São Gabriel da Cachoeira (AM) – A Amazônia Real esteve no barracão onde os indígenas Yanomami ficam alojados em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas.
Às margens da BR-307, já na área urbana do município, o local não tem estrutura adequada para prevenção da Covid-19. Eles são obrigados a se amontoar à espera do momento em que vão para outra aglomeração, desta vez na frente da casa lotérica para receber benefícios sociais do banco Caixa Econômica Federal. E, sem que nada mude, eles se arriscam a levar o novo coronavírus de volta às aldeias, onde a maioria deles tem se isolado desde o início da pandemia.
É possível ver no barracão adultos, crianças e idosos. Por questão cultural, normalmente os indígenas viajam em família. Muitos vêm passear ou fazer compras para reabastecimento. No local, os Yanomami amarram suas redes e ajeitam pertences. Há um depósito para água utilizada nos banhos e limpeza em geral. A água de beber, eles buscam em uma fonte próxima ao local. Para ter um pouco mais de espaço, alguns deles estendem lonas na parte externa, onde é possível ver bastante lixo.
“Depois de todos esses meses, eles viram que estão presos na comunidade. Parecia assim uma prisão e eles se sentiram assim”, afirma o presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), José Mário Pereira Góes. Recuperando-se da covid-19 e de malária na comunidade de Maturacá, ele defendeu que a BR-307 fosse totalmente bloqueada, dificultando o acesso à cidade, mas os próprios indígenas rejeitaram a proposta. “Deram pressão na gente, ameaçando de tirar da associação. Isso aconteceu muito. Então nós tivemos que minimizar, liberar eles para fazer viagem.”
De Boa Vista, capital de Roraima, onde estava no último dia 21, o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dario Vitório Kopenawa, considera muito preocupante essa situação. “Essa questão de benefício não deixa as pessoas ficarem nas aldeias. Eles precisam de alguns objetos, como tabaco, calção e rede. Às vezes atrapalha nesse cenário de crise. Problema muito difícil. Isso atrapalha o isolamento social. Querem comprar alguma coisa, necessitando na aldeia: sabão, sabonete, terçado”, disse.
O líder indígena Adelson Nascimento Bolivar, da pequena comunidade do Mafi, no Rio Cauaburis, estava no barracão visitado pela reportagem. “A gente precisa pegar alimentação, sal e tabaco. É mais necessário para a gente usar. Depois de 3 ou 4 meses passando na área, a gente vem até a cidade. Eu só tinha vindo aqui em janeiro. Isolei lá, mas acabou o sal. Aí eu não aguento”, justifica-se.
O movimento de um número grande de famílias Yanomami em direção a São Gabriel da Cachoeira começou em 19 de julho. Neste mês de julho, vence o período de três meses – a contar de abril, quando os primeiros casos da Covid-19 foram registrados no município – que a maior parte desses benefícios fica disponível na conta para saque.
Segundo Adelson Bolivar, os indígenas vêm encontrando dificuldade para retirar os benefícios sociais. “A gente veio para cá pela necessidade, quando o povo precisa receber Bolsa Família. Quando acontece de bloquear o cartão Bolsa Família sempre dá problema. Se bloqueia, a gente fica em necessidade. Precisamos da força de outra pessoa porque ninguém quer ajudar o povo Yanomami”, desabafa.
A viagem das comunidades Yanomami até São Gabriel da Cachoeira tem início por via fluvial e leva cerca de seis horas ou até mesmo quatro dias, dependendo da localização da comunidade e da embarcação. Depois ainda há o trecho pela rodovia BR-307, realizado principalmente pelos chamados “toyoteiros”. Com a estrada em péssimas condições, o trajeto de 85 quilômetros só é feito por veículos como Toyota Bandeirante. Os motoristas chegam a cobrar R$ 1 mil por trecho, com muitos passageiros sendo transportados na carroceria, na maioria das vezes lotada.
O fluxo dos Yanomami no barracão é constante, havendo bastante rotatividade; enquanto alguns grupos estão saindo, há outros chegando. Dessa forma, não há o controle do número de indígenas no local. Entre as primeiras medidas tomadas em São Gabriel da Cachoeira devido à pandemia está a implantação de barreiras sanitárias para evitar a circulação do vírus no território indígena. Também foi exigido o cumprimento de quarentena de pessoas que estavam na cidade e queriam retornar às aldeias.
Entretanto, no atual momento, isso não está ocorrendo. Dessa forma, conforme o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei Yanomami,) ligado ao Ministério da Saúde, a alta no fluxo dos indígenas pode levar ao aumento de registros nas localidades onde já há Covid-19 e o aparecimento de casos da doença em áreas onde ainda não há contaminação pelo novo coronavírus.
Covid-19 avança no território
O Dsei Yanomami possui 37 polos-base para atender uma população de 26.785 pessoas em 366 aldeias da terra indígena, que fica entre os estados do Amazonas e Roraima. O primeiro caso do novo coronavírus foi registrado no mês de abril deste ano em um jovem da região de Uraricoera, que morava em Alto Alegre. Como a região é de fluxo da mineração ilegal, a suspeita é que o contágio começou pelos garimpeiros que invadem o território.
Em maio, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) disse que coronavírus começou a se espalhar também dentro da Terra Indígena Yanomami pelo contato de funcionários não indígenas que estão infectados. Na ocasião foram diagnosticados 16 profissionais com Covid-19. A Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) Yanomami, em Boa Vista, também foi um foco da disseminação da doença.
Nesta terça-feira (28), o Dsei Yanomami informou que 223 profissionais do distrito sanitário testaram positivo para Covid-19, mas não há registro de óbitos entre eles.
Entre os indígenas, o Dsei atestou 335 casos confirmados da doença e quatro mortes por coronavírus. Já a Rede Pró-Yanomami e Ye´kwana, conforme o levantamento desta quarta-feira (29), registrou cinco mortes.
Dos 37 polos bases do Dsei Yanomami, 24 já registraram casos da Covid-19, o que representa 65% do total.
Para Dario Kopenawa, não há urgência por parte dos Yanomami para receber os benefícios e a recomendação dele é para os indígenas ficarem nas aldeias. “No momento, nossos parentes não poderiam ir para cidade para buscar mais doença. A minha preocupação é isso. Tem que ser das lideranças locais coibir ir para a cidade. Como representante da Hutukara, faço a minha parte. A orientação é: as pessoas não saem para a cidade, não saem do território. Isso já falei”, afirma.
Kopenawa explica que, na visão do Yanomami, a xawara (palavra usada para se referir às epidemias) covid-19 diferencia-se de outras epidemias que atingiram os indígenas, como sarampo e coqueluche, que deixou muitas mortes entre os Yanomami. “Primeiro, epidemia matava muito, xawara matou muito Yanomami. Na anterior, só os Yanomami morreram. Agora é um problema do mundo inteiro. Então, é totalmente diferente do sarampo. Atinge muita gente do planeta Terra, tanto Yanomami, indígena e sociedade não indígena, negros, brancos e vermelhos. E uma xawara ampla”, compara a liderança. Kopenawa informa ainda que os xamãs e os xapiri (espíritos da floresta) estão atuando para que a doença retorne de onde veio.
O Dsei Yanomami informa que profissionais de saúde estão fazendo monitoramento de indígenas no barracão em São Gabriel da Cachoeira, além de haver distribuição de máscara. O órgão reforça que é responsável pela área de saúde e vem atuando junto às instituições locais para buscar prioridade a esses indígenas no atendimento em locais como casa lotérica, Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
O distrito também sugere que seja elaborado um fluxograma junto às lideranças indígenas para que haja uma escala de vinda a São Gabriel da Cachoeira para evitar que muitos façam a viagem ao mesmo tempo. Com a garantia da prioridade no atendimento, eles ficariam menos tempo na cidade.
A Assessoria de Imprensa da Funai informou que, desde o início da pandemia, o órgão liberou aproximadamente R$ 1,4 milhão para ações de proteção a comunidades de 23 etnias que vivem no município de São Gabriel da Cachoeira. Nos próximos dias, deve ser concluída a distribuição de quase 20 mil cestas de alimentos aos povos da região. “O trabalho é realizado em conjunto com a Secretaria Especial de Saúde Indígena e outros órgãos governamentais”, informa.
“Temos atuado em parceria com outros órgãos e instituições, o que potencializa o alcance das ações. No início da pandemia, também demos suporte aos indígenas que estavam na cidade e precisavam retornar à aldeia. Trabalhamos para que eles voltassem em segurança e sem riscos à saúde”, explicou, por meio da assessoria, o coordenador da Funai na Regional Rio Negro, Auri Santo Antunes de Oliveira.
A multa diária de R$ 100 mil à Caixa
Entre as medidas determinadas estão acesso de indígenas aos benefícios em suas aldeias para evitar deslocamento aos centros urbanos, prorrogação do prazo para saque do auxílio emergencial e adequação do aplicativo Caixa Tem aos grupos considerados vulneráveis.
Mas até agora as medidas judiciais não surtiram efeito. “Caso as medidas para extensão dos prazos e garantia do recebimento dos benefícios nas próprias comunidades e aldeias não sejam efetivadas em 30 dias após a fixação da multa de R$ 100 mil, será aplicada multa diária pessoal de R$ 5 mil a cada gestor. A Justiça Federal determinou, ainda, que os órgãos comprovem o cumprimento das medidas estabelecidas nas duas decisões anteriores em dez dias”, informa o MPF.
A vinda em massa dos Yanomami à cidade foi informada ao MPF no Amazonas, no dia 20 deste mês pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), após alerta do Dsei Yanomami. Profissionais da saúde e da Foirn auxiliaram os indígenas para que tivessem prioridade no atendimento na casa lotérica.
Segundo o presidente da Foirn, Marivelton Barroso, da etnia Baré, uma possibilidade é organizar uma escala de viagens por comunidade, para que não haja aglomerações de Yanomami na cidade. Conforme informação do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira – que reúne órgãos públicos, sociedade civil organizada e parceiros -, órgãos como Prefeitura, Foirn, Instituto Socioambiental (ISA), Médicos Sem Fronteiras (MSF) e Funai estão se mobilizando para promover melhorias na estrutura e na parte de saneamento no barracão onde os Yanomami ficam alojados.
Até 30 de junho, vigorou decreto municipal suspendendo o trânsito entre comunidades e ambiente urbano de São Gabriel da Cachoeira. E a Funai, o Exército, o Dsei Alto Rio Negro e a Secretaria Municipal de Saúde estruturaram barreiras sanitárias, sendo uma delas na BR-307. O fluxo dos “toyoteiros” chegou a ser limitado ao transporte de mercadorias. Algumas comunidades receberam cestas básicas de órgãos como ISA, Foirn, Dseis, Funai e Secretaria Municipal de Educação.
Mas, desde 9 de julho as atividades foram flexibilizadas de maneira mais acentuada. Boletim epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde indica que até 27 de julho a cidade registrava 3.205 casos confirmados e 49 mortes. No comparativo por cem mil habitantes, o município chegou a ser a campeão nacional em número de casos. Em 27 julho, esse índice era de 7.001,1, enquanto em Manaus foi de 1.562,2.
O refúgio dentro da selva
Em Maturacá, está a comunidade Yanomami localizada no Amazonas com maior concentração populacional da etnia. São 2.082 moradores. E é também a aldeia com maior número de casos da Covid-19, com 74 infectados e 2 óbitos. No local, já ocorre a contaminação comunitária. A segunda comunidade com maior número de casos é Auaris (RR), com 51 registros.
Em abril, a Amazônia Real conversou com lideranças Yanomami que relataram que indígenas da etnia estavam se preparando para enfrentar a pandemia. Algumas famílias já tinham seguido para dentro da selva, para se proteger da xawara. Passados três meses, muitos já deixaram a floresta.
Durante o período que estiveram na selva, as famílias viveram à base de caça e pesca e se tratavam com remédios tradicionais. “Muitas famílias se protegeram na selva. E na selva era muita coisa, era muita fruta do mato. É tempo de mel de abelha. Teve muita caça, muito peixe. Então, essas famílias que foram para a mata, passaram um bom tempo, passaram quase três meses fora da comunidade”, relata a liderança indígena José Mário Góes.
Entre os remédios tradicionais, José Mário cita a saracura, carapanaúba, quinina, chá de taxi ou tachí e mel de abelha. Ele afirma que em Maturacá muitos adoeceram, mas quase ninguém apresentou quadro grave. “Tem gente trabalhando com covid-19. Tem gente carregando lenha, pescando, caçando. Por isso que eles falam que o nosso remédio que é da selva, remédio tradicional, está valendo muito”, conta o indígena.
“Eles achavam que ia repetir a mesma história do coqueluche e do sarampo. Mas deu tudo diferente. Diferença muito grande. Então isso, o que os pajés dizem? Eles fizeram um trabalho muito profundo para que não tenha epidemia muito forte. Eles mesmo confirmam que eles tiveram uns espíritos que sabe deixar fraca a doença”, acrescenta Mário.
Na comunidade foi estruturada uma Unidade de Atendimento Primário Indígena (UAPI). Essas estruturas foram idealizadas e executadas em parceria entre as ONGs Expedicionários da Saúde e Instituto Socioambiental, Foirn e Dsei. No local, há microusinas de oxigênio, sendo oferecido atendimento a casos leves e moderados da covid-19, o que pode evitar agravamento de casos e remoções.
Os indígenas das comunidades com Covid-19 são removidos pelo Dsei e encaminhados ao Centro de Acolhimento da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, que funciona em São Gabriel desde 9 de julho. Também podem ser atendidos no Hospital de Guarnição do Exército. A cidade repete a situação presente em todo o interior do Amazonas: não há estrutura de UTI. Se o quadro de saúde for agravado, é necessária remoção para Manaus.
Por: Ana Amélia Hamdan
PUBLICADO EM: AMAZÔNIA REAL
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