Após equipe médica ser removida às pressas com casos da doença, número de infectados entre indígenas explodiu
Manaus (AM) – Em pouco mais de 20 dias, a aldeia São Luís, do povo Kanamari (autodenominados Tüküna), na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, fronteira com o Peru, viu a infecção do novo coronavírus aumentar quase nove vezes. Em 5 de junho, eram apenas 3 casos, mas no dia 28 esse número passou para 26. “Esses foram apenas os testados. Outros, não fizeram. E há casos que deram negativo, mas não houve contraprovas”, diz o presidente da Associação do Povo Kanamari do Vale do Javari (Akavaja). Higson Kanamari.
Entre os primeiros infectados estavam o cacique Mauro Kanamari e a filha dele, Cristina. “Hoje, pode-se dizer que praticamente toda a aldeia foi infectada”, afirma Higson. São Luís tem uma população estimada em 270 pessoas e fica no Médio Rio Javari. Outras aldeias Kanamari estão localizadas nos rios Itacoaí, Curuçá e Jutaí.
Em São Luís, está instalado o polo-base de saúde que atende outras aldeias do Médio Rio Javari, um dos inúmeros rios que cortam a terra indígena. Também foi a primeira delas a testar casos positivos de covid-19 dentro do Vale do Javari, logo após a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) confirmar a doença em quatro profissionais de saúde e removê-los às pressas, em 4 de junho, um dia após a confirmação da infecção.
Outros casos de indígenas do Vale do Javari já haviam sido registrados, mas eram de pacientes que estavam em Manaus ou no município de Tabatinga, no Alto Solimões, para tratamentos de saúde. Eles acabaram sendo infectados com o novo coronavírus em hospitais ou nas Casas de Saúde Indígena (Casais), onde ficam abrigados durante o período fora da terra indígena, conforme apurou a Amazônia Real.
“Estava tudo bacana. A população inteira da aldeia estava bem. Depois, a equipe de saúde que estava na aldeia foi trocada. Quando chegou o enfermeiro depois, ele que foi infectado. Ele jogou vôlei com todos. Entre os dias 23 e 28, vacinou a gente”, lembra outra liderança da etnia, Thodá Kanamari, vice-presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). “Depois, começou a apresentar sintomas. Ele também foi vacinar nas aldeias Flores e Fruta Pão dos parentes Matsés. A gente não sabia de nada”.
Segundo a liderança, vários moradores da aldeia São Luís passaram a sentir dores sem explicação. “A minha mãe Helena sentiu dor de cabeça, um pouco de diarreia, febre. Ela afirmou que não sentia nada de cheiro, que sentia a boca amarga, dor no corpo. Eu anotei tudo que ela sentiu. Eu também senti a mesma coisa, mas ninguém sabia o que estava acontecendo. Eu não sabia o que era sintoma de coronavírus”, lembra Thodá. A mãe dele foi uma das que testaram positivo.
Nas últimas semanas, a covid-19 se espalhou para outras duas aldeias do Médio Javari, também do povo Kanamari – Irari e Lago do Tambaqui – e chegou a aldeias do povo Matsés, na mesma calha de rio: Lago Grande, Flores e Fruta Pão. Higson Kanamari conta que as aldeias Pedro Lopes e Nuntewa, do povo Kulina Pano, também apresentam casos de contágios. “Somente nas aldeias Lago Tambaqui e Lago Grande, somando as duas, agora são 63 casos. Isso é o que sabemos contando até o dia 28”, diz Higson.
Localizada em uma das áreas mais remotas dos centros urbanos brasileiros, a Terra Indígena Vale do Javari só pode ser acessada pelos rios. Para se chegar nela, as viagens duram dias. É no Vale do Javari que está localizado o maior número de grupos indígenas isolados do Brasil; pelo menos 16 confirmados pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os demais povos são de recente contato ou de pouco contato com a sociedade brasileira, como é o caso dos Kanamari e dos Matsés. Nas aldeias, a maioria fala apenas sua língua nativa. O território tem cerca de 6 mil pessoas de seis etnias contatadas. Entre os grupos isolados, estão os Korubo e os chamados Flecheiros.
“São números assustadores. O Vale do Javari é área de trânsito de caçadores, madeireiros, pescadores, tudo ilegal. Se não fizerem barreira sanitária, não vamos ter controle na região”, afirma Higson.
Para liderança Kanamari, sem uma medida de isolamento correto, todos os esforços de socorro e assistência médica que chegarem às aldeias serão prejudicados.
Thodá Kanamari estava na aldeia São Luís até no último fim de semana, quando retornou para a sede de Atalaia do Norte, onde está localizada a terra indígena. À Amazônia Real, na quarta-feira (01), ele alertou que o receio agora é que a doença alcance aldeias de outras calhas de rios por meio do contato de profissionais de saúde nas trocas de equipes.
“Vamos agora monitorar e saber como está sendo feita a troca para o polo-base Massapê, também dos Kanamari, no rio Itacoaí. Não queremos que entre doença lá. Tem que ter quarentena.”
Higson Kanamari expressa a mesma preocupação. Para ele, os próprios profissionais de saúde podem infectar os indígenas, caso não haja medidas preventivas corretas.
“Os enfermeiros, os técnicos de enfermagem, os médicos fazem quarentena na sede de Atalaia do Norte. A cidade já está com índice grande de pessoas infectadas. Quando saem, vão direto para as aldeias. Eles têm que fazer quarentena em uma base que fica no rio Itacoaí para isso [isolamento],”
‘Governo é o principal agente transmissor da covid-19’
De acordo com a plataforma Emergência Indígena, lançada na segunda-feira (29) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o governo federal é o principal agente transmissor da covid-19 nas terras indígenas. “Equipes da Sesai contaminadas levam o vírus para região com maior número de indígenas em isolamento voluntário e de recente contato do mundo”, denuncia a Apib.
No mesmo dia 29, os Matsés (também chamados de Mayoruna) se manifestaram sobre o avanço da covid-19 em suas aldeias, em documento enviado às autoridades brasileiras e peruanas. Os indígenas pedem medidas urgentes, como barreiras sanitárias, testes, equipamentos de proteção individual, material sobre protocolos e prevenção na língua deles, entre outros (Leia o documento). Os Matsés habitam o Brasil e o Peru.
“Nossas estratégias de sobrevivência para nos proteger de algumas doenças estão na floresta. Porém, as epidemias como a malária, filária, dengue e doenças como gripe, hepatites, diabetes e DST dos “chotac” (não indígenas) se alastram em nossas aldeias e já levaram muitas vidas. Embora, as vacinas e tratamentos médicos recebidos permitiram criar resistência imunológica, ainda somos suscetíveis às doenças que traz o chotac”, diz trecho do documento. “A preocupação dos povos isolados e de recente contato é que eles são altamente vulneráveis às doenças infecciosas, já que eles não têm um sistema imunológico preparado para enfermidades externas”, complementa.
Os Kanamari e os Matsés seguem sem entender como a covid-19 chegou às aldeias e cobram das autoridades informações detalhadas sobre os casos confirmados para tentar rastrear os contágios.
Segundo Higson, os próprios dados que atestaram 26 casos em São Luís não foram informados pelo Dsei Vale do Javari, mas por uma indígena da etnia, Luzia Kanamari, que trabalha no órgão e está na aldeia. De forma independente, ela repassa as informações para Higson, que está em Atalaia do Norte, por meio de um telefone orelhão. “Os boletins não são claros. É lamentável que a Sesai vem tentando nos esconder dados”, afirma.
No boletim epidemiológico divulgado pela Sesai nesta quinta-feira (01), o Dsei Vale do Javari informa que há 115 casos confirmados de covid-19 entre os indígenas daquele território. O boletim não discrimina os povos e a localidade. A prefeitura de Atalaia do Norte não divulga novos boletins de casos de covid-19 desde 9 de junho.
“Os parentes que estão nas aldeias são inocentes. Eles não têm o mínimo da consciência do tamanho da gravidade que é a covid-19”, alerta Higson Kanamari.
“Estava tudo bacana, até que a doença chegou”
No dia 21 de março, Thodá Kanamari saiu de Atalaia do Norte rumo a aldeia São Luís, para escapar da pandemia da Covid-19. Sua intenção era permanecer no local por tempo suficiente para que ele e sua família, junto com outros Kanamari, seguissem a rotina tranquila, pescando e plantando seus roçados.
No dia 3 de junho, porém, a notícia da infecção dos profissionais de saúde chegou após uma reunião para definir as atividades do roçado assustando toda a aldeia.
“A gente estava no centro cultural conversando. Depois de uma hora, a Luzia apareceu com uma máscara. Todo mundo achou estranho. Ninguém estava com máscara. Ela pediu para falar e avisou que tinha caso de coronavírus na aldeia. E que era o enfermeiro. Ficamos em trauma, todo mundo assustado. Todo mundo correu para o mato. Mas não adiantava mais. Uma semana depois, todos estavam com sintomas. Eu, o Korá [liderança indígena], a Luzia [esposa de Korá], meu pai, o cacique Mauro, muita gente”, lembra.
Mas a informação que passou a circular em Atalaia do Norte foi a de que os próprios indígenas causaram o contágio entre si ao supostamente se aproximarem de peruanos.
Uma nota da Sesai de 5 de junho ajudou a propagar essa versão. O órgão disse que os profissionais de saúde entraram na terra indígena “após passarem por rigoroso cumprimento de quarentena” e que eles “relatam desconhecerem a forma de contaminação, pois não tiveram contato com nenhum caso positivo”. No documento, o órgão diz o seguinte: “Eles [os profissionais] afirmam que, no último mês, houve comercialização e permuta de gêneros alimentícios entre indígenas e não indígenas brasileiros e peruanos, no perímetro do polo-base”.
Thodá negou que os moradores de São Luís tenha tido contato com os peruanos que aportaram no porto da aldeia. “A gente tinha colocado uma barreira perto do porto para justamente impedir que entrassem pessoas de fora da aldeia. Um dia, um grupo de peruanos chegou lá dizendo que queria entregar bananas. Então, para não estragar, eles queriam doar. Eles teimavam, mas a gente não quis. Depois, o enfermeiro foi lá e conversou com eles, dizendo para deixarem no porto. Quem aceitou as bananas foi o enfermeiro. Não sei se ele foi infectado pelos peruanos ou se já chegou infectado de Atalaia, mas não fomos nós que nos infectamos”, conta Thodá.
A liderança Kanamari afirma que, independente da forma como se deu o contágio, o que mais deseja seu povo é que a doença não se espalhe nas aldeias. “Os enfermeiros adoeceram os parentes, mas essa doença é mundial. Se espalha muito rápido. Eu sei porque já peguei. Mas, agora, a nossa aldeia está ficando melhor. Os parentes já começaram a brocar a roça, a capinar, a pegar macaxeira. Ninguém ficou grave porque bebemos muito chá da floresta. Tomamos nossos remédios tradicionais. Mas a gente quer o remédio do branco nas aldeias. A equipe médica tem que permanecer. A aldeia continua com outras doenças; tem muita gente com malária”, diz.
A preocupação de Thodá também é com outras aldeias do Médio Javari, como Irari e Lago Tambaqui, onde ele esteve pouco antes de retornar para Atalaia do Norte. “Eu fui com a equipe da Univaja em Irari. Todos estão com sintomas. Tinha um senhor, seu Moacir, que estava muito ruim. É difícil porque é costume todos comerem do mesmo prato. Todos ficam debaixo do mesmo teto”, diz.
Sesai faz missão em Atalaia
Em uma região de alto índice de doenças crônicas, como hepatite e malária, e uma estrutura de saúde mal equipada para conter a pandemia, os Kanamari precisaram confiar e a aceitar doações de apoiadores, assim como nos atendimentos à saúde e nas compras de insumos de combate à covid-19. No início de junho, logo após a confirmação da doença na aldeia São Luís, foi iniciada uma campanha promovida por apoiadores, coordenada por Analimar Kanamari, irmão de Higson e que atualmente mora em Santa Catarina, onde faz mestrado, para arrecadar recursos compra de insumos, alimentos e material de pesca e roçado.
Já a Sesai, cobrada pelos indígenas e pelo Ministério Público Federal, participou de uma operação no Vale do Javari entre 18 e 21 de junho, com apoio logístico das Forças Armadas, para levar testes, medicamentos e insumos. A Operação, de grande repercussão em Atalaia do Norte, teve a presença do governador Wilson Lima (PSC), que inaugurou uma ala indígena no hospital do município construída pelo governo do Amazonas, e do titular da Sesai, o coronal da reserva, Robson Silva.
Um dos articuladores da ação de apoio ao Vale do Javari foi a organização Expedicionários da Saúde, que doou equipamentos para polos-bases. Foram doados “concentradores de ar, cilindros de oxigênio, motores geradores de energia, radiofonia, EPIs e insumos para as Unidades de Atenção Primária à Saúde, etc”, conforme relatou o coordenador do Dsei Vale do Javari, Jorge Marubo, em uma rede social. As doações dos equipamentos também vieram de doações de organizações parceiras da Univaja.
Durante a operação, Robson Silva fez questão de ir até São Luís, em helicóptero das Força Aérea Brasileira (FAB), como mostra vídeo divulgado por ele.
Indagado como foi a visita de Robson a São Luís, Thodá relatou: “Sim, ele esteve lá. Ele foi chamado por nós e ouviu muitas queixas. A mãe do Korá foi uma delas. Ela falou para ele, na língua, que depois foi traduzida: ‘Só agora, depois de nós sermos infectados por essa doença, é que vocês estão se preocupando!’. O cacique também falou. Ele não gostou da maneira como a médica que havia chegado na aldeia estava se comportando, com arrogância. Os profissionais de saúde precisam saber que os parentes não sabem como é essa doença, muitos não entendem português. Então, tem que saber se comportar”, diz Thodá.
O que dizem as autoridades
A Amazônia Real procurou a Sesai para saber sobre as ações de combate à covid no Vale do Javari, mas a Assessoria de Imprensa optou por enviar apenas um link oficial de divulgação no site do órgão. O órgão não respondeu se tomou medidas para saber como a covid-19 chegou ao Vale do Javari.
Procurado, o titular da Sesai, Robson Silva, travou o seguinte diálogo com a reportagem. Inicialmente, quando questionado se o Dsei Vale do Javari identificou ou rastreou como os indígenas foram infectados, Silva respondeu: “Não, e vocês?” A reportagem solicitou então um posicionamento da Sesai sobre a alegação dos indígenas de que a infecção ocorreu pelos profissionais do Dsei, novamente a resposta veio com outra pergunta: “Como eles podem comprovar a afirmação?” Indagado se o Dsei Vale do Javari fez o rastreamento, ele respondeu: “Sim. Fez. E isso não foi comprovado”.
A Amazônia Real perguntou então se Robson Silva fez o isolamento necessário antes de seguir para São Luís. Ele respondeu: “Você perguntar se estamos tomando as medidas para não ter contaminação me faz refletir. Somos a saúde… Não somos a doença”.
No dia 14 de maio, o Ministério Público Federal do Distrito Federal abriu inquérito para apurar denúncia de que Robson Silva teria ido trabalhar sem usar proteção, mesmo após ser diagnosticado com covid-19. “A gravidade das circunstâncias também está ligada à fragilidade da saúde indígena, quando relacionada a doenças respiratórias. Os investigados podem responder por crime contra a saúde pública”, disse o MPF.
À Amazônia Real, a Assessoria de Imprensa do MPF-DF respondeu que “foi pedida a abertura de inquérito policial e os autos foram remetidos para o Departamento da Polícia Federal no DF em 20/05” e que as “diligências correm por lá por enquanto”.
No dia 24 de junho, o MPF informou que mediou “uma série de entre órgãos do poder público para atender às principais demandas dos municípios situados nas regiões do Alto Solimões e do Vale do Javari, no Amazonas, em decorrência da pandemia de covid-19, especialmente para garantir segurança alimentar e a prestação de serviços de saúde a indígenas”.
Por: Elaíze Farias
PUBLICADO EM: AMAZÔNIA REAL
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