Nas últimas três décadas, a rápida expansão particularmente da pecuária, além da mineração e da agricultura em larga escala, levou à perda de pelo menos 19,55% do total de florestas primárias na Amazônia brasileira.

Predominantemente extensiva, a pecuária tradicionalmente desenvolvida na região segue um modelo baseado em desmatamento, pouca tecnologia e baixa produtividade. A implantação e manejo precários das pastagens levam à sua rápida degradação e consequente expansão sobre novas áreas de florestas primárias. A pecuária nesse modelo se expandiu, chegando a ocupar atualmente quase 70% do total das áreas já desmatadas, constituindo-se no uso da terra mais amplamente difundido na Amazônia. No entanto, a pecuária não representa apenas um importante vetor de desmatamento, mas também de acúmulo de vegetação secundária, resultante de regeneração em áreas de pastagens degradadas e, por isso, abandonadas.

Até meados dos anos 2000, as estimativas de vegetação secundária para a Amazônia brasileira indicavam um progressivo acúmulo. No entanto, após 2010, apenas 1.197 km2 de vegetação secundária foram detectados, enquanto 42.040 km2 foram convertidos em outros usos da terra. Nesse mesmo período, como consequência de várias medidas legais e alternativas contra o desmatamento, implementadas a partir de 2004, as taxas de desmatamento também sofreram redução, estando atualmente em torno de 6.000 km2, em contraste aos 27.772 km2 detectados em 2004.

É nesse contexto que se desenvolveu a tese da agrônoma Raquel Carvalho, defendida em setembro de 2018, sob orientação das pesquisadoras Ana Paula Dutra de Aguiar e Silvana Amaral, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Foram utilizados métodos de pesquisa social e de análise espacial para entender quais as implicações do aumento da pressão contra o desmatamento sobre o manejo das pastagens, e como tais mudanças interferiram na dinâmica da vegetação secundária.

Regeneração em área de pastagem (esq) e área de pastagem renovada (dir) no Projeto de Assentamento Escada Alta em Marabá

O trabalho investigou a heterogeneidade dos processos subjacentes à dinâmica da vegetação secundária em sistemas de pecuária no Pará, analisando os impactos potenciais das estratégias contra a degradação de pastagens sobre esta cobertura do solo. Inicialmente, na escala regional, foi feita uma análise dos padrões espaço-temporais e de agrupamento (clusters) de altos e baixos valores de vegetação secundária e de diferentes tipos de coberturas da terra no estado. Na sequência, tendo como base uma investigação de campo, buscou-se entender como o aumento da pressão legal contra o desmatamento pode ter estimulado os atores a mudarem práticas e técnicas para lidar com a degradação de pastagens.

Além das motivações, percepções e estratégias dos atores, é apresentada uma classificação dos sistemas de pecuária por eles operados, quantificando-se as práticas e técnicas empregadas no manejo de pastagens. Tendo como base o conhecimento acumulado sobre a dinâmica de vegetação secundária, é apresentada também uma discussão sobre como tais práticas e técnicas podem ter impactado essa cobertura da terra.

Por fim, os sistemas de pecuária foram espacializados para possibilitar uma análise da dinâmica espaço temporal da representatividade dos clusters de vegetação secundária e pastagens em cada um dos sistemas, seguido de uma análise exploratória das associações entre diferentes vetores e clusters nos diferentes sistemas de pecuária nos períodos pré (2000-2004) e pós-pressão (2010-2014) legal contra o desmatamento.

Roçagem mecanizada de pastagem em processo de degradação em São Felix do Xingu

A pesquisa mostra que, no Pará, a pecuária foi um importante vetor de mudanças na dinâmica da vegetação secundária no período que corresponde a uma maior pressão contra o desmatamento. Enquanto no sudeste do estado houve uma maior conversão de áreas de vegetação secundária em pastos limpos no final da década, a concentração de vegetação secundária na região norte se deu em grande parte como resultado de regeneração em antigas áreas de pastagens. A diversidade de sistemas de pecuária indica que a adoção de estratégias de alto impacto na recuperação de pastagens se restringiu a regiões com melhor infraestrutura, próximas aos grandes frigoríficos, e com desmatamento acumulado alto. Adicionalmente, tal processo de intensificação no manejo das pastagens coincide com um perfil de atores com experiência prévia em atividades produtivas.

Em contraste, nas demais regiões do Pará, as pastagens são ainda predominantemente manejadas com fogo e controle manual de ervas daninhas, estratégias de baixo impacto no controle da degradação e que têm contribuído para reforçar o padrão histórico de acúmulo de vegetação secundária em áreas de pastagens degradadas.

Acesse a tese completa

Leia abaixo entrevista com a pesquisadora Raquel Carvalho:

O que a sua pesquisa traz de novo em relação aos temas que você aborda?

A primeira grande novidade do trabalho é mostrar que existe uma diversidade de sistemas de pecuária. Apesar da extensa área que a atividade ocupa e dos efeitos socioambientais dessa expansão, se sabe pouco sobre como se faz pecuária na Amazônia. Sempre falamos de pecuária como vetor de desmatamento, mas a pecuária também se relaciona com outras dinâmicas de uso e cobertura da terra como a vegetação secundária, por exemplo. Outra grande inovação do trabalho é investigar a pecuária em um período de queda no desmatamento. Com base nos dados de expansão dos rebanhos face à expansão das pastagens, alguns autores já vinham sugerindo que a pecuária estaria passando por melhorias no manejo e isso estaria contribuindo para um aumento de produtividade. Nosso trabalho contribui então para mostrar como e onde a intensificação está acontecendo e como isso tem se refletido na dinâmica da vegetação secundária.

Adicionalmente, aproveitamos uma janela de oportunidade importante propiciada pela redução do desmatamento para entender como mudanças no manejo das pastagens impactou a dinâmica da vegetação secundária nesse período. O padrão sempre foi de acúmulo de vegetação secundária, particularmente através do processo de degradação das pastagens o qual, historicamente, tem levado ao abandono e regeneração dessas áreas, e avanço sobre novas áreas de florestas. Sabemos que a vegetação secundária também se acumula como resultado da agricultura de pousio, por exemplo, mas a pecuária, pela extensão que ocupa, sempre foi mais relevante nessa dinâmica. E isso se repete nesse período de pressão contra o desmatamento, quando esse padrão de acúmulo nos sistemas de pecuária muda onde a intensificação no manejo das pastagens está acontecendo.

Quais os grandes desafios enfrentados no desenvolvimento da pesquisa?

Desenvolver pesquisa interdisciplinar já é um grande desafio, pois você precisa entender de temas e métodos distintos que precisam ser conciliados e acomodados para responder às questões propostas. Na tese, lidamos com regeneração natural da floresta, os atores e suas estratégias de produção pecuária, e a pressão contra o desmatamento resultado de políticas públicas e da pressão do mercado. Da mesma forma, adotamos métodos de pesquisa social e análise espacial. São temas muito distintos, com um arcabouço teórico extenso e é bastante desafiador manter isso tudo dentro de um foco específico. Além do que, ao longo de todo um semestre de 2016, fui a campo o que também demanda bastante dedicação e tempo. Para que tudo saísse a contento foi necessário um grande envolvimento não apenas meu, mas das orientadoras no sentido de fazer com que esses elementos e métodos diversos se apoiassem e convergissem para responder nossas perguntas.

Um outro desafio foi trabalhar em diferentes escalas, pois começamos em uma escala regional, analisando a dinâmica da vegetação secundária no Pará e, em seguida, após definir as áreas de campo, damos um zoom em cada uma delas, levantando dados sobre as estratégias de manejo das pastagens e ambientais. Reconstruímos a trajetória dos atores em cada um desses locais e identificamos os elementos que, além do manejo, caracterizam a pecuária nessas diferentes regiões. Na finalização do trabalho, voltamos à escala regional, quando produzimos uma visão espacial dessa diversidade de sistemas e olhamos novamente para a dinâmica da vegetação secundária, porém dentro desses sistemas.

Quais as principais contribuições da sua pesquisa para a Amazônia?

Penso que contribuímos tanto para a pesquisa acadêmica com foco em pecuária e conservação de florestas, quanto para a eventual construção de políticas públicas. Atualmente existe uma forte discussão em torno da intensificação como estratégia que pode contribuir para a conservação de florestas, o chamado efeito poupa-terra. Muitos estudos hoje buscam identificar áreas onde a intensificação está acontecendo e relacionar isso com a redução no desmatamento. Nesse sentido, não apenas identificamos os limites espaciais da intensificação, mas também a conjuntura na qual essa intensificação está acontecendo. Mais além, discutimos que as condições que levam à intensificação podem ir até num caminho contrário ao que se espera em termos de efeito poupa-terra já que, pelo menos no Pará, a intensificação da pecuária está se dando em áreas que, dentre outras características, têm pouca floresta primária. Além disso, esse processo, pelos efeitos negativos que têm sobre a regeneração, está reduzindo o estoque de vegetação secundária.

No que tange à pecuária como atividade produtiva, além de mostrar que essa atividade não pode ser tratada como algo uniforme, a abordagem de mapear os diferentes sistemas pode ser replicada com foco mais amplo nas dinâmicas de uso e cobertura com as quais a pecuária possa estar relacionada. Eu vejo como exemplo o programa ABC que é um programa de crédito com foco na agricultura de baixo carbono. Os dados mostram um volume de contratação de crédito baixo, e há uma discussão em torno das razões para tal. Nossa abordagem poderia ser empregada, por exemplo, para se entender onde efetivamente existe um potencial de intensificação no manejo das pastagens e assim identificar áreas estratégicas para essa linha de crédito, o que originalmente foi feito utilizando os dados de pastagens degradadas e de taxas de lotação, sem que houvesse uma análise mais ampla do contexto regional no qual tais indicadores se inserem. Obviamente, outros entraves foram identificados, mas estou apenas dando um exemplo de como a pesquisa acadêmica pode contribuir para responder questões que são de interesse da sociedade. Então, nossos resultados são importantes na discussão de tais questões, principalmente por serem resultados construídos tanto a partir da análise de dados secundários, mas também com base em pesquisa de campo em nove localidades do Pará, ou seja, é um retrato bem completo do que está acontecendo com a pecuária na região.

Como você pretende divulgar os resultados desse estudo? E quais as perspectivas futuras da pesquisa?

Já publicamos o primeiro artigo e submetemos um segundo. O plano é publicar pelo menos três artigos com base nos resultados da tese e, a partir daí, dar continuidade a pesquisa desenvolvendo um modelo baseado em agentes que nos permita testar alguns insights que tivemos a partir da conclusão do trabalho.

Semi-confinamento durante o verão em Redenção

Por: Raquel Carvalho (CCST-INPE) e Ana Paula Soares
(CCST-INPE)

Link: http://redeclima.ccst.inpe.br/tese-de-doutorado-estuda-impactos-da-pecuaria-na-vegetacao-secundaria-na-amazonia/

FONTE: CCST-INPE —  http://www.ccst.inpe.br/tese-de-doutorado-do-ccst-inpe-estuda-impactos-da-pecuaria-na-vegetacao-secundaria-na-amazonia/