Foram identificadas 92 publicações que retratam iniciativas e projetos envolvendo diversas terras indígenas, etnias e instituições. Os diversos relatos de pesquisa evidenciam que as ações agroecológicas desenvolvidas buscam uma revalorização da cultura, das tradições e da identidade social, em geral de forma articulada com inovações técnicas que, partindo dos valores e interesses das próprias comunidades, fomentam a constituição de sistemas agroecológicos eficientes e adaptados, o manejo florestal sustentável e a formação de sistemas agroflorestais, com a prioridade para métodos participativos e dialógicos visando o empoderamento das comunidades, a reflexão sobre as relações de gênero, o aprimoramento dos hábitos alimentares e da gestão ambiental e, entre outros aspectos, a reorientação das atividades de ensino e de extensão.
Este trabalho foi estruturado a partir de uma classificação em sete temas: práticas agrícolas; agrobiodiversidade; sistemas agroflorestais; manejo florestal e extrativismo; organização social e políticas públicas; educação em Agroecologia em terras indígenas e extensão rural agroecológica e gestão ambiental. Foi observado que as práticas agrícolas desenvolvidas pelos indígenas são consideradas não apenas como técnicas de manejo, mas como parte de um modo de vida, de suas tradições, espiritualidade e religiosidade. Os métodos e técnicas utilizados pelos diversas etnias demonstram a relação de respeito com a natureza e evidenciam a importância do conhecimento indígena para a construção da Agroecologia . Tanto é que a agroecologia vai beber da fonte do conhecimento destas comunidades, e tenta agregar outros saberes a estes conhecimentos.
Um estudo do Território indígena Yryapu, etnia Mbyá, no município de Palmares (RS), relata as interações características dos indígenas com o meio ambiente. As práticas agrícolas se caracterizam pela diversidade de cultivares: mandioca, feijão, milho, melancia, entre outros. Nota-se que apenas o milho guarai (avaxi) é uma cultivar tradicional dos Guarani, que possui importância religiosa e social para a comunidade. O plantio é realizado em áreas próximas às moradias, durante o mês de setembro, antes do plantio do milho convencional (juruá). Além das atividades de cultivo, os indígenas atuam na coleta de espécies da mata, para artesanato, para o tratamento de doenças e para a construção de moradias.
A diversidade e o uso de plantas pela comunidade Kaingang foram avaliadas quanto a caracterização ecológica, identificação taxonômica e interpretações sobre a importância dessas plantas no dia a dia da comunidade da Terra Indígena da Guarita, no Rio Grande do Sul. Foram identificadas 78 espécies de plantas categorizadas em cinco diferentes modalidades: medicinal, alimentar, artesanato, ritualístico e outras. A continuidade do uso de plantas pela comunidade é muito importante para a preservação da cultura Kaingang, que repassa o conhecimento para as novas gerações sob processos ritualísticos. Mas na ocasião do estudo, a comunidade não vinha conseguindo manter suas tradições alimentares como decorrência da situação de pobreza e de risco social em que se encontravam.
A preservação das matas tem sido apontada como imprescindível para as tradições culturais, sociais e religiosas dos indígenas. Para os povos Ticuna e Cocama, localizados no município de Benjamin Constant (AM), o uso dos recursos naturais relaciona-se com a religiosidade – e a preservação da mata permite a formação do composto orgânico ngauraou ‘paú’, resultado da maceração de folhas e galhos secos, utilizado nos roçados para aumentar a produtividade do solo. Em outro trabalho com os Ticuna e Cocama, foram levantadas informações sobre o sistema de plantio margeado por mata virgem ou capoeira, com objetivo de proteger as plantas do excesso de chuvas e ventos, o que também contribui para a regeneração das áreas derrubadas para os plantios. O pousio possui o tempo médio de quatro anos, havendo a possibilidade de realizar o plantio de frutíferas perenes para constituir novos sítios.
As técnicas de baixo impacto evidenciam como os indígenas consideram o solo fundamental para a produção de alimentos. Também foi analisada a relação de respeito à terra entre os Tapirapé da aldeia Tapi´itãwa, localizada na Terra Indígena Urubu Branco, no município de Confresa (MT). A escolha da área para o plantio é responsabilidade dos mais velhos, tendo em vista os conhecimentos adquiridos ao longo da vida. A prática do pousio é aqui também utilizado para o restabelecimento da vegetação – e o formato das roças tem suas peculiaridades, podendo ser retangular ou circular, para que as plantas fiquem de pé ao redor da roça, ou seja, atuando como uma barreira de ventos, do ataque de pragas e da radiação solar. O plantio é feito em consorcio, pois acreditam que a coexistência das plantas gera um efeito benéfico. Nas áreas próximas às moradias (quintais), é encontrada uma diversidade de plantas que permite caracterizar estas áreas como sistemas agroflorestais.
A influência da cultura dos não índios com a invasão de terras indígenas, o desmatamento, o monocultivo e uso de agrotóxicos tem influenciado negativamente a manutenção dos cultivos e modo de vida das comunidades, que em alguns casos tentam se adaptar as transformações do ambiente. Um exemplo é o da maior aldeia dos índios Bororo, nos municípios de General Carneiro e Barra do Garças (MS), as atividades realizadas pelos indígenas compreendiam coleta, caça, pesca e agricultura e vêm se adaptando às transformações ambientais do Cerrado. No passado, as atividades agrícolas desenvolvidas pelos Bororo possuíam ligação com os rituais religiosos, principalmente relacionados ao cultivo do milho. Um dos rituais era o Kuiadá Páru, festa do milho, celebrado na colheita. A modernização das atividades agrícolas resultou na dependência de recursos externos e em uma redução na produção de alimentos tradicionalmente consumidos.
Os Sistemas Agroflorestais (SAFs), entendidos como um consórcio de espécies arbóreas com culturas agrícolas, com a finalidade de recuperação ou de produção, incluem métodos e técnicas aplicados tradicionalmente na cultura indígena brasileira, e representam atualmente uma alternativa econômica e sustentável à agricultura convencional. Estudos realizadas em todo o território nacional evidenciam que muitas das comunidades Indígenas passaram por uma desestruturação de seu sistema de cultivo tradicional em meio à expansão da agricultura convencional e da pecuária extensiva; por outro lado, há o registro de que, em diversas regiões do país, houve a aplicação de conceitos agroflorestais em novas bases, seja para o fortalecimento da autonomia alimentar, para a revalorização da cultura tradicional ou para a conservação da biodiversidade. As comunidades indígenas, já conhecidas pelas práticas de conservação da biodiversidade, demonstram uma notável capacidade de restauração de ambientes florestais submetidos historicamente aos processos de devastação.
As publicações aqui analisadas apontam para a forte associação entre a perda da biodiversidade e o abandono das tradições culturais, uma vez que estas tecnologias e técnicas haviam sido adaptadas às mais diversas condições de solo, clima, disponibilidade de espécies vegetais e animais e às condições fisionômicas dos territórios. Além disso, houve uma substancial redução na disponibilidade de recursos naturais que vinham sendo utilizadas nas mais diversas atividades dos indígenas. A limitação ou a ausência de políticas públicas adequadas dificulta a reafirmação e revalorização do conhecimento e da sabedoria dos povos indígenas. Apesar de todos esses desafios, os povos indígenas continuam mantendo a notável capacidade para a elaboração de estratégias e práticas a fim de restabelecer e fortalecer o uso das técnicas de manejo, do extrativismo sustentável e do processamento de produtos oriundos das florestas nativas, sejam elas primárias ou restauradas.
Vela o trabalho completo: aqui NuPER (nuperufscar.com.br)
Cristina Tordin (MTB 28499)
Embrapa Meio Ambiente
Deixe um comentário