Especialistas alertam que proximidade entre seres humanos e animais selvagens, degradação ambiental e mudanças climáticas podem dar início a outras grandes doenças infecciosas.
Se o Brasil não reverter os danos ao meio ambiente, outras pandemias tão perigosas como a do novo coronavírus (Covid-19) poderão surgir aqui e se espalhar para o mundo. Por enquanto isso é só um indicativo dos cientistas, porém a degradação ambiental em biomas brasileiros reproduz padrões semelhantes aos que fizeram surgir a doença na China.
Até o momento não houve nenhuma pandemia originária de florestas tropicais brasileiras, porém à medida que entramos em contato com espécies silvestres, a possibilidade de zoonoses chegarem às pessoas por meio de variações de vírus antes hospedados em animais é cada vez maior.
“É possível que uma nova pandemia comece no Brasil. Não temos ideia do contingente de espécies que não conhecemos e que estão na Amazônia e quais microrganismos essas espécies carregam”, diz Nurit Bensusan, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA).
Nurit conta que esses microrganismos sempre estiveram presentes nas florestas ou em animais selvagens, os coronavírus possuem antepassados em morcegos e as cepas estão infestando o planeta.
Não é possível afirmar com certeza que isso acontecerá, mas a intervenção humana no ambiente pode abrir brechas para doenças infecciosas. “É como brincar com fogo. Você pode nunca se queimar ou pode incendiar o mundo”, diz a cientista.
Com a chegada do período de estiagem, o Brasil pode entrar numa nova temporada de queimadas, garimpo ilegal e desmatamento pior do que ocorreu em 2019 quando uma área de 9.762 km2 da Amazônia Legal foi devastada, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Na análise de Ricardo Abramovay, professor sênior do Programa de Ciência Ambiental da USP, uma série de patologias se intensificaram nos últimos 40 anos – como HIV, Ebola, Sars e Mers – como resultado do desequilíbrio ambiental.
“Essas doenças infecciosas emergentes têm por origem vírus que partem de regiões florestais das quais as sociedades humanas acabaram se aproximando”, diz.
Caixa de Pandora
Nos últimos anos o Brasil avançou em projetos agropecuários, mineração, construção de hidrelétricas, expandiu a fronteira agrícola, abriu rodovias e facilitou o acesso a regiões até antes não habitadas, atendendo condições para emergência ou reemergência de moléstias.
A malária e a febre amarela, por exemplo, reapareceram em regiões nas quais haviam sido supostamente erradicadas e estão se espalhando para áreas não afetadas anteriormente. Esse aumento pode ser atribuído à maneira pela qual foi ocupada a região da floresta amazônica e é acentuado pelas mudanças no clima.
“Uma série de doenças típicas de regiões tropicais que surgiram como epidemias no Brasil estão associadas às mudanças climáticas”, afirma Abramovay.
O Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ECCMID) apresentou um estudo em 2019 mostrando que a distribuição geográfica de enfermidades transmitidas por vetores, como chicungunha, dengue, zika e leishmaniose, está se expandindo estimulada pelo aquecimento global. A pesquisa aponta que os casos devem aumentar nos próximos anos em decorrência do clima mais quente e úmido, que favorece a reprodução de larvas dos mosquitos e possibilita a adaptação dos vetores a outras regiões.
Isso deve piorar, pois mesmo que todos os países cumpram com o Acordo do Clima de Paris, a temperatura do planeta pode aumentar até 3,2 graus Celsius. O cólera depois de décadas reapareceu favorecido pelo aquecimento das águas. O vibrião chegou ao Brasil trazido em navios com água de lastro e o esgoto favoreceu a propagação da doença.
Novo habitat
Cientistas alertam que à medida que populações avançam sobre as florestas, aumenta o risco de microrganismos migrarem para o cotidiano humano. Essa redistribuição de vetores para novos locais de propagação pode abrir caminho para que as enfermidades ganhem novas faces.
“O Ebola era um vírus que surgia nas aldeias e matava localmente. Nesta última epidemia de Ebola as pessoas não estavam mais concentradas em aldeias, a doença foi para a periferia do grande centro numa condição sanitária péssima e se espalhou dentro da cidade grande e foi muito mais difícil de conter”, diz Flávia Trench, médica infectologista e docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Trench explica que as condições de permanência e circulação dos patógenos estão fortemente associadas com a forma de organização dos centros urbanos, com o modo de vida das pessoas, com a crescente densidade populacional e a mobilidade extrema, que criam condições propícias para a proliferação dos vetores.
“Se a sociedade continuar mantendo os mesmos comportamentos que temos hoje, existe a possibilidade de aumento do potencial pandêmico de vírus respiratórios”, prevê a infectologista.
Perda da biodiversidade
A devastação das florestas já causou a extinção de inúmeras espécies e consequentemente um desequilíbrio ecológico. Na análise do presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, Carlos Bocuhy, a floresta amazônica é um grande centro de biodiversidade, tem importância na transposição hídrica continental e equilíbrio climático.
“A floresta é fundamental para a regulação climática e manutenção de carbono, nesse sentido a Amazônia tem uma função social e ecológica planetária”.
O alerta que o especialista faz é que se as queimadas e incêndios continuarem, o sistema amazônico pode atingir um ponto de inflexão, ou seja, chegar a um limite irreversível em que ela não pode mais se recuperar.
Destruir a natureza empurra insetos e pragas para perto de populações humanas e alteraram os padrões de transmissão de doenças infecciosas. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nos municípios da Amazônia mostrou que o aumento de casos de malária e de leishmaniose está relacionado com o número de hectares desmatados. Os vetores dessas doenças dependem de ambientes mais iluminados e à medida que vamos abrindo mais áreas teremos cada vez mais casos.
Outros biomas brasileiros, como Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica seguem o mesmo caminho de devastação.
Uma perspectiva sombria
Neste início de milênio, o principal receio dos estudiosos é que a humanidade seja vítima de uma pandemia que combine alta capacidade de contaminação com enorme poder para matar um grande número de infectados.
Isso porque muitas doenças ressurgiram no mundo com novas identidades e com novos padrões de comportamento. Exemplo disso é o vírus influenza A, da gripe H1N1, que tem uma grande capacidade de recombinação genética.
O Brasil é referência em produção de proteína animal e tem uma vigilância sanitária considerada eficiente a ponto de conter novas zoonoses. O problema, na avaliação de Ricardo Abramovay, pode estar no uso excessivo de antibióticos em criações de animais e peixes em cativeiro.
“Cerca de 70% dos antibióticos da indústria farmacêutica são oferecidos para animais. Os dejetos desses animais vão para o ambiente e consequentemente nós acabamos ingerindo. Esse é um dos fatores que produzem resistência de bactérias a antibióticos”.
A consequência dessa seleção e mutação de patógenos é que em uma epidemia de natureza não viral, o combate de bactérias por meio desta conquista científica pode ser reduzido.
por Robson Rodrigues – Envolverde
PUBLICADO EM: JORNAL DA CIÊNCIA
Deixe um comentário