Uma turma de três desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, em Brasília, decidiu por maioria, na noite desta quarta-feira (19), manter a obra de construção da linha de transmissão de energia elétrica que o governo federal pretende erguer por 123 quilômetros na terra indígena waimiri-atroari, de Manaus (AM) a Boa Vista (RR).
Por dois votos a um, a 5ª Turma derrubou a decisão de primeira instância do Amazonas que determinava que os indígenas fossem consultados de forma “prévia, livre e informada” sobre o empreendimento.
Como não houve unanimidade no julgamento, o processo segue para julgamento em uma turma ampliada, em conjunto com integrantes da 6ª Turma. Na sessão ampliada, a decisão poderá ser revista.
Voto vencido, o relator do processo, o desembargador Souza Prudente, disse que os procedimentos da obra foram feitos “de forma atropelada”, em desrespeito à lei, e que o governo de Jair Bolsonaro, que pressiona pela realização da obra, tem oportunidade de corrigir “os esqueletos do governo decaído”, em referência ao governo de Dilma Rousseff, já que o edital foi lançado em 2011.
— Este novo governo, que levanta a bandeira da ética e do cumprimento da lei e da ordem, tem até o dever constitucional de passar um borrão em tudo isso e recomeçar tudo dentro do devido processo legal. Isso, aliás, já é a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA para o procedimento viciado da usina de Belo Monte — disse o relator.
A turma julgou recursos apresentados pelo governo contra decisão da Justiça Federal que havia acolhido duas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal do Amazonas. Os procuradores apontaram o descumprimento de uma série de regramentos nacionais e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A obra, avaliada em mais de R$ 2 bilhões, sem contar os custos de manutenção, é foco de interesse do presidente Jair Bolsonaro que, em fato inédito desde o fim da ditadura miliar, em 1985, em março convocou o Conselho de Defesa Nacional, órgão formado por ministros militares e civis, para dizer que a obra poderia ser realizada mesmo sem a consulta ou o consentimento dos indígenas. Com o linhão, o governo quer interligar Roraima ao sistema energético nacional. Hoje a energia é fornecida ao Estado pela Venezuela e por usinas termoelétricas.
O relator Souza Prudente disse que a consulta aos indígenas deveria “garantir condições de igualdade em direitos e oportunidades” e que audiências públicas não substituem o processo de consulta. O estudo de impacto ambiental da obra, por exemplo, deveria ter sido apresentado em linguagem acessível e traduzida para a língua dos indígenas, que hoje somam cerca de 2 mil.
Os desembargadores Daniele Maranhão e Carlos Brandão foram contrários ao relator e autorizaram a continuidade da obra. Brandão falou sobre a “capacidade de negociação entre as partes” e afirmou que “consulta prévia deve ser tendente a chegar a um acordo”. Para o desembargador, o Judiciário deve atuar “estimulando a mediação, a conciliação, e não pode ficar apenas em conceitos absolutos”.
Em defesa do governo, a Advocacia Geral da União (AGU) e os vários órgãos federais partes da ação, como Ibama, Funai e Aneel, argumentaram que já vem mantendo negociações com os indígenas.
O representante do MPF na sessão, o procurador regional da República da 1ª Região Felício Pontes Júnior, afirmou que as reuniões realizadas com indígenas não substituem a consulta tal qual prevista na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.
— Já foram julgadas 13 ações por violação de direito à consulta prévia e em todas se reconheceu que conversas, reuniões, não são a consulta. Esta corte já julgou sete recursos. E, em todos os julgamentos, o tribunal disse que deveria ser respeitado o direito à consulta prévia. O fato de os indígenas auxiliarem os estudos não é consulta prévia. Quem diz isso? A jurisprudência desta corte — disse Felício.
“Não pode ser atropelando os índios, passando o trator por cima”
O governador de Roraima, Antonio Denarium (PSL-RR), que acompanhou o julgamento na plateia, disse à Folha que a obra é necessária para reduzir os apagões. Segundo ele, com a crise econômica e social na Venezuela, os apagões aumentaram com 80 episódios desde o início do governo e uma duração média de 40 minutos cada um.
O advogado dos waimiris-atroaris, Jonas Carvalho, disse à Folha que os índios não são, a princípio, contrários à passagem do linhão de energia elétrica mas reivindicam explicações detalhadas sobre outras alternativas de traçado e a realização da consulta prévia conforme prevista na lei.
— Não pode ser atropelando os índios, passando o trator por cima. Isso eles não aceitam — disse o advogado.
O advogado da União presente à sessão, Rafael Ramos Monteiro de Souza, disse que a decisão “inédita” do Conselho de Defesa Nacional, convocado por Bolsonaro, é um “fato modificativo” da situação e poderia até mesmo “facultar essa consulta prévia” dos indígenas. O advogado disse que a decisão do Conselho deveria “mobilizar todos os atores”.
— Essa informação é de cunho relevante e serve para mobilizar todos os atores a promover o quanto antes a resposta ao empreendimento. […] A linha de transmissão tende a sanar a deficiência (energética) principalmente pelo caráter estratégico nacional, por interligar a única capital que não está interligada e eliminar a dependência energética de outro país — disse o advogado da União.
A obra do linhão foi escolhida uma das prioridades de trabalho da Comissão Arns, grupo formado por “20 personalidades do mundo político, juristas, acadêmicos, intelectuais, jornalistas e militantes sociais” para acompanhar questões ligadas aos direitos humanos no país.
Em nota pública no último dia 5, a Comissão afirmou que “chama atenção a determinação e a celeridade com que o governo Bolsonaro pretende iniciar as obras do linhão, apresentando-o à sociedade brasileira como obra de ‘interesse da política de defesa nacional’, sem consultar os waimiri-atroari, em claro desrespeito ao artigo 6º da Convenção 169 da OIT”.
A Comissão Arns lembrou que, na ditadura militar (1964-1985), os “waimiri-atroari foram quase dizimados […] por efeito da construção, com métodos violentos, da rodovia BR-174. De cerca de 3 mil indivíduos, chegaram a conta 350. Embora não estejam aparentemente se manifestando contra o projeto do linhão, reclamam o direito de serem ouvidos sobre o mesmo, como determina expressamente a Convenção 169”.
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