Estudo do componente indígena no projeto básico não foi traduzido por completo pelo governo, o que inviabiliza o conhecimento pelos indígenas; órgão recomendou a não emissão de licença de instalação antes do início do procedimento de consulta prévia e pediu esclarecimentos técnicos

Arte sobre foto de uma mão segurando uma caneta sobre uma folha branca. Ao centro, está escrito na cor preta Recomendação MPF

Arte: Secom/PGR

 

Todos os documentos e as observações vinculados ao Projeto Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI) da linha de transmissão de energia Manaus (AM)-Boa Vista (RR) deverão ser traduzidos integralmente para a língua dos kinja, como se autodenominam os Waimiri Atroari, e apresentados em versão consolidada aos indígenas em reunião. É o que recomenda o Ministério Público Federal (MPF) à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para garantir que o processo de consulta ao povo indígena atenda aos procedimentos previstos na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A recomendação traz um histórico das diversas tratativas mediadas pelo MPF entre os indígenas Kinja, o consórcio responsável pela obra e o governo brasileiro, e detalha registro da reunião mais recente, ocorrida entre 12 e 15 de novembro deste ano, durante a qual foram apresentados aportes e considerações pela Funai e pela consultoria ambiental que não faziam parte do projeto principal. O estudo do componente indígena do projeto básico ambiental é documento importante para o aprofundamento do processo de consulta prévia, livre e informada, uma vez que é a primeira vez que os indígenas poderão conhecer e analisar estudos concretos sobre os impactos da linha de transmissão em relação ao grupo indígena e medidas de mitigação e proteção.

Conforme registra o MPF, já nessa reunião, que seria a primeira de apresentação do projeto, a presidência da Funai indicou que o encontro serviria não só para apresentar, mas também validar o projeto, o que foi contestado pelo representante do Ministério Público e pelos indígenas. Diferentemente do projeto básico em si, esses documentos não foram traduzidos para a língua kinjara, o que, segundo o órgão, impede que os indígenas tomem conhecimento da versão atualizada do PBA-CI e possam dar início aos processos de discussão nas aldeias previstos no protocolo de consulta do grupo de maneira informada.

Os representantes do governo federal defenderam a não tradução por se tratarem de supostas questões pontuais, bem como com o objetivo de obter maior praticidade nos encaminhamentos, tendo proposto o registro das dúvidas em ata de reunião e a tradução desta ata. O MPF sustenta que essa sugestão, além de violar o procedimento de consulta estipulado no protocolo dos Waimiri Atroari, pressupõe que os indígenas devem absorver o conteúdo apresentado em português e imediatamente poderem formular questionamentos sobre as questões técnicas abordadas, desconsiderando suas formas de organização e modos de compreensão e deliberação.

Além da tradução integral e apresentação desses novos aportes do projeto aos indígenas, a recomendação expedida pelo MPF no último dia 14 de novembro requer ainda que a Funai e o Ibama elaborem, no prazo de 45 dias, esclarecimentos técnicos sobre os impactos da ausência dos estudos de topografia no empreendimento, já que o projeto básico não indica a localização exata das 250 torres de transmissão previstas pelo empreendimento. Nesse sentido, o órgão pede que sejam apontadas as razões para a ausência do local exato das torres de transmissão.

Conforme recomenda ainda o MPF, Funai e Ibama devem se abster de emitir qualquer aval, autorização ou ato administrativo de caráter concessivo, referente à continuidade do licenciamento ambiental do projeto da Linha de Transmissão Manaus-Boa Vista, especialmente para fins de concessão de licença ambiental de instalação do empreendimento, sem que se obtenha o consentimento do povo Waimiri Atroari, de forma livre, prévia, informada e segundo as diretrizes de seu protocolo de consulta.

A relação de participantes nas próximas reuniões sobre o projeto também deve ser apresentada previamente à Associação da Comunidade Waimiri Atroari para apreciação e aprovação, sejam representantes do governo, do empreendedor ou convidados. Para o MPF, situações como a ocorrida na última reunião, da qual participaram quase 30 não indígenas – inclusive representante de empresa não relacionada ao processo – sem qualquer apresentação prévia, cria um espaço de pressão aos indígenas e prejudica a construção do ambiente de boa-fé da consulta, recomendado pela OIT.

Histórico de tratativas – Em reunião realizada em maio deste ano, entre o então presidente da Funai e representantes dos Waimiri Atroari, foi esclarecido que o atraso na realização dos estudos foi motivado exclusivamente por equívoco do consórcio empreendedor Transnorte Energia (TNE) na consolidação da proposta de compensação de impactos apresentada aos Kinja. Em continuidade a esse diálogo, os Estudos do Componente Indígena foram concluídos, e seu respectivo Projeto Básico Ambiental (PBA-CI) foi entregue ao Ibama em junho último, sendo encaminhado à Funai no dia 21 daquele mês.

Após a tradução do documento principal do projeto para a língua kinjara, em reunião realizada em setembro deste ano na sede do Núcleo de Apoio Waimiri Atroari (Nawa), foi definido o agendamento de apresentação do PBA-CI com a participação de lideranças kinja, conforme determina o Protocolo de Consulta Waimiri Atroari. Naquela ocasião, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, firmou expressamente o compromisso de cumprir o protocolo de consulta Waimiri Atroari, posicionamento defendido também por representantes do Ministério da Justiça, do Ministério das Minas e Energia e da Casa Civil da Presidência da República.

Ações na Justiça – A necessidade de consulta prévia, livre e informada ao povo Waimiri Atroari motivou o MPF a ajuizar duas ações para impedir o prosseguimento das medidas para implementação do trecho do Linhão de Tucuruí sem a manifestação dos indígenas. Nos dois processos, a Justiça Federal em Manaus deu razão ao MPF, ordenando a anulação do leilão que teve como vencedora a concessionária Transnorte Energia, para a execução da obra. Também foi anulada a licença prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama).

Em junho deste ano, os processos chegaram à segunda instância e as ações foram julgadas em conjunto pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília. Apesar de o julgamento ainda não ter sido concluído por ausência de resultado unânime, todos os desembargadores reconheceram, em seus votos, que os indígenas deverão ser consultados antes da próxima etapa do licenciamento ambiental. O julgamento deverá ser retomado, dessa vez com cinco desembargadores, para que o Tribunal aponte uma conclusão sobre os casos e apresente decisão sobre o pedido da nulidade do leilão, e sobre o momento de realização da consulta. Ainda não há previsão de data para a retomada da apreciação dos processos.

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