A epidemia de coronavírus pode ter consequências dramáticas para os povos indígenas da Amazônia, que já começam a contar os primeiros mortos pela Covid-19. Nessa região, o sistema de saúde está à beira do colapso, e as comunidades se protegem aplicando o isolamento social. Mas ao vírus se sobrepõe o problema recorrente da invasão de terras pelos garimpeiros, grileiros e madeireiros ilegais, gerando conflitos e riscos sanitários.

Em São Gabriel da Cachoeira, a 852 km de Manaus, um carro de som passa pelas ruas anunciando em vários idiomas indígenas as recomendações para combater o coronavírus. Nesse município, considerado “o mais indígena do Brasil”, 90% dos 45 mil habitantes são indígenas, de 23 comunidades diferentes. No início do mês de maio, os primeiros casos de coronavírus começaram a ser confirmados na cidade, e os dados são assustadores.

O secretário municipal de saúde, Ângelo Quintanilha, aponta que o índice de mortalidade pela Covid-19 no município é muito alto, em torno de 10%. Um índice superior ao de Manaus, em torno de 8%.

O único hospital de São Gabriel da Cachoeira não tem leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). “A salvação de doentes graves seria pela transferência deles para Manaus, onde o sistema de saúde já entrou em colapso”, explica Juliana Radler, do Instituto Socioambiental (ISA), que não esconde a sua apreensão diante desse cenário. “Manaus não conseguirá absorver todos os casos graves do interior do estado”, avalia. Além disso, a grande distância entre o município indígena e a capital do estado representa uma outra dificuldade para os pacientes, uma vez que os únicos acessos são por via fluvial ou aérea.

No sábado (9), quase faltou oxigênio no hospital, prejudicando o tratamento dos doentes. Após uma grande mobilização, chegaram, de avião, cilindros de oxigênio. Para evitar novas contaminações, o prefeito Pascoal Gomes Alcântara decretou um rígido “lockdown” até 19 de maio. A venda de bebida alcoólica está proibida em todos os comércios da cidade.

Para tentar evitar o contágio, os povos indígenas da Amazônia têm se isolado, colocando barreiras nas entradas das aldeias. “O isolamento dessas populações já foi um instrumento de defesa dos povos indígenas em relação a epidemias no passado”, lembra Tiago Moreira, antropólogo e pesquisador do ISA. “No período colonial, por exemplo, epidemias afetaram o aldeamento e as populações fugiam para poder se proteger da contaminação”, recorda.

Subnotificação

O pesquisador do ISA mostra-se muito preocupado com a questão da subnotificação dos casos de indígenas atingidos pelo coronavírus. Segundo o Ministério da Saúde, 0,3% das internações por conta da Covid-19 são de populações indígenas. Esse número não inclui a população atendida pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). “Nos dados do estado do Amazonas, que tem uma grande população indígena, 3,5% dos casos são de população indígena”, diz Moreira. O antropólogo diz aguardar um posicionamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) diante dessa divergência de dados no mapeamento dos casos.

No início do mês de abril, um jovem Yanomami de 15 anos morreu do coronavírus. Segundo Paulo Basta, epidemiologista especializado em saúde indígena na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o caso do jovem Yanomami é representativo do que poderia acontecer com os demais povos indígenas com a Covid-19. Em primeiro lugar, houve demora no diagnóstico, que só foi confirmado três semanas depois do início dos sintomas. “Nesse período, a doença foi se agravando naturalmente”, analisa o médico. Depois, “não houve um tratamento especifico, não houve um cuidado adequado com esse paciente”. “Demoraram muito para desconfiar de que esse jovem estava adoecido pela Covid-19”, destaca o epidemiologista.

Invasores ilegais tiram proveito da pandemia

É provável que o jovem tenha sido contaminado por um dos 20 mil garimpeiros que invadiram o território Yanomami, no estado de Roraima. Os povos indígenas estão vivendo uma dupla ameaça: além da epidemia, eles têm que lidar com a invasão de garimpeiros e madeireiros ilegais, que aproveitam o contexto de crise para avançar ilegalmente nos territórios indígenas sem serem incomodados por qualquer tipo de fiscalização.

Essa situação deixa Neidinha Surui, diretora da ONG Kanindé, que luta pelos direitos dos povos indígenas, indignada. “A gente já vem fazendo as denúncias há algum tempo. O que está acontecendo no Brasil é um verdadeiro descaso com os povos indígenas”, afirma. “Esse governo está condenando os indígenas à morte, porque,  com a desculpa do coronavírus, não estão fazendo a fiscalização”, relata. “Só que a falta de fiscalização leva o coronavírus às reservas e à morte dos indígenas”, diz em tom de revolta.

No dia 18 de abril, o corpo de um indígena do povo Uru-Eu-Wau-Wau foi encontrado no estado de Rondônia,(*) com marcas de pauladas na cabeça. Há algum tempo esse jovem professor vinha sendo ameaçado de morte pelos garimpeiros. Em plena pandemia, os povos indígenas da Amazônia se sentem sozinhos e desamparados para proteger a saúde e o próprio território.

Sarah Cozzolino, correspondente no Brasil

FONTE: RFI

PUBLICADO EM:  MSN  –   RFI

(*) Nota da Ecoamazônia, o povo Uru-Eu-Wau-Wau habita áreas do Estado de Rondônia (RO), região da Serra dos Pacaás Novos, e não de Roraima (RR). O texto foi corrigido na RFI, após contato.