Em entrevista ao Correio, o arcebispo de Porto Velho e presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, fala sobre o Sínodo da Amazônia e os desafios de proteção à floresta e às comunidades indígenas.
Arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi é uma das principais vozes na defesa do meio ambiente no Brasil. Natural de Progresso, no Rio Grande do Sul, o bispo de 62 anos conhece como poucos a região que fica no extremo oposto do estado em que nasceu. Desde que foi enviado para as missões amazônicas — primeiro em Roraima, depois em Rondônia —, vê de perto e denuncia as ameaças que recaem sobre a floresta e os indígenas e camponeses que a habitam.
O religioso certamente terá papel de destaque no Sínodo da Amazônia, que ocorre mês que vêm, no Vaticano. Na assembleia, 50 bispos dos países cujos territórios abrigam o bioma (Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, Guianas e Suriname, além do Brasil) debaterão como atuar na região e qual deve ser o posicionamento da Igreja em relação às questões ambientais.
O encontro, convocado pelo papa Francisco em 2017, acabou coincidindo com uma das maiores crises do governo Bolsonaro, pressionado internacionalmente para conter as queimadas e o desmatamento crescentes. O arcebispo, porém, ressalta que o debate a ser feito no Sínodo vai além de crises ou governos específicos. “Estamos, há muito tempo, não só no Brasil, vivendo crise em cima de crise, desastre ambiental em cima de desastre ambiental. O Sínodo é um convite aos cristãos católicos para se empenhar no cuidado da nossa Casa Comum”, diz.
Dom Roque, porém, ressalta que cabe à Igreja “denunciar tudo aquilo que leva à morte” e que há hoje, na Amazônia, o embate entre dois projetos bem distintos: um que “parte do respeito à natureza” e outro que pensa em “explorar os recursos naturais como se fossem infinitos”. “Ninguém é contra o desenvolvimento, mas a pergunta é que tipo de desenvolvimento nós queremos”, afirma.
Em um fim de noite, com a voz cansada após um dia de trabalho pastoral, Dom Roque atendeu o Correio para uma conversa por telefone. De Machadinho D’Oeste, cidade a pouco mais de 350km de Porto Velho, o também presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) falou sobre suas expectativas para o Sínodo de outubro, queimadas, garimpos e populações indígenas, além de outros temas que ocupam seu dia a dia. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O Sínodo da Amazônia vai acontecer no meio de uma crise internacional a respeito da Amazônia. É boa ou ruim essa coincidência?
O episcopado da Amazônia no Brasil pediu esse Sínodo ao papa em junho de 2016, e ele o convocou em 15 de outubro de 2017. Depois, em 2018, ele veio ao Chile e ao Peru, onde se encontrou com os povos indígenas da região amazônica e de vários países, inclusive com uma representação do Brasil. Estamos, há muito tempo, não só no Brasil, vivendo crise em cima de crise, desastre ambiental em cima de desastre ambiental. Então, o Sínodo é um convite aos cristãos católicos para se empenhar no cuidado da nossa Casa Comum. Não é necessariamente por causa das queimadas, que evidentemente são preocupantes. A preocupação da Igreja não é definir caminhos de governo, a Igreja tem a preocupação de alcançar as pessoas e de refletir os diversos sofrimentos, de modo particular das mais pobres.
Mas como a Igreja acompanha as queimadas?
A Igreja tem insistido diuturnamente com os católicos para que assumam esse compromisso de cuidar do meio ambiente. Na sua experiência histórica, a Igreja tem tentado mostrar aos fiéis o grande equívoco que é a ocupação e a destruição da Amazônia como vem acontecendo. Ninguém é contra o desenvolvimento, mas a pergunta é que tipo de desenvolvimento nós queremos.
Quais são as opções de desenvolvimento?
O que está em jogo na Amazônia são dois projetos bem distintos. O projeto da conservação e da extração dos produtos na linha do extrativismo, e o projeto embalado pela ganância de alguns, que acham que é preciso derrubar tudo, queimar, colocar o capim e colocar a soja. Um projeto parte do respeito à natureza e uso de toda uma riqueza que a Amazônia possui, mas por caminhos de mais harmonia; e outro que quer explorar os recursos naturais como se fossem infinitos. Aí é que paira o problema. Quem vai vencer? Não sei, só que hoje estamos vivendo situações bastante complicadas. As derrubadas, as queimadas e o fim das matas ciliares preocupam. Queiramos ou não, precisamos medir as consequências, porque colhemos aquilo que plantamos.
O senhor tem tentado distanciar o Sínodo da política, mas algumas alas do governo não ficaram felizes com a iniciativa.
O Sínodo é uma experiência eclesial. Eu não tenho o direito de saber quais as estratégias do general comandante do Exército para a segurança do país, eu tenho que confiar no trabalho dele. Assim é com esse Sínodo. A Igreja está mostrando dedicação em promover o bem, a vida e sobretudo o caminho do diálogo, do respeito e do entendimento com todas as vertentes no mundo da política. Mas acho que não há uma preocupação excessiva [do governo]. Tenho confiança de que o Sínodo vai dar espaço para que a Igreja seja sempre mais fiel à cruz de Cristo e dos crucificados de hoje.
Que expectativa podemos ter para o Sínodo?
A preocupação do papa é que a Igreja seja sempre ocupada e preocupada na defesa da vida e da dignidade das pessoas, capaz de se empenhar no cuidado da Casa Comum. Não estamos falando só do Brasil. São nove países que compõem a região Pan-Amazônica. Não estamos buscando outra coisa a não ser o bem e a fidelidade da missão. Não estamos falando dos destinos da política na Amazônia, mas dos destinos da Igreja na Amazônia. Todo mundo tem uma opinião para dar, e isso também é respeitado. É importante dizer que a Igreja não é contra esse ou aquele governo, mas também temos a missão de anunciar a boa nova e denunciar tudo aquilo que leva à morte.
O debate sobre a Amazônia também divide a opinião dos cristãos. Para alguns, o Sínodo dialoga com heresias. O que acha disso?
A palavra sínodo significa caminhar juntos. Há aquele velho ditado: se você quer chegar rápido, vá sozinho, mas se quer chegar mais longe, caminhe com os outros. Eu tenho que respeitar a opinião de todas as pessoas que têm se manifestado, mas posso dizer que o Sínodo é um processo de busca dos caminhos de Deus. Esse Sínodo é uma preocupação de responder aos gritos da criação e dos pobres que clamam por justiça, paz, fraternidade e dignidade.
Por que, então, uma parte dos cristãos tem essa concepção?
Não podemos esquecer que, como cristãos, somos seguidores de um homem que foi assassinado por acusações de deturpar a lei. Jesus foi difamado, caluniado, perseguido, corado com espinhos e pregado na cruz por apresentar uma proposta diferente da que se tinha naquele tempo, de não ser mais senhor e escravo, mas irmãs e irmãos. O Sínodo da Amazônia vai caminhar por águas serenas para encontrar as respostas aos desafios da evangelização nessa grande região.
Os povos indígenas são hoje a população mais vulnerável do país?
Existe um desamparo muito grande. Eles são os primeiros habitantes da região, que está sendo ocupada de forma desordenada. São alvos de preconceito, discriminação e condenação de suas culturas. Depois de quase 500 anos, o Estado brasileiro quis pagar essa dívida com o reconhecimento de direitos constitucionais. Nos artigos 231 e 232 da Constituição, o Estado, não um governo, o Estado reconheceu e desejou pagar essa dívida. Infelizmente, não pagou ainda. O Estado tinha cinco anos, após 1988, para homologar as terras indígenas, que são terras da União, para que os povos originários pudessem viver conforme seus costumes e tradições e preservar sua cultura. O direito à terra para os povos indígenas é um direito sagrado, originário, é um direito à vida. E, infelizmente, nós, como Estado brasileiro, independentemente de governo, continuamos a negar esse direito.
O atual governo quer regulamentar e legalizar o garimpo em terras indígenas. Como vê essa proposta?
O que nós dizemos em nome da Igreja é que a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, determina que as comunidades sejam consultadas previamente antes de qualquer intervenção como essa. É preciso respeitar. Voltamos ao ponto inicial: é também desenvolvimento sim, mas que desenvolvimento é esse? É excludente e provoca morte, doenças, contaminação do ar, da terra e das águas? Quem participa dos benefícios desse desenvolvimento? Essa é a questão e temos que encontrar a resposta dessa equação.
O senhor denuncia garimpo ilegais, invasões a terras indígenas e atuações ilegais do agronegócio. O senhor não tem medo de sofrer retaliações?
Não tenho medo e não tenho o que temer. Jesus não teve medo de Herodes, Pilatos e Caifás. Quando vivemos fiéis à missão, não há medo. Acho interessante lembrar, por exemplo, a irmã Dorothi Stang, assassinada em 2005. Quando os assassinos chegaram e quiseram saber se ela tinha alguma arma dentro da bolsa, ela sacou a bíblia e disse “aqui está a minha arma”. No capítulo 6 do evangelho de Lucas, lemos que são bem aventurados os puros, os bons, os misericordiosos, os que sofrem perseguições. Eu não tenho medo de nada porque, se Deus é por nós, quem será contra nós? Dizia outro dia um colega ameaçado de morte, “quem vai me matar, vai morrer um dia também, podem me matar hoje, mas um dia prestarão conta a Deus”. Eu acho que a Igreja não está preocupada e temerosa com ameaças, e sim preocupada em cumprir sua missão.
O que o senhor aprendeu vivendo na Amazônia?
Tem sido uma grande escola, na qual tenho a oportunidade de conviver com uma realidade muito diferente e plural. Só na Amazônia são mais de 280 povos com contato, sem contar aqueles povos que estão em isolamento voluntário. Para mim, tem sido, sobretudo, a busca da compreensão do modo de vida das populações originárias. Muitas vezes, nós as condenamos com facilidade, tratamos de maneira preconceituosa. Mas, como cristãos e brasileiros, temos de ter essa atenção especial aos povos originários. Há um ordenamento do país, mas essa população vive aqui há, no mínimo, 8 mil anos. Precisamos trabalhar o respeito e a compreensão de que somos diferentes, mas tenho que saber respeitar, acolher e valorizar aqueles que são diferentes de mim. Esse é o processo que a Igreja faz junto às populações originárias, não da demonização das culturas, não da colonização, mas um processo de diálogo, de escuta e de caminhar juntos, na certeza de que aprendemos mutuamente. Eu aprendo com eles e, eventualmente, eles podem aprender alguma coisa comigo, além da palavra de Deus.
E como é a relação entre missionários e padres católicos e os povos indígenas? Ainda há catequese?
O trabalho do Cimi é sobretudo uma presença na qual não tutelamos ninguém. Eles [os indígenas] são sujeitos da sua história. Procuramos apresentar a palavra de Deus e apoiar as buscas dos povos indígenas por dignidade. É uma relação respeitosa, na qual não tenho o direito de invadir a comunidade de ninguém. É como na inscrição bíblica “tiro as sandálias dos pés porque são lugares sagrados para eles” (Êxodo 3). Não tenho o direito de banalizar a vida e a cultura ou a espiritualidade de nenhum povo. É uma relação muito harmoniosa e respeitosa, de complementaridade, onde um aprende com o outro.
Por Hellen Leite
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE
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