A frase é do coronel Alexandre Luís de Freitas de Almeida ao justificar a suspensão, no dia 9 de junho, do apoio da polícia nas ações de combate ao desmatamento pelo Ibama, que incinera maquinário de madeireiros.
Porto Velho (RO) – “É melhor preservar vidas do que vegetação”, admitiu o comandante-geral da Polícia Militar de Rondônia, coronel Alexandre Luís de Freitas Almeida, ao justificar a suspensão do apoio a operações de combate ao desmatamento. Desde o dia 9 de junho, fiscais do Ibama e do ICMBio não contam com a proteção das forças policiais do Estado nas operações que destroem equipamentos de madeireiros e garimpeiros acusados de crimes ambientais.
“Nossos policiais estão correndo risco de vida enorme, revoltando a população local com as destruições”, afirmou o comandante Almeida à reportagem da Amazônia Real. Na prática, a falta de apoio da PM fragiliza ou até inviabiliza o combate ao desmatamento em Rondônia. Para o coronel, essa medida está alinhada com as preocupações do governador Marcos Rocha (PSL), que é da base aliada do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).
“É clarividente que esta determinação de suspensão temporária das operações em apoio [ao Ibama], tão somente expressa o cuidado com o nosso efetivo, com as pessoas de um modo geral e com a política do governo”, disse o coronel.
Com mais de 30 anos de carreira militar, o comandante Alexandre Almeida foi empossado em 3 de junho pelo governador Marcos Rocha. Ele substituiu o coronel Mauro Ronaldo Flores, que pediu demissão do cargo no fim de maio. A reportagem apurou que o ex-comandante estava insatisfeito com questões salariais e operacionais da tropa.
Ronaldo Flores afirmou à Amazônia Real que, enquanto esteve no cargo, cumpriu o que diz a lei, mas presenciou situações de conflitos que “sugeriram mudar a conduta de inutilização de caminhões e tratores”.
A Instrução Normativa (IN) 19 está em vigor há seis anos. Ela permite que os fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes para Biodiversidade (ICMBio) destruam maquinários de madeireiros e garimpeiros e recebam apoio das PMs nos Estados. Mas a IN é combatida até pelo presidente da República, que recebe apoio dos empresários do agronegócio.
Em 9 de junho, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgava que Rondônia é o quarto estado da Amazônia Legal que mais desmatou a floresta amazônica entre agosto de 2018 e julho de 2019 (totalizando 1.257 quilômetros quadrados de área destruída), o coronel Almeida enviou um ofício comunicando sua decisão de não apoiar as ações do Ibama ao Ministério Público Federal e à Superintendência Regional da Polícia Federal. No documento, o coronel questiona a ação do Ibama dizendo que “nos sobrevieram relatórios de inteligência, os quais sugerem que a referida regulamentação não está sendo devidamente cumprida, o que pode vir a denegrir a imagem do governo do Estado”.
O comandante geral da PM de Rondônia afirmou, ainda no ofício, que é “risco desnecessário, a utilização de combustível sem o devido cuidado para incineração dos bens alheios (…)”. E admitiu que não cabe a ele questionar “a regulamentação federal permissiva, porém, no uso das atribuições inerentes do cargo, decido que até que haja um ajuste procedimental entre os órgãos federais e esta instituição, está suspenso temporariamente o apoio policial militar às ações desenvolvidas pelos parceiros Ibama e ICMBio”.
Na entrevista à Amazônia Real, o coronel Almeida voltou a citar que “relatórios de inteligência sinalizam perigo de ataques e revoltas populares durante as operações”, mas não deu detalhes sobre esses estudos.
Dois dias antes da publicação da portaria de 9 de junho, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, visitou Porto Velho, e anunciou a prorrogação da Operação Verde Brasil 2, um esforço conjunto de ações preventivas e repressivas aos delitos ambientais. Coordenada por Mourão, a operação é a sequência da ação deflagrada pelo governo federal para prevenir e reprimir delitos ambientais no ano passado, durante a crise provocada pelas queimadas na Amazônia.
No encontro com Mourão, o governador Marcos Rocha reforçou a integração das ações governamentais relacionadas à Amazônia Legal. “O governo de Rondônia está unido. Em todas as ações temos reportado ao governo federal, e isso tem dado facilidade para que seja feito o planejamento adequado”, destacou.
Rocha, que foi eleito com o mote “Eu sou ele, ele é eu”, em referência ao então presidenciável Jair Bolsonaro, não se manifestou até o momento sobre a decisão do coronel Almeida.
Procurada nesta segunda-feira (22), a assessoria de imprensa do Comando Geral da PM de Rondônia demostrou que a decisão do coronel Almeida pode ser revista e informou que o assunto está em tratativas com os órgãos envolvidos nas operações de combate ao desmatamento. Uma reunião, segundo a assessoria, foi marcada para a próxima quarta-feira (24).
Combate à destruição em meio à pandemia
A suspensão do apoio da PM de Rondônia às ações de fiscalização ambientais chega num momento crítico no combate ao desmatamento. Dados do Inpe, com base em imagens de satélite, mostram que de janeiro a junho deste ano foram detectados 318 focos de incêndio em Rondônia, 94 apenas em junho. Houve um aumento de 22,7% na comparação de janeiro a junho de 2019 e 2020.
Os incêndios florestais ocorrem tanto por quem explora ilegalmente a madeira, como pelos que querem aumentar área de produção agropecuária. Os Ministérios Públicos Federal e Estadual publicaram, em 16 de junho, uma recomendação para que a Secretaria de Desenvolvimento Ambiental do Estado suspenda autorizações para uso de fogo controlado a fim de evitar queimadas e em função da pandemia do novo coronavírus.
“As queimadas, autorizadas ou não, em meio à pandemia da Covid-19, ampliam o risco de mortes e de colapso do sistema hospitalar por doenças respiratórias, que normalmente já são observadas em todos os anos em decorrência da inalação dos gases oriundos da fumaça das queimadas”, destacaram.
Desmonte na área ambiental
A pandemia do novo coronavírus foi decretada em 11 de março. Naquele momento, já estava em curso o desmonte da área ambiental no governo federal. A manobra ficou clara quando o ministro Ricardo Salles passou a demitir chefes das áreas de fiscalização do Ibama e substituí-los por militares. No dia 14 de abril, foi exonerado o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Alves Borges Azevedo, major da PM de São Paulo e homem de confiança do ministro Salles, além de indicado por Bolsonaro. Em 30 de abril, foram exonerados Renê Luiz de Oliveira, da coordenação geral de fiscalização ambiental, e de Hugo Ferreira Netto Loss, da coordenação de operações de fiscalização.
Olivaldi Azevedo, Renê Luiz de Oliveira e Hugo Ferreira Netto Loss estavam à frente das operações de combate a crimes ambientais na Amazônia no contexto da pandemia da Covid-19. Desde o dia 4 de abril, o Ibama realizava ações na região sul do Pará para prevenir o avanço da pandemia em terras indígenas e a destruição das florestas neste período de isolamento social da população. Na ação, os fiscais expulsaram garimpeiros e madeireiros, e destruíram o maquinário utilizado pelos invasores nas Terras Indígenas Araweté (do povo Araweté e indígenas isolados do Igarapé Bom Jardim), Apyterewa (dos Parakanã) e Trincheira Bacajá (dos Kayapós e dos Xikrin).
Os fiscais do Ibama ainda destruíram os acampamentos dos madeireiros e de garimpeiros, além de apreenderem madeira e animais silvestres. As ações foram tema de reportagem no programa Fantástico, da TV Globo, no dia 12 de abril. Na semana seguinte, Ricardo Salles iniciou as exonerações. No lugar do major Olivaldi, o ministro nomeou, no dia 14 de abril, o coronel da reserva da PM paulista, Olímpio Ferreira Magalhães. As circunstâncias da exoneração na chefia da Dipro estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal.
No dia 22 de abril, Ricardo Salles participou da reunião ministerial que expôs ao Brasil o estilo autoritário, desrespeitoso, preconceituoso e inconstitucional da gestão do presidente Jair Bolsonaro. No encontro gravado, que posteriormente se tornou público, o ministro se revelou ao mundo. Ele sugeriu que o governo aproveitasse a crise com a pandemia do novo coronavírus para flexibilizar as legislações ambientais.
“Porque tudo que a gente faz é pau no Judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam … é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”, aconselhou Ricardo Sales.
Entidades, como o Observatório do Clima, pediram o afastamento do ministro Ricardo Salles “por tramar contra a própria pasta”, publicou o site G1. Em um comunicado, a organização disse que o ministro do Meio Ambiente estaria disposto a desmontar seu ministério e incentivou o governo a fazer o mesmo.
Fiscalização enfraquecida
A decisão do coronel Alexandre Almeida, comandante da PM, agradou o setor madeireiro do sul de Rondônia. Um madeireiro, que pediu sigilo, justificou a decisão do militar. “Tem policial que age como fiscal e o papel dele é só auxiliar. Muitas vezes chegam junto com fiscais e tratam quem age dentro da lei como se fosse bandido”, disse à reportagem.
Madeireiros e grileiros são os maiores destruidores de florestas em unidades de conservação e terras indígenas de Rondônia. Na eleição de Jair Bolsonaro, uma equipe do Ibama sofreu um ataque, em 2018. Leia aqui>>>
Para agentes de fiscalização do Ibama, a decisão de tirar o apoio policial das operações de combate aos crimes ambientais deve ter sido motivada por pressão da classe política que mantém estreitos laços com o agronegócio.
“Só quem ganha com essa medida são os infratores e os ruralistas. Os policiais nem devem ter gostado, pois perdem em seus rendimentos o acréscimo com diárias”, disse um dos fiscais ouvido pela Amazônia Real e também pediu sigilo. Funcionários do Ibama e ICMBio estão proibidos de conceder entrevistas, conforme a Portaria nº 560, de 27 de fevereiro de 2020, sem prévio contato com a assessoria do órgão.
‘Não é pra queimada nada’, disse Bolsonaro
O enfraquecimento das políticas e ações de fiscalização ao desmatamento da Amazônia faz parte de uma lógica do governo de Jair Bolsonaro, que não esconde sua intenção de explorar economicamente a região e é um claro inimigo dos povos tradicionais da floresta.
Em 2019, a Folha de S.Paulo publicou que Bolsonaro desautorizou, em um vídeo que circulou nas redes sociais, uma operação em andamento do Ibama contra roubo de madeira dentro da Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia. Os fiscais do Ibama queimaram caminhões e tratores e acusações por crimes ambientais. “Não é pra queimar nada, maquinário, trator, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, disse o presidente.
No ano passado, houve um ataque de populares contra uma operação de fiscalização do Ibama no distrito de Espigão do Oeste próximo à Reserva Indígena Roosevelt, dos indígenas Cinta-Larga, no sul de Rondônia. Um caminhão-tanque que levava combustível para abastecimento de três helicópteros foi incendiado.
Duas semanas após o ataque, o ministro Ricardo Salles foi pessoalmente à região e declarou: “O que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos de uma política pública da produção de leis, regras, de regulamentos que nem sempre guardam relação com o mundo real. O que estamos fazendo agora é justamente aproximar a parte legal do mundo real que acontece em todo país de norte a sul”.
Em agosto de 2019, um áudio do deputado federal Lúcio Mosquini (MDB-RO), que circulou no aplicativo de WhatsApp, levou a madeireiros o compromisso do governo Bolsonaro com a flexibilização da legislação ambiental na Amazônia. “Primeiro, hoje está sendo substituído lá em Espigão Do Oeste, os fiscais do Ibama. Quem já estava trabalhando na operação será substituído por outros fiscais, até mesmo para evitar qualquer tipo de descontentamento”, disse Mosquini.
Outro áudio distribuído foi divulgado pela Folha em outubro de 2019 e revelou orientação do ex-senador cassado Ernandes Amorim a garimpeiros contra operação do Ibama. “É muito fácil o cara chegar e queimar material dos outros. Na hora que ‘neguinho’ tiver queimando casa de um, botando fogo na casa de outro, explodindo aqui, explodindo ali, aí ‘nego’ começa a ver que tem que parar pra acertar”, disse Amorim.
O embate entre políticos, madeireiros, fazendeiros e fiscais do Ibama teve seu ápice em agosto de 2019, quando um grupo de comerciantes anunciou atear fogo nas florestas nos municípios de Novo Progresso e São Félix do Xingu, ação ficou conhecida como “o dia do fogo”. Com o ato, o grupo cobrou do presidente Bolsonaro a promessa de que fiscais do Ibama não iriam mais destruir maquinários apreendidos em operações.
Todos esses episódios estimularam o descontrole das queimadas no período crítico entre maio e outubro de 2019, com 10.792 focos de calor registrados pelo Inpe no estado, sendo 32,5% deles na capital Porto Velho. Os municípios de Nova Mamoré, Cujubim, Candeias do Jamari, Machadinho D’Oeste, Buritis e Vilhena foram os mais afetados.
O que dizem as autoridades
Procurado pela Amazônia Real para falar, a assessoria de imprensa do governador Marcos Rocha respondeu dizendo que ele “não se posicionará sobre o assunto”, isto é, a decisão do comandante-geral da PM de Rondônia, coronel Alexandre Almeida, que suspendeu o apoio ao Ibama e ao ICMBio.
O Ministério do Meio Ambiente informou que o assunto está sendo tratado pelo comandante da Operação Verde Brasil 2, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. A reportagem enviou perguntas ao vice-presidente, que não se pronunciou até a publicação desta reportagem. (Colaborou Kátia Brasil)
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