598.

5. Nogueira,E.M., A.M. Yanai, F.O.R. Fonseca & P.M. Fearnside. 2015. Carbon stock loss from deforestation through 2013 in Brazilian Amazonia. Global Change Biology 21: 1271–1292. .

6. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, “Numeração Única

7. Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, “Aviso de Licitação, RDC Eletrônico nº 216/2020,Diário Oficial da União (2020).

8. Justiça Federal da 1ª Região, “Processo Judicial Eletrônico Número: 1016749-49.2019.4.01.3200” (2020);

9. R. Hofmann, “Texts sent on June 24, 2020 to the ‘Fórum de Sustentabilidade da Rodovia BR-319’ WhatsApp group organized by the Federal Public Ministry” (2020).

10. Laurance, W.F., A.K.M. Albernaz, G. Schroth, P.M. Fearnside, S. Bergen, E.M. Venticinque & C. da Costa.2002. Predictors of Deforestation in the Brazilian Amazon. Journal of Biogeography 29: 737-748.

11. Nepstad, D., G. Carvalho, A.C. Barros, A. Alencar, J. Capobianco, J. Bishop, P. Moutinho, P. Lefebvre & U. Silva, Jr. 2001. Road paving, fire regime feedbacks, and the future of Amazon forests. Forest Ecology and Management 154: 295–407.

12. Pfaff, A.S.P., J. Robalino, R. Walker, S.P. Aldrich, M. Caldas, E. Reis, S. Perz, C. Bohrer, E.Y. Arima, W.F. Laurance & K.R. Kirby. 2007. Road Investments, Spatial Spillovers, and Deforestation in the Brazilian Amazon. Journal of Regional Science 47(1):109-123.

13. F. Wenzel. Asfaltando a Amazônia. Piaui, Feb. 14, 2020. (2020).

Os dados deste artigo foram atualizados.

Lucas Ferrante  é Doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia ( [email protected]).

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui

PUBLICADO EM:            AMAZÔNIA REAL