Novas estradas e invasão de terras indígenas fazem Yanomamis migrarem para as cidades e sofrerem com descaso do poder público.

Arte: Secom/PGR

Às margens da BR-174, adultos e crianças vagam a pé em direção à cidade, em busca de trabalho, serviços públicos, programas sociais. Muitos ficam pelo caminho, vítimas de atropelamento e fome. Os que chegam aos centros urbanos montam acampamento e permanecem nas periferias das cidades por alguns dias, ficando vulneráveis à violência, aos vícios do álcool e das drogas, e consequentemente às doenças urbanas.

A cena tem se tornado comum, mas a primeira vez, registrada em 2016, não passou despercebida pelo Ministério Público Federal, que naquele ano abriu procedimento para investigar as causas dos fluxos pendulares de indígenas Yanomami. Foi verificado, à época, o início da migração indígena para a cidade – principalmente das populações de Xexena e Maimasi –, mas eles sempre retornavam depois de um curto período. O fenômeno chegou primeiro às cidades mais próximas da terra indígena, Caracaraí, Iracema e Mucajaí. Mas, em 2017, começou a ser relatado na capital Boa Vista, a mais de 300 km do local de origem.

“Além da busca por dinheiro e atendimento, o alcoolismo tem se mostrado um preocupante motivo para as viagens. O abuso de bebidas alcoólicas se tornou um dos principais problemas enfrentados pelos povos que tiveram contato recente com a população circundante e atualmente é considerado um dos maiores desafios da saúde indígena”, avalia a procuradora da República Manoela Lamenha, titular do ofício de Defesa das Populações Indígenas.

Tentativas extrajudiciais e ACP – Foram três anos de investigações para entender as razões desse fenômeno. Concomitante às apurações, o MPF em Roraima tentava exaustivamente integrar os diferentes órgãos para garantir uma saída extrajudicial para o problema. Após diversas reuniões, em janeiro deste ano, foi expedida recomendação à Fundação Nacional do Índio (Funai) em Roraima e ao Distrito Sanitário Especial Yanomami. O objetivo era que eles traçassem um plano de assistência aos povos das duas regiões (Xexena e Maimasi ), mas a recomendação não foi atendida.

Sem resultado, o órgão ministerial decidiu ajuizar ação civil pública (ACP) contra a União, o Estado de Roraima e os municípios, para que seja dado o suporte às populações indígenas da região, a fim de que elas não sejam obrigadas a deixarem as terras de origem. O principal pedido é para que a Funai implemente, no prazo de 30 dias, um plano de assistência indigenista, prevendo a instalação de um centro de apoio e resgate cultural.

O Governo Federal ficaria responsável ainda pela instalação de um posto de saúde na terra indígena, com orçamento necessário para o pleno funcionamento. Já os governos estadual e municipais terão que desenvolver um plano de assistência social e sanitária e instalar escolas na localidade identificada como nova morada das populações Xexena e Maimasi. O MPF quer ainda que as prefeituras de Boa Vista, Caracaraí, Iracema e Mucajaí garantam, por meio dos conselhos tutelares, medidas de proteção aos menores em situação de risco.

Entenda a origem do caso – O problema começou na década de 1970, quando a construção da BR-210 promoveu o convívio dos indígenas de Xexena e Maimasi com o “homem branco”. Houve então o acesso às áreas urbanas, o contato com o álcool, o dinheiro, o “trabalho remunerado” (muitos eram submetidos por fazendeiros a condições análogas à escravidão), além da perda dos roçados que possuíam à época. Sem o trabalho de um órgão indigenista que pudesse mediar esse contato e diminuir os impactos culturais, esses grupos abandonaram hábitos comunitários e técnicas tradicionais de plantio.

Diversas apurações do MPF por todo o país mostram que o contato forçado com os não indígenas sempre gerou desaldeamento, alcoolismo, disseminação de doenças contagiosas, exploração laboral e sexual, introdução do elemento monetário sem intermediação adequada.

Em um dos relatos colhidos durante às investigações, servidores do Centro de Referência Especializado da Assistência Social de Mucajaí descreveram a situação de um grupo de indígenas Yanomami: “Crianças passam fome, passam frio, fazem uso de álcool, dormem em ambiente aberto, praças e calçadas. Vivem em situação de risco pessoal e social, frequentando pontos de venda de drogas e prostituição, andam a mercê de perigos constantes nas ruas e na BR-174 e apresentam aspectos de má higiene corporal”.

Para a procuradora da República Manoela Lamenha, além da contribuição direta do Estado para esse intenso processo de desagregação cultural, hoje se observa uma completa omissão do poder público quanto às necessárias providências, imediatas e de longo prazo, para afastar a situação de extrema vulnerabilidade em que se encontram esses povos.

“É como se essas comunidades tivessem perdido a referência cultural e com isso a sociedade que haviam organizado anteriormente se desestruturou. Eles não têm mais como se manter, pois perderam a terra que usavam para o cultivo. O fenômeno é típico de comunidades de contato recente sem intermediação cultural adequada”, pondera a procuradora.

Boas práticas no Ajarani – O mesmo fluxo pendular já havia sido verificado, ainda que em menor escala, com indígenas Yanomami da região do Ajarani, localizada ao norte das áreas dos Xexena e Maimasi. Mas lá, os prejuízos culturais e os riscos à integridade pessoal dos indígenas foram revertidos por meio de uma bem-sucedida experiência de resgate das tradições promovida em parceria pela Frente de Proteção Etinoambiental Yecuana Yanomami (FPEYY) e pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y). Trata-se da Base de Proteção Etnoambiental (BAPE) Ajarani, inaugurada em outubro de 2017.

A base desenvolve programas de resgate de costumes tradicionais, além de projetos de sustentabilidade econômica. Entre eles, a construção de galpão, plantação de mandioca, banana, milho, tabaco e venda de castanha. Os agentes indigenistas trabalham ainda com a orientação dos indígenas quanto ao bom uso do dinheiro arrecadado e acompanhamento nas compras, para evitar possíveis enganos e compra de bebidas alcoólicas.

A ACP do MPF pede e prevê a instalação de uma base similar à do Ajarani. Entretanto, o texto da ação ressalta que as experiências de resgate não têm como objetivo excluir ou impedir a chegada dos indígenas às cidades.

“A prática dos fluxos pendulares deriva de direito fundamental de qualquer povo, indígena ou não, e jamais poderá ser objeto de tolhimento. O que não se pode admitir é que tais fluxos sejam realizados em situações indignas, de extrema vulnerabilidade e como decorrência direta de omissões do Estado que prejudicam o direito de permanecer no território original”, conclui trecho do documento.

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