Especialistas alertam para a possibilidade de uma segunda onda da pandemia junto com problemas respiratórios causados pela fumaça dos incêndios
Especialistas em saúde pública e em queimadas nas florestas tropicais alertam: a Amazônia corre o risco de enfrentar duas calamidades simultaneamente nos próximos meses: a temporada do fogo e uma segunda onda da Covid-19. Reunidos no dia 17 de junho, médicos do Brasil e do exterior debateram as causas, consequências e o que deveria ser feito para evitar o colapso dos sistemas de saúde na região Norte do país. A reunião foi aberta ao público e foi assistida pela reportagem da Amazônia Real.
O período das queimadas na Amazônia começa no final de julho e segue até setembro, chegando a avançar a outubro em alguns anos. Esta é a época da estação de menos chuva na região. As queimadas são sazonalmente utilizadas na limpeza do solo em áreas de roçados e pastagens. Mas há vários anos elas atingiram um elevado grau de devastação, relacionadas a fenômenos de destruição da floresta, como a retirada ilegal de madeira (corte seletivo), a grilagem, a pastagem e a agropecuária.
Algumas cidades da Amazônia brasileira já enfrentaram, a primeira onda de contaminações da Covid-19. A região Norte possui as maiores taxas de mortalidade (48,6) e incidência (1234,7) do novo coronavírus por 100 mil habitantes do País.
Márcia Castro, demógrafa e professora no departamento de Saúde Global e Populações da Universidade de Harvard, teme que com a incidência simultânea de problemas respiratórios gerados por queimadas, incêndios florestais (quando o fogo fica descontrolado e atinge áreas preservadas) e pelo novo coronavírus os hospitais “não conseguirão atender a todos os pacientes que precisam”.
A preocupação de Márcia Castro se fundamenta no fato de que o Norte possui menos leitos hospitalares no país. “Em uma região que tem os piores indicadores de camas de hospital e médicos por pessoa, isso levaria a um colapso similar àquele observado em maio em Manaus, com aumento de mortalidade.”
Enquanto Manaus observa um declínio no número casos de Covid-19, o interior do do Amazonas vê a doença avançar. 60% dos casos de contaminação pelo novo coronavírus não estão na capital do Amazonas. Outros estados da região Norte apresentam quadros similares, de estabilização do ritmo de contágio nas capitais e contágio considerado descontrolado no interior.
É o caso do Pará. Segundo a plataforma Farol Covid, que compila dados de contaminação por todo o país, Belém (capital do Pará) vê uma diminuição no ritmo de contágio (cada contaminado atualmente infecta em média 0.7 a 0.8 pessoas). Enquanto isso, nas duas maiores cidades do estado fora da região metropolitana de Belém, a taxa de contágio é elevada. Em Santarém, cada pessoa contaminada infecta em média 1.0 a 1.1 outras pessoas. Já em Marabá, cada contamino infecta de 1.0 a 1.2 pessoas.
De acordo com Harvey Fineberg, médico norte-americano especialista em saúde pública também de Harvard, a presença de pequenas partículas de fumaça originárias de incêndios “aumenta o risco de doenças respiratórias, doenças cardiovasculares e morte prematura”.
Harvey Fineberg, que também presidiu a National Academy of Medicine (Academia Nacional de Medicina, dos Estados Unidos), afirma que uma contaminação da Covid-19 tem mais chances de ser agravada em populações diretamente afetadas pelas queimadas. “Em muitas áreas tropicais, as mais vulneráveis são as populações indígenas, em cujas terras esses incêndios florestais podem ser provocados ou que vivem em regiões próximas aos incêndios.”
Queimadas e incêndios florestais são fenômenos distintos. Enquanto a queimada é uma prática agropastoril que utiliza o fogo para limpar pastagens, o incêndio florestal é o fogo sem controle que incide sobre a vegetação. Ao redor do globo, incêndios florestais podem acontecer por causas humanas ou naturais (relâmpagos, por exemplo). Mas na Amazônia, devido à alta humidade da floresta, os incêndios são sempre provocados pela ação humana.
Urgência em parar desmatamento
O debate online foi organizado pela Iniciativa de Comunicação e Sustentabilidade do Earth Institute, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Uma terceira participante desse encontro foi Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e especialista em queimadas na Amazônia. Ela explica: “Algo que precisa ficar claro é que a Amazônia não queima naturalmente. Todos os incêndios que temos visto são provocados pelo homem”, explicou Ane Alencar.
“Ao contrário das florestas na Austrália e ou nos Estados Unidos, onde há incêndios naturais, a Amazônia é caracterizada pela intensa umidade. Isso significa que ela pode queimar apenas em condições muito específicas e muito raramente, uma vez ‘entre 500 e mil anos’”, destacou Ane Alencar. Pela exploração predatória, o regime dos incêndios no território amazônico já se reduziu para apenas 12 anos.
Partiu de Ane o alerta: “Com a crise de covid-19, a necessidade de parar com o desmatamento é maior do que nunca. Mas o país está seguindo na direção oposta”.
Ane Alencar é uma das autoras do estudo do Ipam lançado recentemente que indica uma área desmatada de pelo menos 4.500 quilômetros quadrados que pode ser queimada este ano. Quatro estados concentram 88% dessa área: Pará (com 42%) dos 4,5 mil km2, Mato Grosso (23%), Rondônia (13%) e Amazonas (10%).
De acordo com o Deter, o sistema de alerta de desmatamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais), houve um aumento de 34,5% nos alertas da área de desmatamento da floresta amazônica entre janeiro e maio de 2020 (correspondente a 2.033 km²), quando comparado ao mesmo período de 2019 (1.512 km²). O Sistema de Alerta de Desmatamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) apresentou uma expansão próxima à do Deter, de 39,0%. O desmatamento acumulado de janeiro a maio foi de 1.257 km² em 2019 para 1.722 km² neste ano.
A pesquisadora Ane Alencar considera o fogo a forma mais rústica de transformação utilizada para desmatar a floresta. “Os incêndios na Amazônia geralmente são o último estágio do desmatamento, ou são usados em áreas que já estavam desmatadas para limpar alguns campos para a pastagem. Para controlar incêndios, temos que controlar o desmatamento”, resume.
Cerca de metade do desmatamento recente ocorreu em terras públicas, o que significa invasores querendo se apossar da terra e abrindo espaço para potenciais conflitos agrários. “Queimadas na Amazônia podem ser controladas com políticas públicas”, sugere Ane Alencar.
De acordo com nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), 48% dos focos de calor de 2019 encontram-se concentrados em cinco categorias: florestas não-designadas, áreas sem informação, unidades de conservação, APAs (Áreas de Preservação Ambiental) e Terras Indígenas – todas terras públicas.
Impactos vão além da Amazônia
Para Márcia Castro, uma temporada de queimadas na Amazônia pode agravar as consequências da Covid-19 nos pacientes. Há riscos de co-infecções, que ocorrem quando a pessoa se contamina com o novo coronavírus e também contrai malária ou dengue. Embora ainda não haja conhecimento sobre as consequências e severidade de co-infecções, elas podem ser “potencialmente graves”, alerta a pesquisadora.
E esse impacto pode não se restringir à região Norte. Márcia Castro lembra que os incêndios em 2019, por terem atingido uma dimensão tão expressiva em diferentes partes da Amazônia, foi sentido também no Sudeste, quando a fumaça da floresta queimada fez o dia virar noite em São Paulo.
A pesquisadora também chama atenção para o fato de que “patógenos viajam com pessoas, e a propagação de doenças pode ter um amplo impacto social e econômico para além da Amazônia”.
Por último, a demógrafa de Harvard fez um alerta sobre o impacto do desmatamento na vida humana. “O cenário de degradação ambiental, particularmente de desmatamento e queimadas intencionais traz sérias consequências para a saúde pública (…) [uma delas, é] o perigo de emergência de zoonoses. Ao menos 187 espécies distintas de arbovírus e outros vírus encontram-se isolados na Amazônia. Destes, dois terços são patógenos aos humanos”, sublinha Castro. Ou seja, dois terços dos vírus isolados na Amazônia e que circulam entre outras espécies, podem ser considerados agentes infecciosos, caso passem a se difundir entre os humanos. O desmatamento, por aumentar a proximidade entre espécies, aumenta a chance de novas epidemias.
Por: Fábio Zuker | 30/06/2020 às 22:27
PUBLICADO EM: AMAZÔNIA REAL
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