“Quando os casos de covid-19 começaram a surgir nas aldeias, foi desesperador, pois o pessoal do distrito não sabia o que fazer”, desabafa um representante da Associação das Mulheres Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (Amimsa).

Vinte e sete casos foram registrados na região que tem 185 aldeias de 21 etnias. Na fotografia, os moradores da Aldeia Boará de Cima, do povo Kokama, fazem o combate ao vírus (Foto: Aldeia Boará)

Manaus (AM) – “Quando os casos de covid-19 começaram a surgir nas aldeias, foi desesperador, pois o pessoal do distrito não sabia o que fazer”, desabafa um representante da Associação das Mulheres Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (Amimsa). Temendo por represálias, a fonte da Amazônia Real afirma que o Plano de Contingência Nacional elaborado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não leva em conta as especificidades de cada povo, localidade ou realidade cultural. “As comunidades estão se virando como podem e as equipes de área estão à mercê da própria sorte.”

Em 1º de maio, quando o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), do Ministério da Saúde, que atende a 14 municípios do Médio Solimões e Afluentes registrou dois casos de coronavírus entre seus povos, a Amimsa publicou uma “Carta de Pedido de Socorro dos Indígenas da Terra Indígena Barreira da Missão”, em que já denunciava a falta de assistência, equipamentos de proteção para os enfermeiros e agentes de saúde, testes para o novo coronavírus e de medicamentos. “Os serviços da atenção básica se encontram em situações precárias mesmo muito antes dessa pandemia, e que a falta de estratégias de fato e de um plano de contingenciamento real põe em riscos as vidas dos povos indígenas dessa região”, alerta o documento.

Um vídeo que circula nas redes sociais mostra o pedido de socorro urgente de três indígenas. “Falta material, falta luva, estamos com uma situação caótica na comunidade da Barreira”, diz Jari Cardoso do Vale, que se identifica como cacique da Barreira da Missão do Meio. “A situação é muito alarmante. Estamos com algumas situações acontecendo na comunidade, com alguns profissionais infectados. Nos preocupamos com a nossa população e com a nossa comunidade, crianças e famílias”, diz o cacique, que pede apoio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Missão Evangélica Caiuá.

Outro cacique que fala no vídeo se identifica como Gideone Ribeiro dos Santos, da Aldeia Betel, do povo Kambeba. “Venho denunciar, juntamente com a minha comunidade, uma situação muito triste da nossa população, do nosso povo indígena. Não somente pela Betel, mas sim pelas quatro barreiras, onde as equipes do polo-base fazem seu atendimento. Venho nesse exato momento, dizer, para todos que estão ouvindo, temos hoje pela Sesai, estamos preparados sim, mas falta muitos insumos de materiais para ser usado”, diz ele.

Pandemia avança em Tefé

1º Mutirão de Defesa de Direitos, aldeia Porto Praia de Baixo, em Tefé (Foto: Esther Gillinghan/Cimi/2018)

A Sesai registra 27 casos confirmados de Covid-19 e uma morte entre indígenas atendidos pelo Dsei Médio Rio Solimões e Afluentes, conforme o boletim epidemiológico publicado nesta quarta-feira (20). Em todo o Brasil, são 526  casos e 27 óbitos. No entanto esses números são subestimados, pois a secretaria só monitora os indígenas que vivem em aldeias dentro dos territórios.

O Dsei Médio Rio Solimões e Afluentes está sediado no município de Tefé, distante a 522 quilômetros de Manaus. A cidade é a única do Amazonas que tem Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) preparadas para o combate a pandemia do coronavírus. O distrito atende 20.357 pessoas que vivem em 185 aldeias, de 21 etnias, localizadas nos municípios de Maraã, Tefé, Uarini, Japurá, Juruá, Jutaí, Eirunepé, Envira, Carauari, Itamarati, Ipixuna, Alvarães, Fonte Boa e Coari. As etnias são: Apurinã, Arara, Baniwa, Baré, Deni, Kaixana, Kambeba, Kanamari, Katawixi, Katukina, Kocama, Kulina, Maku, Mayoruna, Miranha, Mura, Sateré-Mawé, Tariano, Tikuna, Tukano e Yauanawá.

Em resposta à Amazônia Real, a Sesai informou que desde 4 de maio fez “três envios de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), insumos para higienização e testes rápidos” para todos os Dseis.

Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para 433.363 pessoas. Para o Dsei Médio Rio Solimões e Afluentes, segundo a Sesai, foram enviados, em abril, 6.800 máscaras cirúrgicas, 1.100 máscaras N95, 7.400 luvas, 320 aventais, 500 toucas,144 frascos de álcool em gel 70% de 500 ml e 280 testes rápidos. Um terceiro envio está a caminho.

Mas a Amimsa contesta essa informação oficial.  “Ao contrário do que a gestão do Dsei vem publicando nas redes sociais e afirmando em planos de contingência que não condiz com a realidade local, pois além da falta de EPIs os pólos-bases sofrem com a falta de medicamentos para qualquer outra situação”, completa o texto da carta enviada às autoridades.

O que diz o MPF?

guardiões da floresta

 

Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas encaminhou um ofício à Sesai, em Brasília, requerendo informações sobre a criação de um hospital de campanha em Manaus para atendimento a indígenas. A medida havia sido anunciada pelo Ministério da Saúde em abril. A Sesai tem 72 horas para responder ao MPF.

De acordo com o órgão, lideranças do povo Kambeba relataram que indígenas não aldeados com suspeita ou confirmação de Covid-19 enfrentam dificuldades para conseguir atendimento, tanto pelo sistema de saúde dos municípios como pelos distritos sanitários indígenas.

O documento do MPF foi encaminhado aos municípios de Tabatinga, Benjamin Constant, Amaturá, Atalaia do Norte, Santo Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Jutaí e Tonantins, bem como para os Dseis Alto Solimões, Médio Solimões e Afluentes e Vale do Javari, além das coordenações da Fundação Nacional do Índio (Funai) com abrangência nas respectivas áreas.

Nesta quarta-feira (20), a Funai divulgou que distribuiu 65.727 mil cestas de alimentos para famílias indígenas em todo o território nacional. “Este balanço parcial inclui os itens adquiridos com recursos próprios, doações e os provenientes de ações judiciais. A Funai conta com mais de R$ 20 milhões para ações de proteção aos povos indígenas no contexto da epidemia da Covid-19”.

Barreiras nas comunidades 

da Aldeia Boará de Cima, do povo Kokama.

Combate a pandemia na Aldeia Boará de Cima, do povo Kokama (Foto divulgação).

“Os indígenas são considerados os guardiões do pulmão da Amazônia. Se deixarem o povo morrer, quem vai guardar os animais, os lagos, os igarapés, as fontes, as madeiras? Está difícil para nós, mas estamos resolvendo. Estamos como dizem por aí em quarentena, para a gente se cuidar”, disse à Amazônia Real o tuxaua Jó dos Anjos Samias, da Aldeia Boará de Cima, do povo Kokama.

Ele é um dos líderes da região que assinaram comunicado público divulgado no dia 5 de maio com os também tuxauas Francisco dos Santos Ferreira, da aldeia Boará do Meio, também do povo Kokama; e Maria Vanuza Candido de Barros, da aldeia Boarazinho, dos Kambeba. A mensagem foi dirigida aos moradores das aldeias, comunidades ribeirinhas do entorno e para os moradores do centro urbano de Tefé.

“Aqui, só lembram da gente para votar. Quando a gente vai buscar saúde da cidade dizem para a gente ‘vocês têm distrito’, mas eu, como sou um pouco mais entendido das leis digo assim ‘olha, por um acaso eu não sou munícipe daqui? Por que estão me tirando de banda? Só olham para mim em época de eleição? A situação é essa”, conta Jó dos Anjos. “Não temos apoio, nossos agentes de saúde indígena são voluntários. Em outras aldeias tem agentes pagos, mas aqui não.”

Para prevenir a chegada da Covid-19, os Kokama colocaram placas na entrada da comunidade e montaram barreiras nas proximidades para dificultar o acesso. Todos os indígenas que tiveram de sair da aldeia e levam mais de dois dias fora precisam explicar às lideranças o motivo da demora. “Quando eu volto da cidade, eu mesmo dou o exemplo e já levo meu sabão e lavo as mãos por uns 10 minutos. Assim o povo vai ver que cuidamos de todo mundo”, acrescenta Jó Samias.

As doações de cestas básicas

Mulheres de Tefé, no interior do Amazonas, se uniram em ações solidárias para ajudar indígenas do Médio Solimões. As iniciativas lideradas pela Amimsa e pelas professoras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) arrecadam doações para compra de cestas básicas e materiais para fabricação de EPIs. A professora de Filosofia Feminista na UEA Rita Machado organizou duas turmas para um curso on-line sobre pensadoras feministas. Conseguiu arrecadar 15 mil reais e uma terceira turma está sendo formada. “Resolvemos doar cestas básicas para as etnias com maior número de mulheres e crianças, que são as pessoas mais vulneráveis no atual contexto da pandemia”, explica a pesquisadora.

Rita desenvolve projetos e pesquisas com mulheres da Floresta Nacional de Tefé (Flona Tefé). Um deles resultou na iniciativa “Feiras e Agroecologias”, que leva mulheres indígenas da Flona Tefé à sede do município para vender produtos cultivados na unidade de conservação. “É uma rede de saberes, mas também uma rede feminista local. É um grupo autônomo, que já consegue trabalhar sozinho, e que vai decidir sobre a divisão e aplicação do dinheiro”, explica a professora.

A iniciativa é da academia de mulheres em rede de todas as regiões do país e do mundo e de instituições como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e UEA. “Tivemos mais de 800 inscrições, de pessoas de todo o mundo. Não esperava tamanha adesão. Fiquei bastante surpresa”, comemora Rita Machado.

Por: | 21/05/2020 às 01:38  

PUBLICADO EM:   AMAZÔNIA REAL