Entre 1935 e 1937, o zoólogo Otto Schulz-Kampfhenkel percorreu o vale do Jari com fundos do regime nazista. A viagem virou filme e livro e deixou de herança enorme cruz com suástica na floresta.
“O senhor Schulz-Kampfhenkel é uma expressão brilhante da moderna geração. Tem vinte e poucos anos, mas fala várias línguas, possui uma biografia cheia de triunfos e já é um nome conhecido e acatado nos meios científicos europeus”, descrevia o jornal Gazeta de Notícias, em 9 de agosto de 1935, o jovem zoólogo e geógrafo alemão, que fora entrevistado pouco antes do início de sua expedição à Amazônia.
A viagem foi financiada, entre outros, pelo governo alemão e por jornais teuto-brasileiros que publicaram com exclusividade os relatos do zoólogo. Ele fazia parte da força paramilitar nazista Schutzstaffel (SS).
Na matéria intitulada Nas vésperas da sensacional expedição ao Jari, Otto Schulz-Kampfhenkel destacava seus supostos feitos científicos e a utilização de um avião para estudar a região, naquela que seria, segundo ele, a primeira viagem de pesquisa deste tipo no mundo. Com o mesmo furor, a expedição pelo vale do rio Jari, que corre pelos atuais estados do Amapá e do Pará, também foi celebrada na imprensa alemã.
Entre setembro de 1935 e meados de março de 1937, o zoólogo acompanhado do aviador Gerd Kahle, do engenheiro Gerhard Krause, do teuto-brasileiro Joseph Greiner e de 21 ajudantes locais, que além de orientarem os estrangeiros no percurso foram fundamentais para o contato com os indígenas, reuniram informações e amostras sobre a fauna, a geografia e a etnografia da região.
Segundo o historiador André Felipe Cândido da Silva, da Fundação Oswaldo Cruz, a expedição tinha ainda um caráter de propaganda cultural num momento de disputa entre alemães, americanos e franceses por influência junto ao governo e intelectuais brasileiros.
“A viagem contribuiu para manter a aproximação já em curso entre Brasil e Alemanha no terreno diplomático, comercial e militar, como também científico, mas não impediu que em 1938 conflitos provocassem a ruptura diplomática e tensões, decorrentes, entre outras coisas, da política de nacionalização do governo Vargas, que vetou o ensino do alemão nas escolas, e da proibição do Partido Nazista no país”, acrescenta.
Ao percorrer o rio Jari até a fronteira com a Guiana Francesa, Schulz-Kampfhenkel coletou cerca de 1.500 amostras de animais, entre elas 500 somente de mamíferos, 1.200 objetos etnográficos dos povos indígenas aparai, wayana e wajãpi, além de produzir mais de 2.500 fotografias e 2.700 metros de filme 16 mm. Grande parte desse material foi destinado ao Museu Etnográfico de Berlim e ao Museu de História Natural de Berlim.
Na Amazônia, a expedição deixou de herança uma enorme cruz de madeira com uma suástica, colocada no local onde foi enterrado Joseph Greiner na beira do Jari. O teuto-brasileiro faleceu de malária relativamente no início da jornada, em 2 de janeiro de 1936.
Apesar de difundida a ideia de que a expedição teve o objetivo secreto de servir de base para um plano de invasão e ocupação das Guianas e do Suriname através do Amapá, historiadores descartam essa teoria. A expedição trouxe também fama a Schulz-Kampfhenkel, que lançou o filme Rätsel der Urwaldhölle (Mistérios da Floresta Infernal), em 1938, organizou uma exposição e publicou um livro bastante popular com o mesmo nome de seu longa.
De acordo com Holger Stoecker, da Universidade Humboldt de Berlim, depois da viagem à Amazônia, Schulz-Kampfhenkel se tornou uma espécie de especialista do regime nazista para o Brasil. Por isso, em 1940, o líder da SS, Heinrich Himmler, solicitou que ele fizesse um parecer sobre um plano de anexação das Guianas apresentado pelo autor e aventureiro austríaco Heinrich Peskoller.
Aparentemente pego de surpresa, em sua avaliação, Schulz-Kampfhenkel aproveitou para se apropriar da ideia de Peskoller e afirmou ter formulado, durante a sua viagem, ideia semelhante à do austríaco, a qual apresentaria ao seu superior “em breve”.
“Apropriar-se de ideias alheias para sua autopromoção era algo típico de Schulz-Kampfhenkel”, comenta Stoecker, destacando que o tal plano surgiu muito depois da viagem pela Amazônia. O historiador ressalta que não há base empírica que sustente a hipótese de que a expedição teria como objetivo a formulação de um plano de invasão.
A expedição ao Jari não foi a única realizada por alemães ao Brasil durante o período do Terceiro Reich. Pesquisadores de diversas áreas passaram por várias regiões do país, como São Paulo, Amazônia, Mato Grosso, Paraná e Espírito Santo. Entre eles estão o então diretor do Museu de Zoologia de Munique Hans Krieg, os pesquisadores do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo Gustav Giemsa e Ernst Nauck e os ornitólogos Adolf Schneider e Helmut Sick.
Muito marketing, pouca ciência
“Entre as expedições inspecionadas pelo Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, órgão criado pelo governo Vargas em 1933, as alemãs foram, depois das americanas, as mais numerosas”, diz Silva. A expedição de Schulz-Kampfhenkel, no entanto, foi a que ganhou mais destaque e popularidade.
E, isso se deve ao trabalho de divulgação feito durante a viagem, por meio de relatos publicados na imprensa, e posteriormente com o filme e a publicação do livro.
“Estas obras enfatizaram o componente exótico, de aventura, pioneirismo e conquista da ‘última mancha branca da Terra’, como ele sublinhou em diversas narrativas sobre a viagem no esforço de retratar a região percorrida como completamente inexplorada e isolada do contato com a civilização ocidental”, afirma Silva.
“Schulz-Kampfhenkel era um marqueteiro ativo de suas expedições. Ele sempre valorizou muito a utilização e comercialização midiática destas viagens”, acrescenta Stoecker. Com relação aos resultados científicos, a expedição contribui para a coleta de um grande material, porém, não gerou diretamente novas descobertas.
O próprio Schulz-Kampfhenkel não chegou sequer a analisar as amostras que levou para a Alemanha ou escreveu artigos científicos sobre a viagem. “Schulz-Kampfhenkel não tinha um interesse cientifico real, sua motivação não era tão voltada à descoberta, mas aparentemente essas expedições eram passos para promover sua carreira e fazer contatos na política, em instituições científicas, em museus”, conta Stoecker.
FONTE: DefesaNet
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