A Amazônia já tem mais de uma dúzia de grandes hidrelétricas, e a história não é boa, com severos impactos humanos e ambientais e com benefícios muito aquém dos que foram imaginados pelos proponentes na hora das decisões [1].

A equipe dos estudos socioambientais da UHE Bem Querer esteve em campo de 13 a 27 de março, período da seca, realizando o levantamento do nível e qualidade das águas subterrâneas.(Foto: EPE)

As lições desta história não foram aprendidas, e hoje o governo avança rapidamente nos seus preparativos para mais uma barragem com sérios questionamentos – a Usina Hidrelétrica (UHE) Bem Querer, planejado para barrar o rio Branco, em Roraima, em 2028 com 650 MW instalados ([2] p. 71).

No caso da UHE Bem Querer, os impactos são bastante grandes. Inunda um trecho de 130 km do rio Branco, eliminando os ecossistemas aquáticos neste rio de alta biodiversidade. Elimina as matas ripárias. Afeta diretamente três unidades de conservação que se encontram logo a jusante da barragem (Parque Nacional do Viruá, Estação Ecológica de Niquiá e Estação Ecológica de Caracaraí), e indiretamente afeta quase todas as unidades de conservação em Roraima ([3], p.64). Impacta uma diversidade especialmente grande de aves nas áreas sacrificadas [4]. Vai emitir gases de efeito estufa, sobretudo o metano. Vai alterar o regime hidrológico rio abaixo, um efeito que tem matado grandes áreas de floresta inundada a jusante da hidrelétrica de Balbina [5].

A população humana ao longo do rio abaixo da UHE Bem Querer sofrerá da mudança do regime hidrológico, assim como da diminuição da pesca provocado pela diminuição de oxigênio na água, o bloqueio da migração de peixes e a diminuição dos nutrientes na água. Esta diminuição dos nutrientes ocorre devido à retenção de sedimentos no reservatório, pois os nutrientes são associados às partículas de sedimento. O rio Branco tem muitos sedimentos, e é por isso que ganhou seu nome de “rio Branco”.

A diminuição de sedimentos a jusante de barragens provoca erosão do fundo e das margens do rio, como está ocorrendo no rio Madeira [6], onde os sedimentos diminuíram em 30% [7]. A diminuição dos nutrientes causada pela retenção de sedimentos mina toda a cadeia alimentar que sustenta a população de peixes [8]. Os sedimentos do rio Branco também são essenciais para manter os ecossistemas do arquipélago das Anavilhanas (AM), que se formou no rio Negro a partir destes sedimentos [9]. Ou seja, a UHE Bem Querer ameaça uma das joias do sistema brasileiro de parques nacionais.

Roraima não precisa da barragem. Este estado foi identificado como tendo o melhor potencial para energia solar entre os estados amazônicos [10]. A população do estado é pequena. A barragem não elimina a planejada linha de transmissão de Manaus, que já está conectada à UHE Tucuruí. A maior parte da energia que seria gerada pela UHE Bem Querer não é intencionada para Roraima, mas sim para outras partes do Brasil.

Um representante da Empresa de Pesquisa Energética, do Ministério das Minas e Energia, explicou isto com todas as letras em um evento público em Boa Vista em julho de 2018 [11]. Sendo que Roraima se encontra no hemisfério norte, as estações do ano são invertidas em relação ao resto do Brasil. Portanto, a energia gerada em Roraima quando há muita chuva neste estado pode ser transmitida para o sul do equador quando falta água para usar toda a capacidade das hidrelétricas lá. O representante do Ministério das Minas e Energia falou que “Agora é a hora de Roraima fazer pelo Brasil” [11]. Isto representa mais um exemplo do impacto de barragens amazônicas em termos de justiça ambiental [12].

Para tomar decisões sensatas sobre grandes obras como esta precisa levantar e considerar os impactos, os benefícios e as alternativas antes de tomar a decisão. Essas informações precisam ser colhidas e apresentadas sem viés e precisam ser divulgadas e debatidas democraticamente como parte da tomada de decisão. Não pode ser como é feito hoje no processo de licenciamento, como um passo formal para legalizar uma decisão já tomada [13].

Por: | 26/08/2020 às 15:54

NOTAS

[1] Fearnside, P.M. 2019. Impactos das hidrelétricas na Amazônia e a tomada de decisão. Novos Cadernos NAEA 22(3): 69-96.

[2] Brasil, EPE (Empresa de Pesquisa Energética). 2020. Plano Decenal de Expansão de Energia 2029 / Ministério de Minas e Energia (EPE). Brasília, DF. 392 p.

[3] ICMBio/ (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade). 2013. Relatório Técnico Projetos de Usinas Hidrelétricas na Bacia do rio Branco e suas Implicações para as Unidades de Conservação Federais em Roraima e Amazonas. Relatório Técnico nº 001/2013 – ICMBio/CR2/ GT OS nº03/2012, ICMBio, Brasília, DF. 91 p.

[4] Naka, L.N., T.O. Laranjeiras, G.R. Lima, A.C. Plaskievicz, D. Mariz, B. da Costa, H.S.G. de Menezes, M.F. Torres & M. Cohn-Haft. 2020. The Avifauna of the Rio Branco, an Amazonian evolutionary and ecological hotspot in peril. Bird Conservation International 30(1): 21-39.

[5] Assahira, C., M.T.F. Piedade, S.E. Trumbore, F. Wittmann, B.B.L. Cintra, E.S. Batista, A.F. de Resende & J. Schöngart. 2017. Tree mortality of a flood-adapted species in response of hydrographic changes caused by an Amazonian river dam. Forest Ecology and Management 396: 113–123.

[6] Almeida, R.M., S.K. Hamilton, E.J. Rosi, N. Barros, C.R.C. Doria; A.S. Flecker, A.S. Fleischmann, A.J. Reisinger & F. Roland. 2020. Hydropeaking operations of two run-of-river mega-dams alter downstream hydrology of the largest Amazon tributary. Frontiers in Environmental Science.

[7] Latrubesse, E.M., E.Y Arima, T. Dunne, E. Park, V.R. Baker, F.M d’Horta, C. Wight, F. Wittmann, J. Zuanon, P.A. Baker, C.C. Ribas, R.B.  Norgaard, N. Filizola, A. Ansar, B. Flyvbjerg & J.C. Stevaux. 2017. Damming the rivers of the Amazon basin. Nature 546: 363-369.

[8] Forsberg, B.R., J.M. Melack, T. Dunne, R.B. Barthem, M. Goulding, R.C.D. Paiva, M.V. Orribas & U.L. Silva, Jr. 2017. The potential impact of new Andean dams on Amazon fluvial ecosystems. PLoS ONE 1(8): art. e0182254.

[9] Marinho, R.R., N.P. Filizola Junior & É.H. Cremon. 2020. Analysis of suspended sediment in the Anavilhanas archipelago, Rio Negro, Amazon Basin. Water 12: art. 1073.

[10] Pereira, E.B., F.R. Martins, A.R. Gonçalves, R.S. Costa, F.J.L Lima, R. Rüther, S.L. Breu, V. Tiepolo, V. Pereira & J.G. Souza. 2017. Atlas Brasileiro de Energia Solar, 2.ed. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), São José dos Campos, São Paulo, Brazil. 88 p.

[11] Costa, N. 2020. Construção da UHE Bem Querer pode gerar desastre sem precedentes, acredita o ISA. Instituto Socioambiental, 21 de julho de 2020.

[12] Fearnside, P.M. 2019. Justiça ambiental e represas amazônicas do Brasil. p. 103-124. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 3. Editora do INPA, Manaus. 148 p.

[13] Fearnside, P.M. 2015. A hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: A arte de EIAs cosméticos. p. 115-133. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 2. Editora do INPA, Manaus. 297 p.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

PUBLICADO EM:   AMAZÔNIA REAL