Não cabe apoiar projetos que desmontem ou desqualifiquem a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, mas sim de fomentar sua plena implementação”. Documento foi assinado por 116 pesquisadores da instituição
A importância da Reserva Legal segundo a visão de pesquisadores da Embrapa
Sumário
A RL cumpre suas funções no âmbito da propriedade rural, na microbacia e na região onde se insere. Portanto, não deve ser substituível por Unidades de Conservação, muitas vezes distantes, com outra identidade ecológica e com permissão de uso intensivo, como as Áreas de Proteção Ambiental.
A RL desempenha papel fundamental na provisão de serviços ecossistêmicos como polinização, manutenção de inimigos naturais de pragas agrícolas e balanço hídrico, para boa parte das culturas agrícolas brasileiras.
A RL complementa a conservação de populações e espécies não representadas nas raras e mal distribuídas Unidades de Conservação do país, especialmente nos biomas extra-amazônicos.
A RL tem função de manutenção da conectividade ecológica e facilitação do fluxo gênico de populações e espécies silvestres nas paisagens rurais.
A RL representa uma oportunidade de uso econômico da propriedade. Para isso, é preciso envidar esforços de pesquisa, desenvolvimento e inovação para estes ambientes. É preciso também avançar na regulamentação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais.
A proteção da vegetação nativa do Brasil é valorizada nas relações de comércio das commodities agrícolas, de modo que retrocessos na legislação ambiental poderão prejudicar as exportações do agronegócio.
É preciso avançar na busca soluções que ampliem a produtividade e a produção agropecuária, sem avanços destrutivos sobre a vegetação nativa protegida por lei, buscando sustentabilidade e conservação dos recursos naturais do país.
Numerosas discussões recentes sobre preservação ambiental no Brasil, no contexto das propriedades rurais, estimularam a elaboração da presente nota. Apesar de o Código Florestal vigente ter sido debatido no Congresso Nacional por longos anos, resultando na publicação em 2012 da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei Federal 12.651/2012; também conhecida como “novo Código Florestal”), têm surgido iniciativas parlamentares para o seu desmonte. Exemplo disso é o Projeto de Lei 2.362/2019, de autoria dos senadores Márcio Bittar (MDB/AC) e Flávio Bolsonaro (PSL/RJ), que pretende revogar o Capítulo IV (“Da Reserva Legal”), propondo diretamente o fim da obrigatoriedade das Reservas Legais em propriedades rurais no Brasil. Partidários dessa proposta argumentam que as exigências da atual legislação ambiental constituem um entrave à expansão da produção agropecuária no Brasil.
O conceito de Reserva Legal (RL) em propriedades rurais no Brasil surgiu oficialmente na legislação em 1934, com o primeiro Código Florestal do país (Decreto 23.793/1934). Neste Decreto, com um viés que buscou garantir a produção de madeira, lenha e carvão, os donos de terras no país eram obrigados a manter 25% da área de seus imóveis com cobertura de mata original. Posteriormente, conforme fundamentado no Código Florestal de 1965 (Lei Federal 4.771/1965), a RL foi balizada com a premissa básica de manutenção de uma proporção mínima da cobertura vegetal nativa na propriedade rural. Orientando a ocupação de terras no Brasil por mais de 45 anos, a RL foi ratificada há pouco mais de sete anos pela já mencionada Lei de Proteção da Vegetação Nativa, o novo Código Florestal. Por definição, RLs são áreas dentro das propriedades rurais destinadas a serem mantidas legalmente cobertas por vegetação nativa, e representam 80% da propriedade em áreas de floresta1 na Amazônia Legal, 35% em áreas de Cerrado na Amazônia Legal e 20% nos biomas extra-amazônicos. A RL desempenha funções múltiplas na propriedade, entre as quais: “assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”. Portanto, a RL contribui com a conservação da natureza, com os serviços ecossistêmicos, mas prevê o aproveitamento econômico direto mediante manejo sustentável.
Apresentamos aqui argumentos que ressaltam a importância da RL no âmbito da propriedade rural, e seus benefícios para o meio ambiente e a sociedade brasileira. Em particular, alertamos para as reais ameaças de sua exclusão para todos os biomas do país, em particular aqueles fora da Amazônia, que têm proteção ainda menor.
A RL tem função dentro da propriedade e na sua microbacia. Não deve ser substituível por Unidades de Conservação mal distribuídas no amplo e diverso território brasileiro
O conceito de RL foi idealizado para trazer benefícios ao próprio imóvel rural, o qual está inserido em uma microbacia hidrográfica. Vejamos os três princípios fundamentais desempenhados pela RL: (1) uso sustentável de recursos naturais; (2) conservação e reabilitação de processos ecológicos; (3) conservação da biodiversidade e fornecimento de habitats adequados para espécies da flora e da fauna. O argumento que a RL não seria mais necessária, pois extensas áreas preservadas com vegetação nativa já cobririam boa parte do país não faz sentido algum, considerando dois aspectos principais: (1) há um profundo desequilíbrio na proporção de vegetação nativa preservada nas diferentes regiões e biomas do país, com boa parte do território apresentando elevados déficits de áreas conservadas; e (2) áreas protegidas localizadas a centenas de quilômetros não podem suprir as funções localmente desempenhadas pela RL. Portanto, quando se avalia a questão da conservação ambiental e a ordenação territorial no Brasil, é um equívoco grave analisar os dados apenas de forma agregada para todo o nosso país. O correto seriam avaliações da proporção de cobertura da vegetação nativa em escalas mais locais, onde os processos ecológicos atuam, e também onde peculiaridades regionais da biodiversidade ocorrem.
A Lei da Proteção da Vegetação Nativa institui a Cota de Reserva Ambiental (CRA), um mecanismo que permite ao produtor rural compensar seu déficit de RL em outra propriedade rural através da compra de Cotas de Reserva Ambiental. A Lei determinou que essa compensação poderia ser feita em propriedades no mesmo bioma, e o Supremo Tribunal Federal julgou sua constitucionalidade e interpretou que será permitida a compensação apenas entre áreas com a mesma identidade ecológica. Atualmente, ainda está em discussão como a identidade ecológica se aplicaria. Como premissa básica, defendemos que esta seja a fitofisionomia (que é a feição paisagística da vegetação – em outras palavras, se é um tipo de floresta, um tipo de savana ou um tipo de campo) dentro de Ecorregiões do mesmo bioma.
A RL cumpre importantes serviços ecossistêmicos
A manutenção das áreas de RL próximas às áreas de cultivo é fundamental no fornecimento de serviços de polinização e no controle biológico de pragas promovidos por insetos. Muitos desses organismos não se deslocam a grandes distâncias e precisam desses ambientes naturais para abrigo, alimentação e procriação. O serviço ecossistêmico de polinização é afetado diretamente pela vegetação que compõe a paisagem das propriedades rurais, e de seu entorno, tanto pelo efeito direto na diversidade quanto na abundância local de abelhas e outros polinizadores. As abelhas, em particular, dependem dos recursos florais existentes em manchas de vegetação natural. Aproximadamente 70% das espécies de plantas cultivadas mundo afora têm aumento de produção em consequência da polinização promovida por animais. Levando-se em conta os dados de produção de 2012, a polinização mediada por insetos foi responsável por 30% da produção de 44 culturas brasileiras.
Predadores e parasitóides de insetos-pragas da agricultura são conservados em áreas de transição entre a vegetação nativa e as áreas agrícolas, e contribuem para minimizar a ocorrência de surtos populacionais de pragas dos principais cultivos. Esses insetos benéficos à agricultura somente são capazes de sobreviver e recolonizar as áreas de plantio se houver áreas de refúgio com vegetação nativa. A eliminação dessas áreas representa a supressão desse serviço ecossistêmico e a necessidade de intensificação do controle das pragas, com o consequente aumento dos impactos ambientais e dos custos de produção agrícola.
Áreas de RL cobertas por vegetação nativa em propriedades rurais também desempenham um importante papel na proteção do solo, na regulação do ciclo da água e na manutenção do clima. A presença de manchas de vegetação nativas em propriedades rurais contribui para reduzir a erosão do solo e o carreamento de pesticidas e fertilizantes por escoamento superficial, reduzindo o assoreamento e a contaminação de corpos hídricos. A vegetação nativa constitui o balanço hídrico natural da paisagem, importante para processos hidrológicos locais, regionais e continentais. Por exemplo, nas florestas úmidas a evapotranspiração é alta, resultando em formação de nuvens de precipitação na própria região, e em regiões distantes com escassez hídrica. Savanas e campos nativos permitem alta infiltração de água e abastecimento do lençol freático, contribuindo para a vazão dos rios, especialmente na estação seca.
A RL contribui para a conservação da biodiversidade e conectividade das paisagens
Os seis grandes biomas terrestres do Brasil (Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal) compreendem ricas biotas (isto é, flora, fauna e micro-organismos), vegetações, ambientes, hidrografias, geologias e geomorfologias que são muito distintas entre si. Décadas de estudos científicos, realizados por diversas gerações de estudiosos, demonstram que a biodiversidade não é distribuída de forma homogênea no território brasileiro. De fato, há peculiaridades na biodiversidade em uma região que não aparecem em outras partes do território nacional, sendo que conjuntos de espécies regionais necessitam de áreas de vegetação nativa na sua região de ocorrência para sua preservação. Do ponto de vista da conservação da biodiversidade, ao contrário do que se poderia pensar, extensas porções de terra conservadas em determinado bioma não representam garantia de preservação de espécies que ocorrem em outros biomas. Portanto, não é preservando uma região do país que se garante a preservação de outras regiões.
Em determinadas situações, como na Mata Atlântica, bioma brasileiro com maior perda de vegetação nativa, 80% dos remanescentes florestais encontram-se em propriedades privadas. Desse modo, a conservação da biodiversidade da Mata Atlântica depende essencialmente de florestas nativas contidas nas RLs. Reduções, ou mesmo a extinção de áreas de RL, trariam sérias consequências a esse bioma rico e seriamente ameaçado. Ressalta-se, assim, o importante papel desempenhado pelas RLs na conservação de espécies da flora e da fauna. De fato, a RL contribui de maneira complementar à conservação realizada nas Unidades de Conservação (UCs), considerando que em diversas regiões do país essas UCs são insuficientes e não abrangem toda a diversidade contida no bioma. Por exemplo, é fato que espécies raras ou endêmicas, não representadas em UCs, encontram abrigo em RLs. Portanto, iniciativas que venham a reduzir as áreas de RL colocariam em risco a maior parte dos biomas brasileiros, sobretudo aqueles menos protegidos e mais antropizados pelos processos de ocupação, como o Cerrado.
As RLs podem ter sua função de proteção da biodiversidade maximizada, considerando sua capacidade de conectar fragmentos de vegetação nativa. Isso favorece a ocorrência de manchas maiores de vegetação na paisagem, reduzindo o isolamento de populações de fauna e flora, facilitando o fluxo gênico, e permitindo a ocorrência de espécies que demandam maior área de vida, como animais de grande porte. De fato, paisagens com mais de 30% de cobertura de vegetação nativa permitem ampla circulação de animais silvestres.
Possibilidades de uso da RL com benefício econômico direto
A RL pode ser manejada para exploração de produtos florestais madeireiros e não-madeireiros para consumo na própria propriedade rural, sem a necessidade de autorização por órgãos ambientais. Também pode ser usada para fins comerciais, desde que com plano de manejo previamente aprovado por órgãos ambientais. Na recomposição da vegetação nativa de RL, é permitido o uso de até 50% de espécies exóticas e a adoção de sistemas agroflorestais. Todas essas possibilidades permitem a produção de madeira e de produtos não-madeireiros na RL, desde que a vegetação nativa não seja descaracterizada. A RL regular na propriedade ainda pode dar acesso a políticas de pagamento por serviços ambientais. O estímulo ao uso sustentável da RL ainda está em estágio inicial. É preciso desenvolver e adaptar sistemas de produção adequados às RLs, assim como desenvolver estratégias de agregação de valor a elas.
A RL não é ônus ao proprietário
O principal argumento contrário à a RL tem sido a falta de áreas para a expansão agrícola no Brasil. Entretanto, sólidos estudos científicos demonstram que (1) a expansão da agricultura sobre áreas de pastagens degradadas e (2) o aumento da produtividade agropecuária em áreas agrícolas consolidadas são suficientes para a elevação da produção brasileira nas próximas décadas.
Há inúmeros exemplos no Brasil de estratégias de conservação de RLs, nos quais elas desempenham francamente seu papel, trazendo benefícios sociais e ambientais. Entre esses exemplos pode-se citar: propriedades com área de RL mantida voluntariamente acima do mínimo estabelecido; RL abrigando espécies de grande relevância para conservação; RL de diversas propriedades agrupadas em consórcio, ou contíguas às Áreas de Proteção Permanente (APP), formando áreas com vegetação nativa mais extensas, favorecendo a manutenção da flora e fauna nativas; e RL onde o extrativismo sustentável de espécies nativas contribui para a renda do produtor rural. Experiências e depoimentos de produtores que conservam suas RLs mostram que é possível transferir esses exemplos para outras propriedades agrícolas. Alguns produtores sustentam que esperam pelo dia em que a madeira certificada seja mais valiosa, e que, por meio de mecanismos de facilitação para o manejo legalizado, poderão explorar seus recursos conservados de forma sustentável. Além disso, há valores culturais intrínsecos nos ricos ecossistemas brasileiros que são amparados pelas RLs. Para exemplificar, alguns produtores do centro do Brasil afirmam que conservam suas RLs para que seus netos um dia possam saber como é uma árvore típica do Cerrado.
Esses exemplos demonstram que é possível conciliar a manutenção das RLs sem comprometer a produção agrícola; que delas também é beneficiária. Certamente um bom planejamento da RL, considerando-se o plano da bacia hidrográfica, a conexão com áreas de vegetação nativa, ou áreas de maior fragilidade ambiental, resultará na potencialização de benefícios na conservação do solo, preservação da biodiversidade e provisão de serviços ambientais.
Conclusão
O momento atual é de buscar melhorias e soluções para o aumento da produtividade e da produção agropecuária em áreas já abertas, ou em áreas degradadas nos diferentes biomas brasileiros, em harmonia com a conservação dos recursos naturais. Não cabe apoiar projetos que desmontem ou desqualifiquem a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, mas sim de fomentar sua plena implementação.
seguem as assinaturas em ordem alfabética
1 Nos estados que tenham mais de 65% do território ocupado por Unidades de Conservação e terras indígenas, o Governo Estadual poderá reduzir o percentual de reserva obrigatória de 80% para até 50%, ouvido o Conselho Estadual de Meio Ambiente. O mesmo vale para quando o município tiver mais de 50% da área ocupada por Unidades de Conservação e terras indígenas homologadas. Para fins de regularização, se admite reduzir a recomposição para até 50% da propriedade, quando indicado por zoneamento ecológico-econômico (ZEE) nos imóveis com área rural consolidada.
FONTE: Jornal da Ciência – http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/16-pesquisadores-da-embrapa-divulgam-nota-tecnica-sobre-a-importancia-da-reserva-legal/
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