Certificação, políticas públicas e mudança de mentalidade dos garimpeiros são essenciais contra a ilegalidade, diz Ana Bragança, procuradora da República.

Foto: Instituto Escolhas

A Força-tarefa Amazônia, criada em 2018, no âmbito do Ministério Público Federal (MPF) para combater a criminalidade ambiental no norte do país, atuou, desde então, em várias ações contra o desmatamento, o garimpo ilegal de ouro e outros tipos de impactos ambientais. Na coordenação dos trabalhos, a procuradora da República Ana Carolina Haliuc Bragança vê com otimismo as atividades do órgão, que foram garantidas por mais um ano em fevereiro. Segundo ela, por enquanto, o acirrado debate ambiental em Brasília não interfere no trabalho diário dos procuradores.

Sobre os problemas enfrentados na maior floresta tropical do mundo, Ana Carolina é enfática em dizer como a postura do grupo que ela coordena mudou a forma de entendimento dos mecanismos que os garimpos ilegais usam na região. Essa clareza do processo, segundo ela, permitiu ao Ministério Público Federal agir de forma estratégica no combate à mineração ilegal na Amazônia.

Nesta entrevista ao Instituto Escolhas, Ana Carolina também explica como as mudanças apresentadas ao Congresso Nacional para alterar a legislação de regularização fundiária em vigência no País vão incentivar o desmatador a derrubar ainda mais a floresta, em todo os biomas do Brasil.

Instituto Escolhas – Quando falamos em garimpo ilegal, estamos nos referindo a que tipo de atividade exatamente? Como separar o legal do ilícito? 

Ana Carolina Haliuc Bragança – Para ser legal, toda lavra de mineração precisa ter dois documentos. Sem eles, trata-se de uma atividade ilegal. O primeiro documento é aquele em que a União autoriza o interessado a promover a lavra, porque todo minério pertence ao Governo Federal, conforme atesta a Constituição Federal. Quando a União autoriza, ela está dando a uma pessoa a prerrogativa de usufruir de um patrimônio que em princípio é dela. O segundo ato administrativo é a licença ambiental. Ela avaliza a utilização da lavra em relação aos impactos ambientais e define as medidas de compensação e mitigação que precisam ser feitas para que aquela atividade tenha o menor impacto possível sobre o meio ambiente. Quando falamos de garimpo ilegal, nos referimos a atividades de pessoas que promovem uma lavra tanto sem autorização da União, que é dada por meio da Agência Nacional de Mineração, quanto sem licenciamento ambiental, que pode ser dado, dependendo do caso, pela União, pelo Estado ou pelo município. O garimpo ilegal, hoje, está presente da forma transversal na Amazônia em quase todos os Estados. Em Roraima, no Amazonas, em Rondônia, no Pará, no Amapá e em Mato Grosso. Quase todos os Estados têm, em alguma medida, incidência de garimpo ilegal de ouro. A porcentagem dessa ilegalidade é que não é muito bem definida. No levantamento do Escolhas [apresentado no TD “A nova corrida do ouro na Amazônia”] é mostrado que 20% de ilegalidade daquilo de tudo o que é produzido de ouro no Brasil. Se você, entretanto, trouxer isso para a realidade amazônica, pode ser que essa porcentagem seja muito maior. São dados, ainda, que precisam ser mais bem aprofundados.

Escolhas – Podemos afirmar que o garimpo, hoje, é o principal motor de destruição da floresta?

Ana Carolina – Embora em área a destruição do garimpo não seja tão relevante quanto a do desmatamento, é uma atividade especialmente gravosa pelo impacto profundo que ela causa. No contexto de um garimpo na Terra Indígena Yanomami, em que existe o uso intensivo de mercúrio, e há dados do Ministério de Minas e Energia que mostram que 95% dos garimpeiros ilegais usam mercúrio, o rio Uraricoera, por exemplo, um dos principais da Terra Indígena, fica completamente poluído. O que representa um dano ambiental gravíssimo para a fauna, para a flora e para as comunidades. O impacto do garimpo que se espraia pelo solo e pelos recursos hídricos é muito grave. Por isso, este problema transversal precisa ser fortemente enfrentado. Existe um laudo da Polícia Federal, produzido em Santarém, que menciona, por exemplo, que o garimpo lança no rio Tapajós, a cada sete anos, uma quantidade de dejetos equivalente ao lançado no desastre de Mariana. E faz décadas que isso vem ocorrendo. O garimpeiro, quando pensa na atividade individual dele, muitas vezes não enxerga o alcance que ela tem como um todo, mas ele é parte de uma engrenagem que cumulativamente gera um dano extremamente significativo.

Escolhas – É por isso que você defende a tese de que os impactos ambientais do garimpo são socializados?

Ana Carolina – O conceito das externalidades é algo bem definido no campo da Economia. O garimpeiro internaliza o lucro com a atividade, ele extrai e vende o ouro e esse dinheiro fica com ele, mas o dano ambiental que é causado pela atividade dele, ele não paga. O dano acaba sendo suportado por todo mundo que vive naquele ecossistema, inclusive por todos os demais seres vivos, as plantas e os animais. E ainda por toda a sociedade que não vive diretamente naquele ambiente, mas que se beneficia dos serviços ambientais que ele presta. No caso da floresta amazônica, portanto, é todo mundo, como está demonstrado.

Escolhas – A atividade do garimpo na Amazônia também engloba um aspecto social importante, existe alguma alternativa para esse tema ser solucionado?

Ana Carolina – De fato, o garimpo também é um problema social. Existe uma massa de pessoas que continua sendo explorada em função do garimpo. Tanto que o MPT [Ministério Público do Trabalho] tem grupos relacionados com a exploração de trabalho escravo em contexto de garimpo. O problema social surge nesta atividade quando as economias locais fazem a captação do ilícito. Existe a ideia de que a única forma de geração de renda, para aquele município ou aquela população, é o garimpo. Enquanto não houver uma mudança de mentalidade dos próprios empreendedores e também políticas públicas efetivas de incentivo a outros mecanismos de geração de renda na floresta, este dilema, que é antigo, vai continuar. O desenvolvimento sustentável só faz sentido levando-se em conta os aspectos ambientais e sociais. Um sem o outro não faz sentido. Encontrar o ponto de contato entre eles é importante, e, com certeza, ele não está na forma como a floresta é explorada hoje pelo garimpo.

Escolhas – Quando falamos em soluções para diminuir os impactos ambientais e sociais do garimpo isso passa por uma maior preocupação em certificar o ouro que é extraído do solo da floresta?

Ana Carolina – Nesta área, a primeira coisa que realmente precisa ser feita é o Estado passar a investir em mecanismos de controle e de certificação do ouro. Normalmente, o ouro ilegal é introduzido na economia na primeira venda, aquela que o garimpeiro faz para o posto de compra de ouro, que representa uma DTVM [Distribuidora de Títulos de Valores Mobiliários]. Nesse momento é que ocorre a fraude. Nesta primeira venda, o cruzamento de dados que permite a identificação de um ato ilícito é extremamente frágil. A maior partes das DTVMs sequer identificam se, de fato, o título de lavra que o garimpeiro invoca é realmente de ouro, se ele está vigente ou se o relatório anual de lavra, um documento obrigatório, foi apresentado. Elas também não conferem se aquele título está em nome da pessoa que está vendendo o ouro, ou, então, se o vendedor tem um contrato de parceria com o titular da lavra. Cruzar dados, por meio de algum sistema eletrônico, já seria uma primeira forma de controle para dificultar a fraude. Não vou dizer eliminá-la, porque isso é quase impossível. A segunda coisa importante seria ter um sistema de rastreamento do ouro, assim como existe para a madeira, e que também não está imune a fraudes, mas tem dificultado com que ela ocorra. Isso seria importante para verificar o caminho percorrido pelo ouro que está na ponta, em uma indústria joalheira por exemplo. Há ainda um terceiro caminho a ser desenvolvido que é investir na produção de ouro nos garimpos por meio da mineração com redução de danos. Essa é uma mineração que não usa mercúrio e está baseada em tecnologias mais modernas. Essa possibilidade de inovação, que considera a possibilidade de desenvolvimento social, econômico e ambiental, é muito importante. Não podemos ficar presos no passado. O setor privado, que possui as DTVMs, documento obrigatório para operar com ouro como ativo financeiro, também tem, cada vez mais, que trabalhar para se certificar que não está comprando ouro de origem ilegal. Essa preocupação com toda a cadeia de produção é uma realidade mundial atualmente.

Escolhas – Quais são os próximos passos da Força-tarefa Amazônia?

Ana Carolina – Temos um mecanismo de trabalho que é semelhante ao de um grupo de apoio. Não usamos o modelo, por exemplo, da Lava Jato, de procuradores designados para um caso específico. Temos, na verdade, um grupo grande de procuradores e a maior parte deles já trabalha com meio ambiente na Amazônia. E temos outros colegas que não trabalham com meio ambiente, mas com combate a corrupção ou com a questão criminal. E, ao agregá-los, a gente consegue aumentar a força de trabalho. Com esse formato, então, a Força-tarefa consegue fortalecer a ação do Ministério Público na área de meio ambiente. Vejo com otimismo a forma como estamos trabalhando. Desenvolvemos uma interlocução muito próxima com diferentes pessoas que trabalham nos Estados da região, o que torna possível as conversas sobre replicar uma metodologia que funcionou em outras localidades e ainda desenvolver visões comuns sobre problemas enfrentados em vários lugares, como é o caso do garimpo. A perspectiva, por exemplo, que a gente precisava sair do foco do garimpeiro na base e passar a olhar como o ouro está sendo internalizado na economia foi construída coletivamente. Foram diversos colegas trabalhando com esse mesmo olhar e trocando muitas informações entre si. Isso foi um resultado muito positivo. É um trabalho de grupo, de instituição mesmo.

Escolhas – Vocês desenvolveram várias ações até agora na Amazônia, contra o desmatamento, o garimpo e outras questões. Qual tem sido a recepção do Judiciário ao trabalho da Força-tarefa?

Ana Carolina – Temos demandas em vários lugares. No Amazonas, em Rondônia, no Pará. De maneira geral, o Judiciário tem colaborado. Diferente de nós, eles não têm essa organização regional, mas eles têm atuado com imparcialidade, com independência, com o rigor natural que eles têm em casos complexos. Não vejo resistência, pelo contrário, e em muitos casos, inclusive, eles vêm nos parabenizando pela organização e pelo nosso modo de trabalho, dentro, sempre, da independência deles. Não necessariamente acolhendo tudo o que a gente pede. Mas eles são sensíveis aos problemas que enfrentamos. E cientes, também, que o Judiciário tem um papel a ser exercido na repressão aos ilícitos ambientais.

Escolhas – As discussões sobre a questão ambiental em Brasília estão afetando o trabalho de vocês de alguma forma?

Ana Carolina – Por enquanto não. A Força-tarefa foi renovada, não houve nenhuma tentativa de interferência no nosso trabalho, por enquanto não houve nada que nos impedisse de trabalhar.

Escolhas – Qual é a avaliação que você faz sobre as propostas de alteração na legislação de regulação fundiária? Estas alterações colaboram, de alguma maneira, com o enfrentamento às questões sociais que existem no mundo rural?  

Ana Carolina – Nós trabalhamos com a temática da regularização fundiária na questão do enfrentamento ao desmatamento e produzimos até uma nota técnica tanto sobre a MP 910/2019 quanto sobre o PL 2633/2020. A questão social associada a regularização fundiária existe. Ou seja, há uma massa de pequenos agricultores que precisa de fato, por estarem lá há muito tempo, que suas terras sejam regularizadas. Mas essa demanda já é atendida pela legislação vigente, que permite a regularização fundiária de áreas com até quatro módulos fiscais, inclusive sem vistoria, desde que utilizados mecanismos eficientes de fiscalização ambiental. Tem decisão do Supremo Tribunal Federal [STF] mencionando especificamente essa questão. Na Amazônia, os quatro módulos fiscais representam 440 hectares. O pequeno agricultor, portanto, já é atendido. A modificação proposta agora vem para ampliar o público com direito a dispensa de vistoria. A proposta do relator é de até seis módulos, o que adentra a média propriedade, e tem propostas da bancada ruralista para ampliar em até 15 módulos a área que terá dispensa de vistoria. Isso, a gente entende ser extremamente pernicioso.

Escolhas – Qual o risco destas dispensas de vistoria?

Ana Carolina – Essa dispensa de vistoria é muito complicada no sentido de que ela pode mascarar conflitos que são comuns na Amazônia e que não são detectáveis por satélite. O satélite mostra que determinada área estava sendo cultivada desde uma certa data, mas ele não mostra quem era o responsável por aquele cultivo. Conhecer todo esse processo é extremamente importante em um contexto em que a grilagem está muito presente e onde os conflitos pela terra também. Essa Lei vem também para ampliar a política de regularização fundiária fora da Amazônia. Entendemos que tudo isso deveria ser submetido a um debate mais amplo. As medidas facilitadoras de regularização fundiária pensadas pela Lei 11.952 [de 2009], que é a lei original, se basearam no fato de que a Amazônia é um lugar extremamente precário no sentido de acesso a mercados e ao escoamento da produção. Pelo fato de os pequenos produtores terem uma série de dificuldades de logística, isso justificaria, então, uma política pública de fixação na terra que facilite a vida deles e poderia se pagar pouco pelo título. Mas, quando a gente estende essa política para vários outros biomas que não enfrentam essas dificuldades, serão oferecidas facilidades que foram pensadas para um contexto de precariedade a quem não vive essa precariedade. Está se abrindo mão, assim, de um patrimônio público. Não sabemos nem quanto de patrimônio público estaria sendo entregue por preços muito abaixo de mercado. O impacto disso para a União, seja social ou patrimonial, não foi mensurado. Esse é um debate que tem que ser aprofundado.

Escolhas – Por toda a sua experiência acumulada na região amazônica, podemos afirmar que desmatamento, crime organizado e corrupção é tudo a mesma coisa?

Ana Carolina – São processos interrelacionados. Hoje, conseguimos observar que os infratores ambientais se organizam de modo estruturado, com pessoas exercendo funções específicas dentro de uma organização. Por exemplo, a pessoa que quer grilar uma terra pode contratar uma segunda pessoa para ser um capataz. Essa pessoa vai contratar efetivamente quem vai fazer o desmatamento. Além disso, vai ser contratada uma outra pessoa em nome de quem vai ser feito o CAR [Cadastro Ambiental Rural] ou o cadastro de imóvel rural no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], para que o nome do efetivo grileiro não apareça. Esse grileiro pode corromper, eventualmente, agentes estatais, sejam eles ambientais ou fundiários. Com isso, a expectativa é sempre obter ganhos a partir do exercício de atividades econômicas dentro da área grilada e desmatada. Esse quadro já caracteriza uma forma típica de organização criminosa porque pessoas diferentes, em funções diferentes, estão todas voltadas para um objetivo comum: apropriação privada do patrimônio público.

Por Eduardo Geraque

PUBLICADO EM:     INSTITUTO ESCOLHAS