Construímos um mapa da área afetada pela Rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) considerando quais comunidades indígenas devem ser consultadas com base em buffers de 40 e 150 km, para estabelecer a área afetada pela rodovia.

A imagem deste artigo é um registro feito à beira da rodovia BR-319, no trajeto entre Porto Velho e Humaitá, em agosto de 2019 (Foto: Michael Dantas/WWF-Brasil )

O mapa foi construído no software ArcGIS usando arquivos shapes de Terras Indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), dados do Instituto Socioambiental (ISA) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) para o áreas ocupadas por povos indígenas e suas respectivas populações.

Para a área afetada pela BR-319 dentro do limite de impacto de 150 km, identificamos 63 Terras Indígenas, das quais 54 são classificadas como “regularizadas”, o que significa que elas passaram por todas as etapas para serem consideradas Terras Indígenas totalmente legais (“em estudo”, “delimitado”, “oficialmente declarado” e “homologado”); duas das terras indígenas são “delimitados” (Terras Indígenas que tiveram seus estudos antropológicos, históricos, terrestres, cartográficos e ambientais aprovados pelo presidente da Funai e que estão aguardando análise do Ministério da Justiça para a decisão de emitir uma Portaria Declaratória de Posse Indígena Tradicional); duas são “homologadas” (assinadas conclusivamente sob um decreto do Presidente da República); quatro são “oficialmente declarados”(com demarcação de limites e descrição da área publicada no Diário Oficial) e uma está“ em estudo” (com dados antropológicos, históricos, terrestres, cartográficos e ambientais, estudos que apoiam a identificação e delimitação de uma Terra Indígena ainda não concluídos).

Também encontramos cinco comunidades indígenas “sob identificação” fora de qualquer uma das 63 Terras Indígenas, além de evidências antropológicas da existência de uma faixa ou vila indígena que é relatada como isolada do contato com outros grupos indígenas (Figura 1).

Figura coluna do Philip Fearnside

Figura 1. Terras e comunidades indígenas impactadas pela BR-319. As terras indígenas dentro do perímetro de 40 km totalizam 13, enquanto as de 150 km totalizam 63. Nenhuma foi consultada, e o plano do governo é consultar apenas cinco. Os números na figura correspondem a terras indígenas e populações descritas na Tabela 1.

Nossos resultados indicam uma população total de mais de 18.000 indígenas cujos direitos estão sendo violados dentro do limite de 150 km (Veja na Tabela 1). Dentro do limite de impacto de 40 km em ambos os lados da rodovia planejada, existem 13 Terras Indígenas regularizadas, uma área indicada no mapa da FUNAI como uma “reserva indígena” [não uma categoria oficial no Brasil] e duas das cinco comunidades indígenas mencionadas acima que estão fora das Terras Indígenas.

O governo federal brasileiro, por meio do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), responsável pela reconstrução da rodovia, afirmou que consultará apenas as comunidades em cinco das Terras Indígenas a 40 km da estrada. Isso foi defendido pela empresa terceirizada que conduz o componente indígena do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) [1, 2].

A distância de um projeto de rodovia na Amazônia ao qual o componente indígena de um EIA se aplica é especificada em 40 km pela Ordem Interministerial nº 419, de 26 de outubro de 2011 ([3]: Anexo II). De acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [4], todos os povos indígenas afetados por projetos de infraestrutura devem ser consultados, e nem a Convenção nem a legislação brasileira correspondente (nº 5051, de 19 de abril de 2004: [5]) especificam qualquer limite de distância, tal como 40 km. Se um perímetro de 150 km fosse considerado o limite do impacto, 63 Terras Indígenas e cinco comunidades indígenas fora das Terras Indígenas seriam consideradas impactadas, além de muitas comunidades tradicionais não indígenas (Figura 1). Na verdade, o impacto da rodovia afetaria os povos indígenas muito além de qualquer limite de distância que se estende lateralmente da Rodovia BR-319, porque a migração de desmatadores do “arco do desmatamento” pode continuar além do ponto final da rodovia em Manaus, afetando todos os áreas conectadas a essa cidade por estrada, incluindo o estado de Roraima, onde grandes áreas de terras indígenas seriam expostas a possíveis invasões.[6]

Por: | 01/06/2020 às 21:08

Notas

[1] MPAM (Ministério Público do Estado do Amazonas), 2019a. Ata da 12ª Reunião do Fórum Permanente de Discussão sobre o processo de reabertura da rodovia BR-319. MPAM, Manaus, Amazonas.

[2] MPAM (Ministério Público do Estado do Amazonas), 2019b. Ata da 13ª Reunião do Fórum Permanente de Discussão sobre o processo de reabertura da rodovia BR-319. MPAM, Manaus, Amazonas.

[3] MMA (Ministério do Meio Ambiente), 2011. Portaria Interministerial Nº 419, de 26 de outubro de 2011. Diário Oficial da União, 28 de outubro de 2011 (nº 208, Seção 1, p. 81).

[4] ILO (International Labour Organization), 1989. C169 – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169). ILO, Genebra, Suiça. http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/

[5] PR (Presidência da Republica),2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004. PR, Brasilia, DF.

[6] Esta série de textos é traduzida de: Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy

Leia os artigos da série:

BR-319 ameaça povos indígenas 1: – Resumo da série

BR-319 ameaça povos indígenas 2: – O pano de fundo

Lucas Ferrante  é Doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia ( [email protected]).

Mércio Pereira Gomes é doutor em Antropologia pela University of Florida (EUA) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. É Coordenador do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e de Epistemologia (HCTE), da UFRJ. Foi-presidente da Fundação Nacional do Índio–FUNAI (2003-2007) e representante brasileiro na elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em Assembleia Geral da ONU em 2007.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

PUBLICADO EM:      AMAZÔNIA REAL