Papa apoia mobilização internacional de países e entidades, entre elas ONGs, um dos alvos mais frequentes de ataques do presidente.

O rangido dos motores de duas balsas cargueiras ecoava num início de noite sem chuvas na orla de Icoaraci, um distrito bucólico de Belém do Pará, onde as ruas ostentam o nome de travessas. Lado a lado, as embarcações cortavam as águas barrentas e turvas da Baía do Guajará carregadas com centenas de toras de madeira empilhadas. Bem em frente, estavam reunidos 56 bispos católicos que pretendem denunciar, no Vaticano, os efeitos negativos do extrativismo. Mas o que consideram um problema passa sem ser notado. São 18h30. Com a inseparável cruz peitoral, eles celebravam a missa da última reunião no País antes do Sínodo da Amazônia, um encontro mundial de bispos convocado pelo papa Francisco.

Sob desconfiança e monitorada pelo serviço de inteligência da Presidência, a cúpula da Igreja na Amazônia brasileira decidiu se fechar nos preparativos para o sínodo, que começou neste domingo, 6, em Roma.

No último encontro no Brasil, as atividades ocorreram em uma casa de retiros na periferia da capital paraense, onde os bispos rezavam, estudavam e debatiam das primeiras horas da manhã ao início da noite.

Até mesmo uma procissão que mimetizou o Círio de Nazaré, a mais importante manifestação católica de massas da Amazônia, ocorreu intramuros na propriedade. O fato causou estranheza em três guardas municipais, escalados, com armamento antidistúrbio, para dar segurança ao encontro.

Eram sinais de que a Igreja anda incomodada com as críticas de segmentos ultraconservadores do clero e da cúpula do governo de Jair Bolsonaro (PSL), principalmente na ala militar. No caso dos religiosos, o grupo vê no sínodo uma mudança nos dogmas históricos do clero pela sugestão de ordenar padres casados.

Já para integrantes do Executivo, o evento defende uma brecha para o papa interferir na soberania brasileira sobre a floresta, ao denunciar ausência de políticas públicas e se opor aos planos de exploração econômica, anunciados por Bolsonaro. O papa apoia uma mobilização internacional de países e entidades, entre elas organizações não governamentais (ONGs), um dos alvos mais frequentes de ataques do presidente.

O governo e os conservadores consideram que o texto-base preparado para discussão em Roma tem viés de esquerda. Chamado de Instrumentum Laboris, o documento de trabalho sintetiza um processo de escuta feito em nove países pelos quais a floresta tropical se espraia, com mais de 265 atividades e 87 mil pessoas envolvidas, a maior parte no Brasil.

A Igreja enfoca a degradação ambiental provocada pelas “grandes companhias”, a “corrupção” e a “violência”, o descaso com os índios, quilombolas e ribeirinhos, da atenção à saúde desses povos à garantia da integridade de suas terras. Condena o avanço da pecuária, do desmatamento e da mineração na floresta. Também trata de questões religiosas ligadas à liturgia e à evangelização, como a incorporação de rituais e línguas indígenas às cerimônias, o ordenamento de padres casados, a valorização das mulheres na hierarquia católica e a presença expansiva de igrejas neopentecostais.

Uma parte dessas sugestões é considerada uma ruptura no catolicismo. Por causa das críticas, o documento passou a ser chamado pelos bispos de “texto mártir”, confidenciou o arcebispo de Belém, Dom Alberto Taveira Corrêa. “Ele apanha de todo lado.”

A expectativa dos bispos é de mais ruídos, apesar de tentativas para minimizá-los. Nos pronunciamentos, por exemplo, Bolsonaro quase nunca é nominado. Os clérigos preferem se referir a ele de forma mais genérica, substituindo o nome do presidente por “governo”, “País”, “Estado”, “autoridades”… Os religiosos evitaram entrar no embate direto e pessoal com o chefe do Executivo.

Há entre os organizadores do sínodo quem enxergue na campanha difamatória uma articulação internacional contra o papa incentivada por Steve Bannon, que foi estrategista da campanha do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Eles, no entanto, não têm evidências de que Bannon esteja por trás das críticas de cardeais conservadores, como o americano Raymond Burke e o alemão Walter Brandmüller.

A suspeita vem do fato de que Bannon tem o papa como alvo há algum tempo. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou até uma campanha nas redes sociais com os lemas “Eu apoio o papa” e “Eu apoio o sínodo”.

Em duas oportunidades, o bispo de Marajó, no Pará, dom Evaristo Spengler, foi ao Congresso Nacional pedir apoio aos deputados. Discursou da tribuna e entregou a Carta de Belém, com protestos dos bispos, e se opôs abertamente aos planos do governo, lançando uma campanha de rechaço à mineração e grandes obras amazônicas. Ele disse ainda que o governo é que ameaça a soberania nacional ao se aliar a interesses dos Estados Unidos.

Bolsonaro admitiu monitorar evento

Bolsonaro admitiu a existência do monitoramento por parte do governo, revelado pelo Estado. Militares e representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foram a encontros sobre o sínodo. Um deles, em Manaus, a convite da Igreja, na presença do arcebispo militar, d. Fernando Guimarães, que negou uma relação de inimizade e minimizou os atritos.

“Creio que muitas coisas ali ficaram um pouco mais esclarecidas e superadas nessa preocupação do governo ao que poderia acontecer a partir do sínodo” , chegou a dizer d. Cláudio Hummes.

O cardeal acha que os desentendimentos foram “em parte” superados, mas não em todo. É a mesma visão de Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI.

“Estamos caminhando, não vou considerar pacificado nem alterado. O dia que um monte de padre for ameaçador para o Brasil, nós temos que fechar”, afirmou Heleno ao Estado.

Uma das suspeitas que move os militares é que a Igreja seja entusiasta de um projeto chamado Triplo A, ou, como batizado originalmente, Corredor AAA. Embora líderes católicos simpatizem com a ideia, ela não consta nas discussões do sínodo e a Igreja nunca emitiu opinião institucional sobre a proposta.

“O sínodo não vai tratar de questões técnicas de como cuidar da Amazônia”, disse Hummes. “A igreja nunca tomou nenhuma atitude em aprovar ou promover esse projeto, claro que não.”

Trata-se de uma ideia aventada pelo etnólogo colombiano Martin Von Hildebrand, da ONG Gaia Amazonas. Ela foi levada à mesa diplomática pelo ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, em 2018. A proposta é criar um corredor ecológico de biodiversidade, que conectaria os Andes, a Amazônia e o Atlântico – daí o triplo A – por meio da conjugação de esforços entre países para aumento de áreas protegidas.

Houve quem interpretasse que a área seria internacionalizada, o que o idealizador nega.

No Brasil, a área abarcada pelo projeto é a calha norte dos Rios Solimões e Amazonas, até a faixa de fronteira. Naturalmente conectados por rios e matas, o conceito de corredores costuma ser aplicado em áreas rurais e urbanas para ligar matas protegidas, criando um caminho para a fauna se deslocar e ajudar expandir a flora.

Em 2015, o Bolsonaro, então deputado, já criticava a ideia e afirmava que, por “incapacidade de gerir” essa região, o Brasil poderia ter um pedaço “amputado” de seu mapa.

Os bispos consideram as suspeitas absurdas. Dizem que para eles “a soberania brasileira é sagrada” e que não aceitarão qualquer hipótese de internacionalização. Eles dizem que o governo confunde conceitos de soberania com a pré-ocupação da região e que as autoridades deveriam estar satisfeitas porque a Igreja “meteu a mão na massa”.

O presidente da CNBB, d. Walmor de Oliveira, compara os pedidos de proteção internacional à Amazônia às declarações de monumentos como patrimônios sacros ou arquitetônicos mundiais da humanidade.

“É para reconhecer a importância, a necessidade de seu cuidado, não para ingerência, o domínio ou a posse de outros. Isso é muito claro, e é muito simples compreender esse caminho.”

Os religiosos disseram estranhar a reação do governo brasileiro. Eles lembram que não houve reação similar em outros países sul-americanos. Na Colômbia, por exemplo, o presidente Iván Duque, também de direita e apoiador de Bolsonaro, chegou a ir ao encontro nacional dos bispos em Bogotá e assumiu a liderança de esforços sul-americanos com um lançamento de um pacto pela Amazônia, mesmo não sendo atingido por incêndios recentes.

Há entre eles o temor de que Bolsonaro tente retomar uma política de desenvolvimento na Amazônia similar à do regime militar, quando houve incentivos fiscais para a expansão da fronteira agrícola na floresta, expansão de infraestrutura para ligar a região ao restante do País e ocupação da Região Norte.

“Integra para não entregar” era o lema. Um anúncio do governo chamava: “Toque sua boiada para o maior pasto do mundo”.

Outra herança da época é o Programa Calha Norte, que visava fixar as populações na região de fronteira, como forma de garantir a soberania territorial. Apesar de ter perdido orçamento nos últimos anos, o programa é uma vitrine das Forças Armadas na Amazônia Legal e tem plano de se expandir.

Igreja e Forças Armadas disputam protagonismo na região amazônica

Igreja e Forças Armadas disputam um mesmo título: ambos se arvoram como “profundos conhecedores” da realidade amazônica e não alguém que discorre com um olhar de fora. Os religiosos pela presença secular na evangelização, que levou ao desenvolvimento de vilas e assentamentos, e os militares como, em diversas regiões, o único braço do Estado.

“As Forças Armadas estão presentes numa capilaridade na região amazônica como ninguém e por isso compreendem muito bem os problemas  dessa região”, disse o general Cesar Augusto Nardi, comandante militar da Amazônia, em um seminário sobre o sínodo.

“Conhecemos muito melhor a situação da Amazônia do que os políticos, aposto”, disse o bispo emérito do Xingu, no Para, d. Erwin Krautler, no encontro de Belém.

A Igreja e Planalto, por outro lado, concordam em dois pontos. A Amazônia carece de desenvolvimento e os recursos naturais não são intocáveis. Discordam, porém, dos métodos e objetivos. Os clérigos querem impor limites. O governo quer derrubar obstáculos.

“Como é possível uma nação ter um território tão rico e ter tanta desigualdade, tantos cenários de pobreza”, questiona d. Walmor, que cita até o nióbio, mineral que não sai dos discursos de Bolsonaro, como riqueza a ser explorada pelo País.

“Precisamos superar aquilo que vem da ganância e da idolatria do dinheiro, com legislações adequadas que corrijam e ponham nos parâmetros certos.”

O tom das palavras do bispo lembra os discursos do presidente.

“Por que um país tão rico como esse não vai para frente? Como pode pequenos países, como Japão, Coreia do Sul e Israel, que, perto de nós, no tocante a riquezas naturais e à agricultura, não têm nada, terem IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e renda per capita muito melhores que os nossos?”, disse Bolsonaro, na Marcha para Brasília, em abril. “O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros”, declarou perante os chefes de Estado de todo o mundo na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em setembro.

Mais do que discussões etéreas, o sínodo vai marcar um posicionamento político da Igreja. Até deputados da oposição foram convidados por entidades católicas para denunciar desmandos no Vaticano. Mas o que tira o sono do governo é o que virá depois – o que nem os bispos podem antecipar. Das sugestões votadas por 185 “padre sinodais” convocados pelo pontífice, cabe apenas ao papa Francisco determinar as resoluções que serão adotadas no catolicismo, por meio da exortação apostólica pós-sinodal.

Porta-voz dos temores bolsonaristas, o general Heleno permanece em alerta.

“O que a gente quer é que eles tratem de evangelização, e não queiram entrar em assuntos de segurança nacional, nem dar recomendações ao Brasil que estão fora do âmbito de atuação da Igreja”, disse. “Vamos aguardar.”

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