As barragens já existentes mostram um triste histórico de impactos sobre os povos tradicionais.

A imagem que ilustra este artigo mostra uma mãe com o filho no colo durante um protesto das mulheres Munduruku na Usina de São Manoel (Foto: Juliana Rosa Pesqueira/FTP)

A hidrelétrica de Tucuruí, que barrou o rio Tocantins, no Pará, em 1984, inundou parte da terra indígena Parakanã, e uma faixa adicional foi perdida devido à mudança de lugar do trecho da rodovia Transamazônica que foi inundado pelo reservatório, levando parte da terra indígena a ser convertida em um projeto de assentamento. Com isso, os Parakanã perderam o seu acesso ao rio e às fontes de alimento das quais dependiam. A barragem também resultou no crescimento urbano de Novo Repartimento, uma cidade próxima à terra indígena, resultando em um grande aumento no contato com não indígenas, causando impactos negativos no grupo.

A hidrelétrica de Balbina, a qual barrou o rio Uatumã, no Estado do Amazonas, em 1987, inundou as duas maiores aldeias dos Waimri-Atroari. A usina de Balbina levou o Brasil e a França (que financiou as turbinas) a serem condenados por genocídio pelo tribunal Bertrand Russell, na Bélgica. No entanto, não foi a barragem que levou ao desaparecimento de mais de 80% do grupo. Isto aconteceu antes, quando o exército brasileiro estava construindo a rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista). Depois de uma demora desastrosa, os indígenas deslocados pela usina de Balbina foram apoiados por um programa financiado pela empresa hidrelétrica, o que os salvou fisicamente, mas com um custo alto de perda cultural.

As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau barraram o rio Madeira em 2011 e 2013, respectivamente. Elas não inundaram terras indígenas, mas provocaram uma diminuição grande na pesca em todo o rio Madeira e seus afluentes, impactando, assim, indígenas e ribeirinhos em uma vasta área em três países: Brasil, Bolívia e Peru. No baixo Madeira, por exemplo, a carga de sedimentos, que transporta os nutrientes que sustentam a cadeia alimentar dos peixes, diminuiu cerca de 30% após o barramento do rio pelas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, mas este declínio também se deve a uma redução ainda não explicada dos sedimentos finos no rio Beni, um dos principais afluentes que formam o rio Madeira na Bolívia. As barragens de Santo Antônio e Jirau também bloquearam a migração dos peixes que subiam o rio Madeira na piracema, sobretudo dos famosos grandes bagres deste rio.

A hidrelétrica de Teles Pires, que barrou o rio do mesmo nome no Mato Grosso, em 2015, inundou a Cachoeira das Sete Quedas, o local mais sagrado dos Munduruku onde residem os espíritos dos mais respeitados anciões falecidos, o equivalente ao céu dos cristãos. Sua construção também resultou na mortandade de peixes e em uma redução permanente deste recurso vital. Essa barragem ilustra a importância dos impactos sobre os locais de uso tradicional fora dos limites das terras indígenas em si, como foi o caso da Cachoeira de Sete Quedas e das áreas de pesca no rio Teles Pires.

A hidrelétrica de Belo Monte, a qual barrou o rio Xingu, no Pará, em 2015, tirou 80% da água de um trecho de 100 km conhecido como a “Volta Grande do rio Xingu”. Duas terras indígenas ao longo deste trecho foram impactadas, e uma terceira, localizada em um afluente que se junta ao rio Xingu nesse trecho, também dependia da pesca na Volta Grande. Uma população grande de ribeirinhos sofreu impactos que foram detalhados em um livro da SBPC.

Além dos ribeirinhos expulsos pelo enchimento do reservatório, os ribeirinhos, tanto a jusante quanto a montante do lago, também foram impactados pela perda da pesca. Por força política, o licenciamento de Belo Monte passou por cima das proteções previstas nos regulamentos legais, além dos questionamentos de organizações locais, nacionais e internacionais e a própria lógica econômica.

A hidrelétrica de São Manoel, que barrou o rio Teles Pires no Mato Grosso, em 2017, resultou em um impacto marcante sobre a Terra Indígena Kayabi, localizada a apenas 700 m da barragem. Além de destruir locais sagrados, o impacto sobre a pesca representa uma grande perda. O licenciamento da barragem passou por cima de muitos questionamentos do Ministério Público Federal, da FUNAI e do departamento de licenciamento do IBAMA. As tensões geradas ainda são grandes, e a Força Nacional continua no local para proteger a barragem.

Uma categoria de barragens com grande alcance e impacto sobre os povos tradicionais são as PCHs, ou pequenas centrais hidrelétricas. Esta categoria foi criada em 2004 para abranger barragens de 10 a 30 MW de capacidade instalada. Antes de 2004, todas as barragens com capacidade instalada de 10 MW ou mais eram consideradas “grandes” e precisavam de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) federal. As PCHs só precisam de licenciamento estadual, o qual é menos exigente, e também é mais rápido, barato e fácil de influenciar politicamente. As PCHs impactam terras indígenas com frequência. O Mato Grosso é o estado que mais concentra PCHs na Amazônia, com diversas delas existentes ou planejadas para o rio Juruena e afluentes.[1]

Por: | 14/07/2020 às 17:18 

Nota

[1] Esta série provém de uma contribuição do autor a um diagnóstico sobre contribuições dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais à biodiversidade no Brasil e as políticas públicas que as afetam, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos e Cristina Adams para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Leia o primeiro artigo da série:

Hidrelétricas e povos tradicionais: 1 – Resumo da série     

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.