Técnicos do Ibama nunca atestaram viabilidade do desvio de água feito pela usina no trecho de 100 km do rio onde vivem comunidades indígenas e ribeirinhas. Cientistas apontam grave risco.

O Ministério Público Federal (MPF) enviou recomendação ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) para que seja realizada uma retificação na licença de operação da usina de Belo Monte, para assegurar a continuidade da vida na região conhecida como Volta Grande do Xingu, trecho de 100 km do rio que é lar de espécies raras de peixes, de comunidades indígenas e ribeirinhas com séculos de história e de ecossistemas únicos, ameaçados pelo desvio das águas para as turbinas da hidrelétrica.

O presidente do Ibama, Eduardo Bim e o diretor de licenciamento ambiental, Jônatas Trindade, têm prazo de 20 dias para responder à recomendação do MPF, que requisita adoção de medidas para “retificação da licença de operação de Belo Monte, com a revisão do hidrograma de consenso previsto nos estudos de impacto ambiental e a sua substituição por um hidrograma ecológico apto a garantir as funções ambientais e a sustentabilidade das condições de vida na Volta Grande do Xingu”.

O documento foi enviado ao Ibama na última sexta-feira (30) e traz as conclusões de um inquérito civil que acompanha desde 2010 as consequências do licenciamento de Belo Monte para os moradores e ecossistemas da Volta Grande. Com a instalação da usina, a região foi rebatizada de Trecho de Vazão Reduzida e, diante das incertezas sobre o futuro da vida na área, foi definido nas licenças ambientais que seria submetida a um hidrograma de testes durante seis anos, a contar da conclusão das obras, prevista para dezembro de 2019. O chamado hidrograma de consenso determinou o que o MPF entende ser uma partilha das águas, com a maior parte, cerca de 80% da vazão, sendo desviada para alimentar as turbinas da hidrelétrica.

Pelo hidrograma, a Volta Grande do Xingu jamais voltará a ter as condições hidrológicas que permitiram a reprodução dos ecossistemas e das comunidades ao longo dos séculos. Em vez do pulso de inundação natural do rio, que garantia vazões de 20 a 25 mil metros cúbicos na cheia, a situação passou a ser de seca permanente com pequenas variações nos meses de enchente. A previsão do licenciamento era de liberar 4 mil metros cúbicos de água em um ano e 8 mil metros cúbicos de água no ano seguinte, submetendo a vida na região a um estresse hídrico que pode ser insuportável. Para o MPF, o regime proposto é insustentável e pode causar um colapso socioambiental – daí a urgência de se corrigir os erros do licenciamento de Belo Monte.

Uma das conclusões da investigação do MPF é que o parecer técnico do Ibama não atestou a viabilidade do dito hidrograma de consenso e não existem estudos técnicos que o sustentem. Pelo contrário, em 2009, antes da emissão da licença prévia da usina, a equipe do Ibama alertou que a quantidade de água prevista para ser mantida no trecho era insuficiente para a continuidade da vida. “Não há clareza quanto à manutenção de condições mínimas de reprodução e alimentação da ictiofauna, quelônios e aves aquáticas, bem como se o sistema suportará esse nível de estresse a médio e longo prazos. A proposta do Hidrograma de Consenso não apresenta segurança quanto à manutenção do ecossistema para o recrutamento da maioria das espécies dependentes do pulso de inundação, o que poderá acarretar severos impactos negativos, inclusive o comprometimento da alimentação e do modo de vida das populações da Volta Grande”, disseram os técnicos. Na emissão das licenças, o alerta técnico foi ignorado.

Também não foi respeitado o parecer de 2009 da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão interveniente do licenciamento, que condicionou a manutenção das licenças da usina à garantia da manutenção das condições ecológicas da Volta Grande do Xingu, para a permanência física e a reprodução cultural dos povos indígenas Juruna e Arara da Volta Grande. O documento apontou “a necessidade de um hidrograma ecológico, que seja suficiente para permitir a manutenção dos recursos naturais necessários à reprodução física e cultural dos povos indígenas. Em outras palavras, que o hidrograma ecológico (em especial os limites mínimos estipulados) considerado viável pelo Ibama permita a manutenção da reprodução da ictiofauna do Xingu e o transporte fluvial até Altamira, em níveis e condições adequados, evitando mudanças estruturais no modo de vida dos Juruna de Paquiçamba e dos Arara de Volta Grande podendo levar ao eventual deslocamento de suas aldeias”.

Corrupção – Para o MPF, Belo Monte promove uma disputa pelas águas em que a viabilidade financeira do empreendimento está diretamente conectada à sobrevivência de centenas de pessoas e da própria Volta Grande do Xingu. Necessariamente, o aumento da vazão de água no trecho desviado significará a redução na produção de energia da usina. O fato desse arranjo técnico ter sido construído sem nenhum estudo que atestasse sua viabilidade tanto ecológica quanto financeira, para o MPF, só pode ser explicado pelo esquema de corrupção que moveu a instalação da usina, que é investigado pela Força Tarefa Lava Jato.

Recentemente, o ex-ministro Edson Lobão foi denunciado pelo MPF à Justiça Federal no Paraná por desviar recursos da usina, por meio da ação do cartel formado pelas construtoras Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez. (Ação Penal Pública 5036513-15.2019.4.04.7000/PR). Para o MPF, o hidrograma imposto à Volta Grande do Xingu faz parte do esquema de corrupção, “mediante ingerência do governo federal sobre o órgão licenciador, de modo a contornar os entraves relacionados à viabilidade ambiental do projeto”. Ou seja, para viabilizar o desvio de verbas, as conclusões técnicas foram diretamente ignoradas na concessão das licenças, comprometendo a viabilidade econômica da usina e a sobrevivência ecológica da Volta Grande.

“No presente momento, há elementos mais do que suficientes para se supor que o que ficou conhecido como ‘Hidrograma de Consenso’ é um arranjo, que sustentou complexo esquema criminoso para viabilizar a construção da UHE Belo Monte, no interesse de um cartel de empreiteiras e de integrantes de partidos políticos na obtenção de vantagem indevida, com riscos ao meio ambiente e aos recursos federais aplicados”, diz a recomendação. Um parecer técnico preliminar emitido pela perícia do MPF sustenta a ligação entre os esquemas de corrupção e o hidrograma previsto para a Volta Grande do Xingu, afirmando que não há explicação plausível para os números e eles não têm base nos estudos de impacto ambiental.

“O parecer avalia que o hidrograma previsto só faz sentido do ponto de vista operacional de geração de energia elétrica, uma vez que, a única certeza é que a partilha da água na razão de 8 mil metros cúbicos por segundo para a Volta Grande do Xingu e 13 mil metros cúbicos por segundo para a geração de energia hidrelétrica em anos normais garantiriam – durante os meses de chuva – o funcionamento da capacidade plena da Usina Hidrelétrica de Belo Monte”. Portanto, a definição das quantidades mínimas de água que devem correr no rio Xingu previstas sob a rubrica ‘hidrograma de consenso’ integram um cálculo para supostamente tornar viável o retorno econômico da usina, para que fosse possível dar seguimento aos trâmites do leilão da hidrelétrica, que foi objeto de grande controvérsia política e jurídica em abril de 2010.

Remoção inconstitucional – A possibilidade de que o estresse hídrico imposto por Belo Monte provoque a remoção tantos dos povos indígenas quanto das comunidades ribeirinhas é concreta, o que faria da usina um empreendimento que viola diretamente a Constituição brasileira, que veda a remoção de grupos indígenas de suas terras. Logo após o fechamento da barragem principal, que desviou a água da Volta Grande em novembro de 2015, as consequências foram brutais para os moradores da região. Os peixes começaram a escassear, a navegação foi gravemente prejudicada, as mudanças físicas no curso do rio provocaram incidentes como enchentes artificiais, naufrágios e afogamentos – a vida econômica da região foi estrangulada pela dificuldade de acesso à Altamira. As previsões técnicas do Ibama se confirmaram antes mesmo do hidrograma de consenso começar a funcionar.

Inviabilidade da vida – A preocupação de autoridades e cientistas com a Volta Grande do Xingu vem sendo objeto de artigos, vistorias, relatórios e pareceres que também fundamentam a recomendação feita ao Ibama. Em artigo assinado por 21 cientistas que constituíram um painel independente para analisar a situação, a conclusão é que “as vazões do hidrograma proposto no licenciamento inviabilizarão a vida na Volta Grande do Xingu”. Para os cientistas – hidrólogos, geógrafos, biólogos e antropólogos – já existem provas suficientes de que as vazões propostas são insuficientes. “Não há condições de que os testes dos próximos seis anos ocorram com base no hidrograma inicialmente proposto, pois apenas se pode testar algo que ainda não tenha nenhum indicativo ou indício de comprovação ou de possível consolidação”, dizem.

“A sobrevivência e a manutenção de todo o ecossistema da Volta Grande e dos modos de vida de comunidades não podem ser objeto de testes quando são contundentes e claras as evidências e indicativos de impactos graves e irreversíveis que já ocorrem e estão em curso, mesmo com vazões bem superiores às do hidrograma proposto”, diz o artigo, intitulado “Condições para a manutenção da dinâmica sazonal de inundação, a conservação do ecossistema aquático e manutenção dos modos de vida dos povos da Volta Grande do Xingu”. (Veja íntegra)

O debate sobre as conclusões científicas já foi realizado com o Ibama e a Agência Nacional de Águas (ANA), em seminário que ocorreu em Brasília em 30 e 31 de maio de 2019. A empresa Norte Energia, concessionária de Belo Monte, participou, mas não levou nenhum de seus técnicos que pudesse explicar o embasamento científico do hidrograma – o que prejudicou o diálogo. “A opção da empresa foi por não se fazer acompanhar dos pesquisadores responsáveis pelos seus relatórios consolidados (apesar do convite nominal formulado), tendo reafirmado as balizas que deveriam sustentar a definição do hidrograma, sem demonstrar o embasamento teórico-científico dos parâmetros de vazão que pretende aplicar ao rio Xingu”, afirma a recomendação do MPF.

Durante o seminário, os representantes do Ibama deixaram claro que não há nenhum atestado técnico de viabilidade ambiental para aplicação do hidrograma. O Ibama informou ao MPF que a decisão sobre a partilha da água entre a Volta Grande e a usina de Belo Monte é de responsabilidade da Agência, que emitiu a outorga para o uso dos recursos hídricos do Xingu. A ANA confirmou a decisão e disse que se preocupou apenas com a manutenção das condições de navegação no trecho de vazão reduzida, portanto as questões relacionadas à integridade ambiental da área são responsabilidade do Ibama.

Em fevereiro de 2019, o MPF convocou autoridades de 11 instituições e professores de várias universidades para uma visita às comunidades da região. As constatações dramáticas foram reunidas em um relatório que mostrou a situação de penúria, insegurança e medo em que vivem as comunidades que suportam os impactos mais diretos de Belo Monte, mesmo sem a entrada em vigor do chamado hidrograma de consenso. (Confira o relatório dessa vistoria).

A recomendação é assinada por 18 procuradores da República que atuam no Pará, pelo procurador regional da República Felício Pontes Jr, que atua em Brasília e pelos subprocuradores-gerais da República Nivio de Freitas Silva Filho, coordenador da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, de meio ambiente e patrimônio cultural; Antônio Carlos Alpino Bigonha, coordenador da 6ª Câmara, de populações indígenas e comunidades tradicionais; Luiza Cristina Frischeisen, coordenadora da 2ª Câmara, criminal; Maria Iraneide Facchini, coordenadora da 5ª Câmara, de combate à corrupção; e Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, membro da 4ª Câmara.

Íntegra da recomendação feita ao Ibama para retificação da licença de operação de Belo Monte

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