No início de julho, indígenas da etnia Ashaninka lançaram uma campanha de financiamento para estimular a produção de alimentos nas comunidades vizinhas à Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre.

Crianças Ashaninka na aldeia Apiwtxa (Acre). Foto: Maria Fernanda Ribeiro.

A campanha Ashaninka Pelos Povos da Floresta prevê arrecadar R$ 1 milhão para distribuir alimentos, ferramentas de plantio e materiais de pesca para 1,8 mil famílias da região, incluindo indígenas e não-indígenas.

Os Ashaninka ainda não tiveram contato com o coronavírus: isolados graças a barreiras instaladas no rio, eles vêm sobrevivendo com suas técnicas tradicionais de plantio.

Comunidades do entorno, porém, dependem de cesta básica e sofrem com a falta de atendimento médico em casos de maior complexidade. A principal cidade da região, Marechal Thaumaturgo, já tem 150 casos confirmados de covid-19.

“Nós podemos viver três, quatro, cinco anos dentro da floresta, em nosso território, até a pandemia passar, porque nos preparamos para esse momento. Mas se os nossos vizinhos do entorno não estiverem bem, nós também não estaremos.”

Foi com esse pensamento, expressado pela liderança Francisco Piyãko, que os indígenas da etnia Ashaninka lançaram na semana passada uma campanha de financiamento para estimular a produção de alimentos nas comunidades vizinhas à Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre.

A campanha, intitulada Ashaninka Pelos Povos da Floresta, prevê arrecadar R$ 1 milhão para distribuir alimentos, ferramentas de plantio e materiais de pesca para 1,8 mil famílias da região, incluindo indígenas e não-indígenas. Não há prazo para o término da campanha: ela só acaba com o fim da pandemia.

“Para nós, está muito claro que essa doença não vai acabar daqui um mês ou dois porque ainda estão discutindo vacina e tratamento”, afirma Francisco Piyãko, uma das lideranças locais. “O que a gente quer é que essas famílias se fortaleçam e encontrem um jeito de não cair na dependência de uma cesta básica porque isso não vai resolver. A gente precisa aproveitar essa crise e pensar que no futuro a gente tenha um estoque de alimentos nos nossos roçados. Estamos preocupados com um processo mais longo.”

Além de aumentar a segurança alimentar dos seus vizinhos, os Ashaninka querem também evitar a ida das pessoas a Marechal Thaumaturgo, a cidade mais próxima, onde vivem 18 mil pessoas e já há 150 casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus. A estrutura de saúde ali é precária e não há atendimento de média ou alta complexidade, o que levaria as pessoas a se deslocarem até a capital Rio Branco de barco ou avião monomotor.

Mulheres Ashaninka descascam mandioca na aldeia Apiwtxa como preparativo para a festa de comemoração dos 25 anos de demarcação da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, em 2017. Foto: Maria Fernanda Ribeiro.

Lockdown no rio

De acordo com a Articulação Nacional dos Povos Indígenas (Apib), 426 indígenas já morreram no Brasil em decorrência da covid-19, desde quando o primeiro óbito foi registrado, em 19 de março. No Acre são 17. Historicamente suscetíveis a doenças infecciosas, os povos da floresta devem ser considerados como grupos de risco.

Na aldeia Apiwtxa, localizada às margens do Rio Amônia e onde cerca de mil Ashaninka estão em auto-isolamento, o coronavírus ainda não chegou. E, se depender do esforço da comunidade, conforme afirma Moisés Piyãko, não vai chegar, pois eles criaram seu próprio sistema de lockdown com a instalação de barreiras no rio para evitar a entrada de pessoas de fora.

Além disso, segundo Moisés, os Ashaninka possuem condições de se manter ali por tempo indeterminado, apenas com os alimentos produzidos pela comunidade — fruto de décadas de planejamento na busca por autonomia, desde que o território foi homologado, em 1992.

Quando a pandemia chegou ao Brasil, a primeira reação dos Ashaninka da Apiwtxa foi a de se refugiar na floresta, numa tentativa de se esconder do vírus. Quando entenderam que podiam se manter livres da doença adotando medidas de isolamento social, retornaram a suas casas na aldeia e à vida em comunidade. Foi nesse momento que veio a ideia da campanha — ao perceber que, enquanto eles mantinham o isolamento, pessoas das comunidades vizinhas ainda circulavam em busca de comida, trabalho ou auxílio emergencial.

“Nós estamos seguros, mas não pensamos jamais que todo o mundo pode morrer e só sobrar a gente”, diz Moisés Piyãko. “Ninguém é tão egoísta de dizer que vamos cuidar só de nós mesmos. Nós temos responsabilidade, temos dever e é isso o que estamos fazendo com essa campanha. Todos sentimos essa dor e estamos buscando a proteção desses que estão dentro da floresta. Essa campanha é pela dor que cada um já sofreu.”

Moisés Piyãko, liderança Ashaninka. Foto: Maria Fernanda Ribeiro.

Aliança da floresta

Essa aliança entre os Ashaninka e as comunidades do entorno não é de hoje. Segundo os irmãos Piyãko, a campanha é a continuidade de uma história de esforço mútuo entre os povos que habitam essa região da Amazônia — entre eles os Kuntanawa, os Huni Kuin (também conhecidos como Kaxinawá), os Jaminawa e os Apolima-Arara.

Um dos exemplos mais recentes é o projeto Alto Juruá, contemplado em 2015 pelo Fundo Amazônia com o objetivo de promover o manejo e a produção agroflorestal na TI Kampa do Rio Amônia e em comunidades vizinhas como alternativa econômica sustentável ao desmatamento.

Em uma operação que envolveu R$ 6,6 milhões, a Associação Ashaninka do Rio Amônia firmou com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o primeiro contrato elaborado por indígenas sem intermediação do setor público ou organizações não-governamentais. Com o projeto, cerca de 2,5 mil pessoas foram beneficiadas, entre elas representantes do povo Huni Kuin e famílias extrativistas.

O projeto rendeu aos Ashaninka, em 2017, um prêmio da ONU. Concedido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Prêmio Equatorial incluiu naquele ano o projeto Alto Juruá entre as 15 melhores iniciativas de solução sustentável no mundo.

“Essa campanha [Ashaninka pelos Povos da Floresta] é um projeto de continuidade”, diz Francisco Piyãko. “Não dá para esperar do nosso povo Ashaninka uma história diferente. Nossa grande conquista foi fazer nossos inimigos se tornarem aliados, e faremos o mundo ser nosso aliado também. Tudo o que for um desafio para a região a gente vai encarar com esse espírito de compartilhar, de ser aliado no enfrentamento, seja garimpo, madeira ou o coronavírus.”

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Imagem do banner: Crianças Ashaninka na aldeia Apiwtxa (Acre). Foto: Maria Fernanda Ribeiro.

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por em 9 Julho 2020

PUBLICADO EM: MONGABAY     –   AMAZÔNIA.ORG.BR