O processo histórico de abertura de estradas na Amazônia é marcado por intensos conflitos sociais envolvendo posseiros, pecuaristas, agricultores, seringueiros e indígenas.
O status privilegiado concedido aos grandes atores empresariais, agrícolas e industriais e a violência associada à rápida expansão de grandes projetos de desenvolvimento, resultaram na região ser tratada como homogênea, desrespeitando as diferenças sociais e ecológicas e destruindo o conhecimento e os modos de vida tradicionais [1]. O estado de Rondônia, cuja capital (Porto Velho) fica no extremo sul da Rodovia BR-319, recebeu grandes fluxos migratórios de pequenos agricultores, pecuaristas e madeireiros ilegais, que desmataram a maior parte do estado, incluindo desmatamento em unidades de conservação [2]. Espera-se que esses agentes migrem para o norte ao longo da Rodovia BR-319. Esses são os mesmos atores que abriram repetidamente estradas ilegais (a partir de estradas legais) e intensificaram o desmatamento nas fronteiras em toda a região amazônica [3].
Atualmente, a Amazônia está enfrentando um aumento do desmatamento ilegal e atividade de grileiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros, incluindo aqueles em Terras Indígenas e unidades de conservação, resultando em maiores conflitos com os povos indígenas [4]. Esse cenário sinistro foi estimulado tanto pelo discurso antiambiental do atual presidente do Brasil, que assumiu o cargo em 1 de janeiro de 2019, quanto por suas ações concretas em demolir medidas que haviam combatido esses males nas administrações presidenciais anteriores [5, 6].
O Ministério Público Federal do Brasil, que foi criado pela Constituição do país de 1988 para defender os interesses do povo, estabeleceu um fórum para discutir a governança territorial, a fim de ajudar na proposta reconstrução da Rodovia BR-319. Embora a maior parte dos participantes do fórum são potenciais beneficiários diretamente interessados em promover o projeto da rodovia, vários indivíduos de instituições de pesquisa e de organizações não-governamentais alertaram para os riscos que o projeto representa para os povos indígenas e para o meio ambiente [7-9]. Um Procurador da República do fórum (Rafael da Silva Rocha) enfatizou que o desmatamento já está ocorrendo, que a falta de governança é um problema atual e que a reabertura da rodovia poderia piorar esse cenário [9].
Um estudo econômico do Conservation Strategy Fund mostrou que a rodovia é economicamente inviável [10]. A rodovia não é uma prioridade para o polo industrial de Manaus, porque os custos de transporte de produtos de Manaus para São Paulo, seja por navio (via cabotagem) ou pelo sistema atual que combina barcaças e transporte rodoviário, são muito mais baratos que o transporte pela rodovia BR-319 [11].
A rodovia BR-319 é o único grande projeto de infraestrutura na Amazônia brasileira que não possui um estudo de viabilidade para demonstrar sua racionalidade econômica. O motivo da exceção foi porque a estrada é supostamente necessária para a “segurança nacional”, conforme declarado em 8 de junho de 2009 por um representante militar em uma reunião sobre licenciamento da BR-319 realizada pelo Ministério Público Federal em Brasília [12]. No entanto, em 23 de fevereiro de 2012, o então comandante militar da Amazônia declarou em um seminário no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) em Manaus que a rodovia não é uma prioridade para a segurança nacional porque está longe das fronteiras do país (ver: [13, 14]). A rodovia também não aparece na lista de prioridades de segurança nacional do país [15].
Em 5 de dezembro de 2019, um representante do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) declarou em uma reunião no Ministério Público Federal em Manaus que o motivo da exceção foi o papel da rodovia em levar serviços sociais aos residentes ao longo da rota da rodovia [16]. No entanto, a rodovia BR-319 não faz sentido como investimento para melhorar a vida dos moradores do interior da Amazônia, devido ao alto custo da estrada (cerca de R$ 4 bilhões ou US$ 1 bilhão apenas para a estrada sem abordar os impactos sociais e ambientais). A grande despesa significa que muito mais benefício social poderia ser alcançado usando esses fundos para escolas, postos de saúde e outras instalações necessárias em toda a região. De fato, a oportunidade oferecida pelo projeto da rodovia para os políticos locais ganharem visibilidade (por exemplo, [17]) significa que o valor do projeto como atração de apoio eleitoral em Manaus é o verdadeiro motivo da rodovia [14, 18].[19]
Por: Amazônia Real | 09/06/2020 às 15:27
A imagem que ilustra este artigo mostra a BR 319 no KM 615 em 2017 (Foto: Fernando O G Figueiredo/ Repositório de Imagens PPBIO-CENBAM)
Notas
[1] Becker, B. K., 2001. Síntese do processo de ocupação da Amazônia – Lições do passado e desafios do presente. p. 5-28 In: V. Fleischresser (ed.) Causas e Dinâmicas do Desmatamento na Amazônia, Ministério do Meio Ambiente (MMA), Brasilia, DF. 436 p
[2] Pedlowski, M. A., Matricardi, E. A. T., Skole, D., Cameron, S. R., 2005. Conservation units: A new deforestation frontier in the Amazonian state of Rondônia, Brazil. Environmental Conservation 32(2): 149-155.
[3] Perz, S. G., Caldas, M. M., Arima, E., Walker, R. J., 2007. Unofficial road building in the Amazon: Socioeconomic and biophysical explanations. Development and Change 38(3): 529-551.
[4] Hanbury, S., 2019. Murders of indigenous leaders in Brazilian Amazon hits highest level in two decades. Mongabay, 14 de dezembro de 2019.
[5] Ferrante, L., Fearnside, P. M., 2019. Brazil’s new president and “ruralists” threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation 46(4): 261-263.
[6] Valente, R., 2019a. Invasões a terras indígenas disparam sob Bolsonaro, aponta conselho da CNBB. Folha de S. Paulo, 24 de setembro de 2019.
[7] MPAM (Ministério Público do Estado do Amazonas), 2019a. Ata da 12ª Reunião do Fórum Permanente de Discussão sobre o processo de reabertura da rodovia BR-319. MPAM, Manaus, Amazonas.
[8] MPAM (Ministério Público do Estado do Amazonas), 2019b. Ata da 13ª Reunião do Fórum Permanente de Discussão sobre o processo de reabertura da rodovia BR-319. MPAM, Manaus, Amazonas.
[9] MPAM (Ministério Público do Estado do Amazonas), 2019c. Ata da 17ª Reunião do Fórum Permanente de Discussão sobre o processo de reabertura da rodovia BR-319. MPAM, Manaus, Amazonas.
[10] Fleck, L., 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Série Técnica, no. 17. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, Minas Gerais. 53 p.
[11] Teixeira, K. M., 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos: São Carlos, São Paulo. 235 p.
[12] P.M. Fearnside, observação pessoal.
[13] Fearnside, P. M., 2012. Segurança nacional na Amazônia. p. 177 & 191. In: A. L. Val & G. M. dos Santos (eds.) GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. Tomo V, Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas. 191 p.
[14] Fearnside, P. M., 2015a. Highway construction as a force in destruction of the Amazon forest. p. 414-424 In: R. van der Ree, D.J. Smith & C. Grilo (eds.) Handbook of Road Ecology. John Wiley & Sons, Oxford, Reino Unido. 552 p.
[15] PR (Presidência da República), 2008. Estratégia Nacional de Defesa. Decreto 6.703 de 18 de dezembro de 2008. PR, Casa Civil, Subchefia de Assuntos Jurídicos, Brasília, DF. 36 p.
[16] P.M. Fearnside & L. Ferrante, observação pessoal.
[17] Diário do Amazonas, 2015. Parlamentares dizem que não há impacto ambiental na BR-319. Diário do Amazonas, 29 de outubro de 2015, p. 4.
[18] Fearnside, P. M., 2018. BR-319 e a destruição da floresta amazônica. Amazônia Real, 19 de outubro de 2018.
[19] Esta série de textos é traduzida de: Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy
Leia os artigos da série:
BR-319 ameaça povos indígenas 1: – Resumo da série
BR-319 ameaça povos indígenas 2: – O pano de fundo
BR-319 ameaça povos indígenas 3: Identificação dos povos impactados
Lucas Ferrante é Doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia ( [email protected]).
Mércio Pereira Gomes é doutor em Antropologia pela University of Florida (EUA) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. É Coordenador do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e de Epistemologia (HCTE), da UFRJ. Foi-presidente da Fundação Nacional do Índio–FUNAI (2003-2007) e representante brasileiro na elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em Assembleia Geral da ONU em 2007.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
PUBLICADO EM: AMAZÔNIA REAL
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