Seriam 12 quilômetros de caminhada Amazônia adentro. Antes dos primeiros passos, Batiti Karipuna pediu silêncio ao grupo. Dali em diante, a comunicação se daria com gestos e assobios. Seguimos. Meia hora depois, surge a primeira “picada”, um corredor na mata que marca o início de um lote a ser vendido, em um escritório longe dali, como terra de ninguém. A cena se repete a cada quilômetro. Entre setembro de 2015 e maio de 2018, foi desmatada uma área equivalente a 11 mil campos de futebol na Terra Indígena (TI) Karipuna, em Rondônia. A invasão da área demarcada escancara a omissão do Estado brasileiro e indica o perigoso avanço do crime ambiental organizado na maior floresta tropical do planeta.

O cacique André mostra área destruída dentro da reserva caripuna. Uma área equivalente a 11 mil campos de futebol foi desmatada na reserva entre setembro de 2015 e maio de 2018. Foto: Rogério Assis / Greenpeace

O objetivo original da incursão na mata era mostrar à reportagem de ÉPOCA o “lote cinco”, uma das áreas mais desmatadas na terra dos caripunas. Mas, na véspera, o cacique André Karipuna, de 26 anos, achou mais prudente abortar o plano. Ameaçado de morte pelos invasores, André tem visto o perigo se aproximar a cada dia. Nos dias anteriores, o ronco de tratores tinha se aproximado da aldeia e levado temor à comunidade. O Posto Indígena de Vigilância (PIV) da Fundação Nacional do Índio (Funai), construído a 10 quilômetros da aldeia, foi incendiado pelos invasores em fevereiro de 2018. Em janeiro deste ano, os caripunas depararam com cerca de 20 desconhecidos abrigados no local. Embora haja 58 indígenas da etnia, apenas 30 vivem na comunidade. A vulnerabilidade de seu povo tira o sono de André, que tem dois filhos.

“Evito ao máximo andar sozinho ou ir à cidade. Tenho medo do que pode acontecer comigo”, admitiu. André foi escolhido como cacique de seu povo no início de 2017. Seu primo Batiti, o antecessor, estava cansado e queria ter mais tempo com a família após oito anos na posição. O jovem cacique ficou um ano e meio sob observação, antes de ser “efetivado” no posto. Ele admitiu ter ficado inseguro, mas encarou a responsabilidade. André só não contava que a situação do território se agravaria tão rapidamente, justo no início de sua trajetória à frente dos caripunas. Dos 153.350 hectares que compreendem a TI Karipuna, 10.463 estão desmatados. O número é quatro vezes maior do que indicam os dados oficiais, que não são divulgados pelo governo desde 2014. As informações atualizadas foram obtidas pela equipe de geoprocessamento da ONG Greenpeace, que sobrevoou a região e utilizou imagens de dois satélites. Mais de 80% da área atingida foi degradada entre 2015 e 2018.

Em outubro do ano passado, o cacique viajou com representantes da ONG e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para Genebra, na Suíça, onde denunciou, na sede da ONU, a situação vivida por seu povo a representantes de cerca de 100 países. “Não temos paz em nossa própria terra. Se o Estado brasileiro não proteger nosso território, os invasores podem nos exterminar para se apropriar dele, porque ele é grande e tem muita riqueza”, afirmou André durante o evento. Da viagem à Europa, a primeira de avião, a lembrança imediata é do aeroporto. “Eles ficaram com todos os meus produtos de cabelo”, contou, genuinamente frustrado. Passada a experiência “traumática”, André cortou os cabelos, que iam até a cintura, ao retornar à aldeia. A mudança deixou sua aparência menos jovial. O rosto ainda é de menino, assim como o jeito brincalhão, mas a impressão mudou bruscamente quando conversamos na mata, sob a estrutura de um acampamento de invasores incendiado pelos caripunas após os indígenas expulsarem um grupo de quatro homens que almoçavam no local.

“Eles pediram para terminar de comer, mas dissemos para irem logo embora, pois esta terra tem dono”, relatou André, ao lado da espingarda que usa para caçar, encostada em uma pedra. “Demos tempo para eles arrumarem as coisas e irem embora. Enquanto fugiam, disseram que tinha mais 50 vindo. Olha ali o que deixaram”, apontou o cacique, indicando duas correntes de motosserra abandonadas no local.

A invasão da Terra Indígena Karipuna é o retrato do processo de destruição e grilagem que vem se intensificando na Amazônia. O bioma concentra a quase totalidade de terras públicas no território brasileiro, razão pela qual desperta a ganância dos setores extrativistas. Valendo-se do frágil poder de fiscalização do Estado, empresas madeireiras abrem o caminho da destruição, “limpando” o território para a atividade agropecuária. O processo é comandado pela grilagem, que utiliza centenas de pequenos produtores como instrumento para criar uma demanda social pela concessão de títulos de posse das terras.

As invasões de terras são orquestradas por associações criadas com essa finalidade. Em suas sedes, exibem o CNPJ com destaque. O principal grupo a atuar na região é a Associação dos Produtores Rurais Boa Esperança, que prometeu a legalização de lotes de 50 hectares para quase 500 famílias de agricultores. “Vamos transformar 72 mil hectares da Karipuna em 80 mil hectares da Boa Esperança”, afirmou Ediney Holanda Santos em reunião com os agricultores. Ele é representante da empresa Amazon Gel e fala em nome da associação com os “parceleiros”, como são chamados os compradores das terras. Pelo serviço de regularização dos terrenos localizados na terra indígena, a Boa Esperança cobra R$ 4.800, a serem pagos em dois anos. Ouvido pela reportagem, Santos disse que os colonos só pagaram R$ 200 de sinal até agora. O restante será cobrado após a prometida legalização da terra.

“Rondônia vive da agropecuária, é uma realidade. Colocamos o agricultor ali dentro com o compromisso de preservar 50% do lote. Eu luto por isso. Se deixar para o governo fiscalizar, aquilo vai desaparecer em alguns anos”, defendeu-se Santos. Os valores informados por ele indicam que só o adiantamento rende até R$ 100 mil ao grupo, que mantém atividades em outros municípios de Rondônia. Caso obtenham sucesso na estratégia criminosa, podem receber, ao todo, R$ 2,4 milhões. “É o modus operandi para invadir áreas protegidas há mais de três décadas em Rondônia”, disse a freira Laura Vicuña, missionária do Cimi em Rondônia. “Mas nunca conseguiram a redução de uma terra indígena homologada. Se fizerem isso na Karipuna, será aberto um precedente perigosíssimo para todas as áreas demarcadas do Brasil. Vale lembrar que há 15 povos isolados em Rondônia. Eles podem ser exterminados sem que a gente chegue a conhecer suas culturas milenares.”

Para legitimar a invasão, a Boa Esperança difama lideranças caripunas e repassa informações inverídicas sobre os limites do território. Aos colonos, a associação afirma ter contatos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e menciona as prerrogativas do programa Terra Legal. Criado em 2009 para acelerar a regularização fundiária, o programa previa a legalização de terras com até 500 hectares. Quando o projeto chegou ao Congresso, o texto foi mudado e criou-se um novo limite de 1.500 hectares, que seria estendido para 2.500 após a edição de uma medida provisória por Michel Temer, em dezembro de 2016.

“A regularização fundiária, que foi pensada para os lavradores familiares, virou a maior política de grilagem legal de terras na Amazônia”, criticou o geógrafo Ricardo Gilson, professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir). Ele lembrou que os terrenos ocupados pela agricultura familiar não costumam passar de 20 hectares, pela falta de capital de investimento para trabalhar uma extensão maior de terra. Em Rondônia, 82% das propriedades tem até 100 hectares. “O agronegócio se apropriou dessa política para a grande propriedade. No sul do estado, uma mesma pessoa tem sete propriedades de 2.500 hectares. Há terras que podem ser legalizadas, e isso tem um valor de mercado muito grande. Se uma terra ilegal de 5 mil hectares vale R$ 1 milhão, poderá valer R$ 5 milhões quando legalizada”, afirmou.

O Laboratório de Gestão do Território, coordenado por Gilson na Unir, vem se debruçando sobre as dinâmicas territoriais em curso em Rondônia. O grupo detectou que os pequenos agricultores que compram as terras prometidas pelas associações de produtores são provenientes da expansão da soja no sul do estado. “Onde o agronegócio se expande, há saída da população do campo. Alguns vão para a cidade, e parte busca novas áreas rurais. Foi o que aconteceu no sul-sudeste do Amazonas e nos arredores de Porto Velho, que era um tapete verde há 20 anos”, disse. O processo descrito pelo geógrafo não afeta somente os povos originários, mas também as áreas de proteção ambiental. Na Reserva Extrativista (Resex) Estadual Jaci-Paraná, contígua à TI Karipuna, 49% da floresta foi destruída para a construção de fazendas. O governo de Rondônia estima que 100 mil cabeças de gado sejam criadas ilegalmente no local.

A região também abriga a TI Uru-Eu-Wau-Wau, bem maior do que a Karipuna, com 1,9 milhão de hectares, onde vivem 150 indígenas. Ali, as invasões vêm acontecendo de forma recorrente desde o ano passado, com mobilizações bem-sucedidas para expulsar os ocupantes ilegais da terra. Neste ano, porém, as ações se intensificaram. Em janeiro, uma placa da Funai que marca o limite da reserva foi cravada de balas. No mês seguinte, o presidente da Funai, Franklimberg de Freitas, visitou a comunidade. Além de monitorar de perto a situação, ele queria levar um recado. Em diversos vídeos que circulam na internet, representantes das associações de produtores rurais garantem aos ocupantes da terra contar com o apoio do presidente Jair Bolsonaro para a regularização das propriedades. “Alguns posseiros fizeram esses comentários, de que o presidente estaria apoiando invasões. Isso é boato. É falso. O presidente não tem interesse em qualquer ação nesse sentido. Estivemos na (TI) Uru-Eu-Wau-Wau para dizer que isso não é verdade e que o Estado brasileiro dará uma resposta para quem está invadindo terra indígena ou pensando em invadir terra indígena”, afirmou Freitas ao colunista de ÉPOCA Guilherme Amado na ocasião.

Apesar da garantia de Freitas, indigenistas e ambientalistas apontam a intensificação das invasões no governo Bolsonaro. Segundo eles, as manifestações do presidente contra a demarcação de terras e contra os “excessos” da fiscalização ambiental serviram de incentivo aos grupos criminosos. Um levantamento do Cimi estima que as invasões a terras indígenas tenham aumentado 150% desde a eleição do presidente. Na noite da vitória eleitoral, um posto de saúde e uma escola nas terras pancararus, em Pernambuco, foram atacados com bombas incendiárias. Em Mato Grosso do Sul, comboios de agricultores dispararam contra a comunidade guarani-caiouá. “Há uma leitura política de que é o momento certo para fazer essas invasões, pois há certeza de que o governo federal não vai proteger os grupos vulneráveis”, afirmou Ricardo Gilson.

O procurador-chefe do Ministério Público Federal em Rondônia, Daniel Lôbo, lamentou a pouca atenção dada pelo Estado ao crime ambiental organizado. Ele lembrou que a Delegacia de Crimes Ambientais em Rondônia, que tem uma das maiores taxas de desmatamento do país, passou todo o ano de 2018 sem delegado. “Assim como o tráfico de drogas e a corrupção, o crime ambiental é extremamente lucrativo. Mas, ao contrário das outras duas atividades, tem resposta inefetiva. Há pouquíssima estrutura para órgãos de persecução penal”, disse. “A Polícia Federal tem uma quantidade de delegados e agentes reduzida, e o MPF está acorrentado pela Emenda Constitucional 95, que reduz o ingresso de membros. No caso dos órgãos ambientais, falta estrutura e direcionamento específico para o crime ambiental praticado por organizações criminosas.”

Os grupos envolvidos nas atividades ilícitas têm a seu favor o sucateamento dos órgãos de controle. Neste ano, o Ibama está operando com menos de metade de seu efetivo total, de 5.642 funcionários. A autarquia é um dos alvos prediletos do presidente da República, assim como a Funai, cujo poder de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas foi transferido para o Ministério da Agricultura, comandado pela líder ruralista Tereza Cristina (DEM-MS). Em fevereiro, Bolsonaro editou um decreto que contingenciou em 90% o orçamento da Funai.

Em decisão favorável a um pedido do Ministério Público Federal de Rondônia, a Justiça Federal determinou, em junho do ano passado, que Funai, União e o governo de Rondônia apresentassem, em 30 dias, um plano de ação continuada de proteção da TI Karipuna. A ação deveria ser compartilhada por Forças Armadas, Polícia Militar Ambiental, Polícia Militar, Secretaria de Meio Ambiente (Sedam) e Funai, com o mínimo de 15 pessoas, durante pelo menos dez dias por mês. A resposta continuada não ocorreu como previsto, mas houve efetividade parcial. A Funai realizou ações com o Batalhão de Polícia Ambiental (BPA), destinando recursos para o pagamento de diárias dos policiais. Além disso, a PF e o Exército realizaram operações que chegaram a envolver 170 agentes. Eles encontraram de 10 a 15 estradas abertas na mata, destruíram equipamentos agrícolas e de radiodifusão, motocicletas e acampamentos utilizados pelos invasores. Também foram apreendidas espingardas e motosserras. Apesar do sucesso das ações pontuais, a garantia de vigilância na terra indígena sofreu um baque no fim do ano passado. A Funai suspendeu o pagamento de diárias a funcionários de outros órgãos, por considerar a transferência de recursos indevida. Com isso, a ação continuada feita em parceria com o BPA foi inviabilizada. Após o MPF contestar a interpretação, a Justiça determinou que a autarquia execute os pagamentos das diárias. A decisão vem sendo cumprida, mas a Funai entrou com recurso alegando dificuldades orçamentárias.

A negligência do Estado com os caripunas preocupa o Ministério Público Federal. “Acho que se pode falar em uma pretensão de genocídio do povo caripuna, com o objetivo de invadir a TI, tirar os índios e ocupar a área”, avaliou o procurador Daniel Lôbo. “E os madeireiros e grileiros têm armas e, muitas vezes, são violentos. Então, pode haver genocídio, morte.” Com cerca de 30 pessoas vivendo na aldeia, as possibilidades de defesa são muito reduzidas. O cacique André representa uma exceção no grupo, composto sobretudo de crianças e idosos. As características demográficas do povo contam a história da comunidade, que escapou por um triz do extermínio nos anos 70. Naquela altura, os caripunas eram um povo isolado composto de 100 a 200 pessoas. Eles viviam de forma nômade e se dividiam em três grupos. Na esteira do processo de colonização de Rondônia nos anos 60, a Funai entendeu que havia uma situação de grave risco para a comunidade, devido à presença de garimpeiros e seringueiros no território. Na época, ainda não havia sido implementada a abordagem que vigora hoje em relação aos povos isolados, que consiste em evitar o contato e somente documentar vestígios que comprovem a existência desses grupos. Estabelecida a relação com a comunidade, a Funai transferiu os indígenas para a área que ocupam até hoje, na beira do Rio Jaci-Paraná. A estratégia de proteção se revelaria cruel. A interação dos caripunas com os brancos trouxe doenças desconhecidas, e seus corpos não resistiram. Sobraram apenas sete, sendo quatro adultos.

Por: João Pedro Soares
Fonte: Agência Andante/
Revista Época

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