A região da Serra da Lua, território tradicional dos indígenas da etnia Wapichana, é uma das mais longínquas do país: fica próxima da fronteira entre o estado de Roraima e a República da Guiana. Para receber atendimento médico, o coordenador dos tuxauas e grande liderança de seu povo, Clóvis Ambrósio, 73 anos, precisou viajar até a capital do estado, Boa Vista.
O atendimento básico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não era o suficiente para tratar as dores nas pernas.
Ambrósio teve uma participação muito importante na luta em defesa da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foi um dos coordenadores do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ele também trabalhou por mais de 40 anos na área da saúde indígena. Recentemente passou dois meses internado no Hospital Geral de Roraima (HGR) na capital. Mas concluiu o tratamento quando se consultou com o pajé Wapichana.
O atendimento que deveria ser diferenciado, que é um direito dos povos indígenas, não foi encontrado pela liderança no hospital. “Chegamos aqui e não há profissionais que entendam nossa realidade ou fale as línguas maternas dos índios, pois há alguns que não falam português. Nunca houve essa preocupação por parte da gestão estadual de treinar as pessoas para nos respeitarem como somos. Cada população tem a sua particularidade e isso deve ser respeitado”, pontuou Clóvis Ambrósio. Ele foi presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Leste de Roraima por mais de dez anos.
O Ministério da Saúde diz que, em Roraima, há dois Distritos de Saúde Especial Indígena. O DSEI Yanomami tem 770 profissionais para atender mais de 25 mil indígenas de duas etnias em 323 aldeias. Já o DSEI Leste conta com 1064 profissionais, atendendo mais de 53 mil indígenas de sete etnias em 323 aldeias.
Ainda conforme o ministério, a estrutura do DSEI conta com assistentes sociais, médicos, psicólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, técnicos em laboratório e dentistas e trabalha com saúde do idoso, saúde da criança, pré-natal, partos e demais programas de atenção básica, inclusive durante a noite.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão subordinado ao Ministério da Saúde, afirma que realiza operações especiais para reforçar o atendimentos nos DSEI´s. A mais recente foi a “Sesai em Ação”, dividida em seis edições e cuja terceira esteve em abril no município de Normandia, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Pelo menos 700 pacientes tiveram consultas (principalmente com oftalmologistas e dentistas) e imunizações, diz a secretaria.
Clóvis Ambrósio enumerou que as doenças mais comuns entre os indígenas em Roraima são a diabetes adquirida e a hipertensão “devido a muito consumo de sal e refrigerante”. Ele explica: “a diarreia nem tanto, a gripe e a malária aparecem, mas estão controladas. A medicina tradicional, por meio de plantas recomendadas pelos pajés, ainda é muito popular dentro das terras. Quando podemos tratar as doenças assim, tratamos”.
Em 2017, segundo o Ministério da Saúde, no DSEI Leste foram bem frequentes as doenças relacionadas às costas e à espinha dorsal (dorsopatias) e parasitas intestinais (helmintíases). No DSEI Yanomami, as doenças mais comuns são infecções agudas no nariz, faringe e laringe, doenças infecciosas no intestino, gripe e pneumonia.
Os procedimentos de média e alta complexidade não são competências da Secretaria, que é regida diretamente pelo Ministério da Saúde. Eles são levados para o HGR, que dispõe de um espaço de acolhimento próprio para eles: a Coordenação de Saúde Indígena.
Na prática, Clóvis Ambrósio diz que a infraestrutura do prédio do HGR, que é o que mais recebe pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o estado de Roraima (e até dos países vizinhos Venezuela e Guiana), não comporta a quantidade de pessoas que chega. “É comum vê-las deitadas em colchões pelos corredores”, diz.
A Secretaria Estadual de Saúde (Sesau-RR), que administra o hospital, respondeu à reportagem dizendo: desde maio de 2017 há sete intérpretes divididos em três turnos, falando as línguas Yanomami, Taurepang, Yekuana, Macuxi e Sanomã. Há ainda 11 técnicos em enfermagem falando as línguas Yanomami, Sanomã e Patamona. A Sesai disse ainda que tem qualificado seus profissionais.
Segundo Ambrósio, as condições em que chegam os medicamentos são outro problema enfrentado pelos indígenas, apesar de o Ministério da Saúde afirmar que não distribui materiais vencidos e que faz verificação rotineira a respeito disso “para que haja o recolhimento em tempo hábil em caso de possível vencimento de material médico e medicamentos”.
“Quando eles [os medicamentos] são enviados das farmácias até os nossos confins, o prazo de validade deles já está bem curto, mesmo assim há profissionais que nos dizem que tomá-los não nos fará mal. Isso é crime”, revela Clóvis Ambrósio. “À vezes chegam até com os selos de rastreabilidade raspados”, concluiu a liderança.
Os medicamentos mais pedidos pelo DSEI Leste para tratamentos dos povos indígenas são Sulfato Ferroso, Ibuprofeno e Dipirona Sódica, enquanto o DSEI Yanomami pede bastante os dois últimos e a medicação Paracetamol.
Há terras indígenas que são de difícil acesso. É o caso das Serras (Raposa, Alto e Médio São Marcos); onde se chega apenas de avião ou embarcação. Em cerca de 98% das aldeias Yanomami o acesso é só possível de avião, em viagens que podem durar até três horas. “Se falta voo para lá, não têm como serem atendidos, só pelo agente de saúde que já mora lá, com os remédios que dispõe”, disse Ambrósio.
Com o fim do programa Mais Médicos pelo Governo Federal, que havia inserido médicos de Cuba principalmente em áreas mais remotas dos centros urbanos, doze deles precisaram abandonar os postos. Segundo o Ministério da Saúde, todas as vagas já foram preenchidas por meio de seletivo no início de 2019. Estão no DSEI Leste hoje 23 médicos, 17 do programa. No lado Yanomami, 13 dos 16 médicos são do programa.
O comentário de Clóvis Ambrósio difere um pouco do que o Ministério da Saúde diz. “Eram poucos cubanos no DSEI Leste, mas a saída deles causou um certo impacto. Fizeram um seletivo para a Sesai no início deste ano para substituí-los por médicos brasileiros e a maior parte dos aprovados não quis ficar por causa do vínculo exclusivo que eles precisam ter com a Secretaria mesmo nos dias em que estão em área urbana”.
“Queremos ter coordenadores que conheçam nossa diversidade”, disse Clóvis Ambrósio. Ele deu a declaração para a agência Amazônia Real após o ato que marcou os dez dias do Acampamento Terra Livre (ATL) em Boa Vista, na tarde do dia 2 de maio.
Irani Barbosa, uma das representantes do povo Macuxi, disse que além de problemas no atendimento e na medicação, os DSEI´s enfrentam dificuldades nos transportes, nos recursos humanos e na infraestrutura dos postos de saúde. “É importante que nossos indígenas diplomados sejam absorvidos, para que prestem serviços dentro dos DSEI´s”, sugeriu ela.
Ocupação do DSEI Leste
Durante o ATL de Boa Vista, entre os dias 23 a 27 de abril, lideranças das nove etnias de Roraima – Macuxi, Wapichana, Patamona, Ingarikó, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami, Sapará e Ye´kuana – se reuniram em frente à sede do DSEI Leste, no bairro dos Estados. Em um documento assinado por eles e endereçado ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Madetta e à titular da Secretária Especial de Saúde Indígena, Silvia Nobre Waiãpi, eles pediam a indicação do médico Paulo Daniel da Silva Morais para assumir a coordenação do órgão.
O cargo estava sendo ocupado por Armando Neto. Mas esta semana o ministro da saúde o exonerou e nomeou o médico Victor Paracat. Ele, que é formado em medicina em 2013, trabalhou no setor de trauma e ortopedia do Hospital Geral de Roraima (HGR) e já havia sido indicado pelo governo para ocupar o cargo. Mesmo assim as lideranças protestaram no ATL contra a nomeação de Paracat.
Para as lideranças, a nomeação de Paracat feriu a obrigação estatal de consultar os povos tradicionais a respeito de decisões que possam afetar seus bens e direitos, conforme previsto pela Convenção 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Após o governo nomear Victor Paracat, o Movimento Indígena de Roraima, representado por mais de 300 pessoas, ocupou o prédio do Dsei Leste por cinco dias, saindo no último 22 de maio. O novo coordenador concedeu uma entrevista à imprensa dizendo que as lideranças tinham o aceitado no cargo, mas que pediram a substituição de alguns servidores, dentre eles, pessoas da União. A reivindicação dos indígenas será levada ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União.
O coordenador Victor Paracat disse ainda que nos cinco dias de ocupação alguns trabalhos do DSEI Leste, como o transporte, o atendimento e o setor de orçamento e pagamentos, tiveram seu desempenho comprometido pelo protesto das lideranças. “Agora, a tarefa do DSEI será a de analisar os problemas existentes que sejam mais urgentes”, disse Paracat.
Ameaças e resistências
O ano de 2019 começou com várias ameaças aos povos tradicionais pelo governo do presidente Jair Bolsonaro: a Medida Provisória 870, que transferiu a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; e a demarcação de terras indígenas, regida pelo Ministério da Justiça, passaria para o da Agricultura
Outro anúncio que abalou os indígenas foi a decisão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em fevereiro, de municipalizar ações da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai).
Mas durante o ATL, em Brasília, o ministro Mandetta recuou da decisão de municipalizar a saúde indígena atendendo um pleito das lideranças.
Com relação a MP 870, as lideranças do ATL cobraram o apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Agora em maio, através da votação, os deputados decidiram manter Funai no Ministério da Justiça, mas a MP ainda vai passar pelo crivo do Senado.
O que diz o Ministério da Saúde?
O Ministério da Saúde, em Brasília, informou para a agência Amazônia Real que a Sesai vai permanecer com a atenção básica indígena, graças a um acordo entre o Ministério e as lideranças indígenas no dia 28 de março. Um Grupo de Trabalho será criado para que sejam fiscalizados os recursos e se discuta o andamento da assistência de saúde.
No país inteiro, ainda de acordo com o órgão, são mais de 700 mil indígenas em 5,3 mil aldeias atendidos pelos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. São 345 polos bases, 67 Casas de Saúde Indígena (Casai), 23 Casas de Passagem para Famílias Indígenas (Capai) e 899 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI).
“Os recursos federais destinados à assistência à saúde indígena para o aprimoramento da qualidade de vida dessa população têm sido crescentes nos últimos anos: de R$ 431,5 milhões em 2011, esses recursos saltaram para R$ 1,4 bilhão em 2019”, respondeu a assessoria em nota.
Procurada pela agência Amazônia Real a respeito do atendimento para os povos indígenas e a medicação vencida, a Sesai não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.
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