É importante para o país reconhecer que nossa língua é uma língua original do Brasil. Vemos a necessidade de respeito, de sensibilidade em reconhecer e entender que nossas línguas têm valor, fazem parte da nossa história, do nosso conhecimento.” – Edilson Makoka Paumari.

Foto: Nova cartografia social da Amazônia

A grandeza do território brasileiro implica naturalmente na pluralidade, desde aspectos geográficos a contrastes de pensamentos e opiniões. Ao longo dos anos de formação do país, os povos indígenas têm contribuído em diversas dimensões para a construção de uma identidade nacional. A diversidade linguística é uma delas.

Atualmente, mais de 270 línguas indígenas constroem parte significativa da riqueza do Brasil. Isso significa mais de 270 maneiras de definir o mundo e compartilhar saberes de um número inimaginável de realidades. Perder qualquer uma delas provocaria a desconfiguração identitária de um povo indígena e, consequentemente, de uma nação.

Ao longo dos anos, muitos povos indígenas têm visto seus jovens perderem a ligação com a língua materna, costumes e tradições. Essas perdas são tão intrínsecas que se torna impossível concluir a ordem em que acontecem. Foi ao observar essa situação na realidade de seu povo que o professor Edilson Makokoa Paumari considerou urgente a criação de um projeto que pudesse valorizar e recuperar o pamoari, a língua do povo Paumari, que habita a região do médio purus.

Influenciados pelas difíceis relações impostas com a sociedade envolvente ao longo dos anos, principalmente nos dois períodos do ciclo da borracha, os Paumari passaram a desenvolver um pidgin, uma espécie de língua de contato, entre o português e o pamoari. Ou seja, há uma mescla de alta recorrência entre os dois idiomas, às vezes numa mesma frase.

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Edilson Paumari, idealizador do projeto Sou Bilíngue. Imagem: Cena do vídeo Campeonato de Língua Paumari – 2015

Quando fez um curso intercultural na região da Chapada dos Guimarães-MT, Edilson observou que os outros indígenas se expressavam nas respectivas línguas maternas e aquilo lhe chamou a atenção. Ao voltar à cidade de Lábrea-AM, o professor verificou que os jovens da região urbana não se comunicavam em pamoari e muitos sequer conheciam, de fato, a língua.

Ao lado de outros professores Paumari e Apurinã, Edilson decidiu encarar uma batalha pelo resgate linguístico e cultural dos jovens indígenas da cidade a partir do que intitulou de Programa Sou Bilíngue, uma iniciativa da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP), desenvolvida em parceria com a Funai e outras instituições governamentais e não-governamentais. “Pensei em trabalhar com os jovens da cidade. Alguns saíam da aldeia em busca de educação enquanto outros já haviam nascido na área urbana. A ideia é que ensinemos as línguas indígenas a eles para que as valorizem e não se desprendam de suas raízes”, relata o idealizador.

“Todo ano temos duas turmas de aproximadamente 20 pessoas para aprender as línguas. Os alunos têm entre seis e 15 anos. Estudam durante o dia na escola não-indígena da cidade, mas, à noite, aprendem conosco a escrita pamoari, artes, pintura corporal, história: tudo na nossa língua. Os alunos são interessados e muitos querem se tornar futuros professores do projeto. Atualmente temos alunos Paumari, Apurinã e Banawá na turma de pamoari querendo aprender”, explica Renildo(viko) Paumari, ex-aluno e atual coordenador do Programa.

Vitória da língua

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Jurados do Campeonato. Imagem: Cena do vídeo Campeonato de Língua Paumari

A iniciativa não para por aí. Não basta aprender em sala de aula, é preciso vivenciar. A partir dessa ideia surgiu um inusitado desdobramento do Programa: o Campeonato de Língua Paumari realizado na aldeia do Lago Maraha, na Terra Indígena Paumari.

Uma vez ao ano, até sete aldeias se unem para uma impressionante imersão linguística e cultural. Durante três dias, crianças, jovens, mulheres, anciãos: todos participam do evento em que só se fala pamoari. Danças, comidas tradicionais, músicas, pinturas e os conhecimentos Paumari são compartilhados e simultaneamente fortalecidos por todos.

Edilson conseguiu promover o reencontro de seus alunos da cidade com a própria origem e, ainda, envolver as comunidades indígenas numa maneira lúdica de treinar o pamoari: um campeonato de criação de narrativas.

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Povo Paumari no Campeonato da Língua Paumari. Imagem: Cena do vídeo Campeonato da Língua Paumari – 2015

Em vários grupos de aproximadamente 20 pessoas, os indígenas empenham a criatividade aliada aos conhecimentos, narrativas e realidade Paumari para desenvolverem uma história contada em pamoari e ilustrada por desenhos em cartolinas. É proibido o uso de palavras em português. Os jurados são anciãos e professores. Na IV edição do evento, em 2017, uma oficina promovida pelo Museu do Índio tornou a história campeã em narrativa digital ilustrada, também produzida por jovens indígenas.

“Na sala de aula a gente ensina a parte teórica das mudanças da língua. Mas no campeonato, na prática, os alunos do projeto ficaram mais atentos, viram as coisas acontecendo, que os mais velhos estavam falando, cantando, e eu vi que valeu a pena, que estávamos conseguindo passar o que queríamos que eles entendessem. Todos puderam saber que a nossa língua é rica, tem sua estrutura definida como as outras”, comenta entusiasmado o professor Edilson.

Estamos na ativa!

São projetos como o Sou bilíngue que a Funai tem apoiado ao longo dos anos. A partir das demandas trazidas pelas comunidades de iniciativas desenvolvidas por indígenas, professores e pesquisadores, as unidades da Funai se integram em prol da valorização linguística e cultural dos povos originários. Para o caso apresentado, por exemplo, foi necessária a atuação da Coordenação Regional Médio Purus, da Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania (CGPC) e do Museu do Índio.

A CGPC, por meio da Coordenação de Processos Educativos (COPE), apoia projetos de valorização, revitalização e uso de línguas indígenas desde o início dos anos 90. Na maior parte dos casos, linguistas e professores universitários são grandes parceiros. As ações e iniciativas são de caráter comunitário e construídas a partir da participação de pessoas que ocupam diferentes papéis nas relações sociais indígenas. Nenhuma dessas ações se limita ao ambiente de educação formal, tendo em vista que a língua está envolvida em todas as atividades e interações do cotidiano.

Dos 19 projetos apoiados pela COPE/CGPC atualmente os mais consolidados estão situados no estado de São Paulo, onde a Funai mantém parceria com o Indiomas/UNICAMP na realização dos seguintes projetos: Revitalização Linguística do Povo Nhandeva (Gramática e Site); Revitalização Linguística do Povo Kaingang Paulista; Revitalização Linguística do Povo Krenak de São Paulo e, iniciado mais recentemente, o projeto de Revitalização Linguística do Povo Terena de São Paulo. Essas atividades, que tiveram início no ano de 2013, são referência de sucesso nesse campo, e deram origem a excelentes resultados nas comunidades, ao lançamento de nove publicações didáticas e de informações etnográficas e linguísticas, materiais voltados à aprendizagem, às práticas culturais e usos das línguas nas aldeias.

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Garota Paumari pintada para o ritual da menina-moça. Foto: Cartografia da cartografia social

Assim como a CGPC, o Museu do Índio também está comprometido com a preservação e fortalecimento das línguas indígenas e culturas indígenas. Nos últimos três anos foram promovidos 36 projetos de pesquisa e documentação na área. Um dos de maior destaque está alocado no âmbito do Projeto de Cooperação Técnica Internacional de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas Brasileiras entre a Funai e a Unesco.

A parceria possibilitou o desenvolvimento dos Projetos de Documentação de Línguas Indígenas (ProDoclin), de Culturas Indígenas (ProDocult), Sonora (ProDocson) e de Acervos (ProDocerv). Até 2018 foram documentadas 14 línguas e 18 culturas, 4 projetos de acervos geridos pelos indígenas e 135 aldeias, computando um total de 35 mil pessoas beneficiadas. Documentários, catálogos de exposições, cartilhas pedagógicas, sites e dossiês entregues às populações parceiras são alguns dos produtos.

A partir de 2016, a parceria deu início ao Projeto de Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente Contato na Região Amazônica. A iniciativa prevê, entre outros objetivos, dotar a Funai de condições técnico-científicas para atuar junto às populações indígenas trasnfronteiriças e de recente-contato e desenvolver intercâmbio e cooperação com instituições nacionais e internacionais de reconhecida experiência na área e na atuação junto a populações indígenas transnacionais e de recente contato.

Durante o ano de 2018, 12 subprojetos do acordo técnico foram desenvolvidos no estados do Amazonas, Roraima, Rondônia e Acre. Os trabalhos envolveram as línguas Warekena, Sanöma, Moré-Cojubim, Korubo, língua do povo do Xinane, Taurepang, Yanomami Wãyamu, e as relações linguísticas dos Ye’kwana, Bora, Miranha, Nadëhup e Suruwaha.

O segundo semestre deste ano está repleto de eventos voltados às línguas indígenas no Museu do Índio. Nos próximos meses, serão lançadas três publicações com o resultado dos trabalhos de documentação e registro do patrimônio linguístico e cultural de povos indígenas transfronteiriços, realizados desde 2009 no âmbito do projeto de cooperação técnica da FUNAI com a UNESCO. Dois livros tratam de aspectos linguísticos e da cultura imaterial dos povos Wa’ikhana e Kotiria, do noroeste do Amazonas, e uma terceira publicação será sobre os cantos dos povos Macuxi e Taurepang, que vivem no Estado de Roraima.

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Mapa dos trabalhos desenvolvidos pelo ProDoclin, ProDocult, ProDocson e ProDocerv. Foto: Museu do Índio/Funai

Em outubro, haverá o curso de extensão A Gramática Universal e as Línguas Indígenas, com pesquisadores da UFRJ. De 11 a 14 de novembro, o Museu vai promover, em parceria com diversas instituições, como a Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Seminário Viva Língua Viva sobre línguas indígenas.

Ainda em novembro, vai ocorrer a oficina para a revitalização da língua Maori, na Nova Zelândia, conduzida por pesquisadores Maori, a partir de um convênio entre a UFRJ e a Universidade de Massey, e mesa redonda com pesquisadores indígenas sobre revitalização de línguas indígenas no Brasil.

Assessoria de Comunicação,
Com informações da CGPC e Museu do Índio