Ao visitar a aldeia Halaitakwa, do povo Enawene-Nawe, em Mato Grosso, é comum ser abordado por muitos indígenas da etnia com perguntas das mais variadas sobre o convidado. Não demora muito e, orgulhosamente, os anfitriões começam a ensinar sua língua, da família Aruak, para o visitante.
Apesar da complexidade evidente testemunhada por quem, sem possuir fluência no idioma, observa um diálogo dos Enawene, eles insistem que sua linguagem é facinha.
A língua não tem nada de simplória. É o que afirma a antropóloga e indigenista da Funai, Juliana Almeida. “Os Enawene criaram uma língua franca para ensinar aos visitantes, uma espécie de versão ‘soft’ do idioma. O Aruak, no geral, estabelece suas orações a partir de várias partículas que vão se somando para criar sentidos. Há muitas contrações na formação das frases, o que costuma ser complicado para quem olha de fora. Um exemplo: noxinakaha (eu estou falando). Quando eles ensinam a alguém, costumam pontuar as palavras: nato (eu), xinakaha (falar). É uma forma que eles acharam de adaptar para o estrangeiro”, ilustra.
Assim como receber bem seus visitantes, o canto Enawene é uma das suas mais fortes tradições e está intimamente ligado à questão linguística para o povo, consolidando-se dessa forma como uma verdadeira instituição. Os cantos relacionam-se com os mitos e rituais estabelecendo o elo entre esses aspectos, e raras são as ocasiões em que uma mesma canção se repete, denotando o caráter dinâmico dessas interações.
Por ser um povo formado a partir da aglutinação de diferentes grupos, alguns mais próximos culturalmente e outros não, o mestre de cantos, ou Sotakatali, possui distinção social e é considerado como sujeito de maior conhecimento da língua, já que os descendentes dos Enawene originais colocaram como condição de pactuação com essas comunidades que se associavam a necessidade de aprendizado da língua que eles dominavam. A consequência disso é que os provenientes dessa linhagem mais antiga protagonizam as relações sociais voltadas à oratória e à retórica, como os rituais e a politíca interna, o que consolida a língua como um componente ainda mais vital nessa comunidade.
“A performance da oralidade para os Enawene é muito importante. Saber falar bonito. A memorização dos cantos é muito valorizada. Ter um amplo vocabulário é um critério de distinção social. Memorizar os cantos e a sequência que são entoados é algo muito valorizado pelo povo. A língua se sobrepõe nas suas vivências. Pode parecer uma prática de dominação cultural, mas, no contexto dessa comunidade, tem muito mais a ver com um acordo de sociabilidade. A própria autodefinição Enawene remete a isso. Um povo que é múltiplo, aqueles que vivem juntos. A língua e os rituais são os principais elos desse povo proveniente de diversas origens”, afirma a antropóloga.
Escrita entre os Enawene
A palavra daraiti traduz a escrita alfabética entre os Enawene. Inserida no cotidiano em 1995, convive com outras formas tradicionais de linguagem. Suas tradições, inclusive, explicam através de um mito a obtenção da própria escrita. Segundo eles, o dono do daraiti era Hiriniwaxiwiri, um enorenawe (ser sobrenatural). Os Enawene fizeram uma armadilha para aprisionar essa entidade e, através de uma série de dinâmicas, que envolve também as práticas de cestaria, obtiveram seu conhecimento. Para eles, a escrita são desenhos que transmitem informações.
Como define a pesquisadora Katia Silene Zorthêa, que produziu trabalhos sobre a etnia, escrever alfabeticamente uma língua com tradições orais parece uma coisa fácil, mas não é. Para alcançar a escrita não basta possuir uma linguagem, é preciso certo grau de reflexão sobre ela. Diferentemente de modelos herméticos aplicados na educação ocidental, a experiência da escrita entre esse povo se deu sem a instituição da escola e se pautou em usos e práticas determinadas pelos interesses da coletividade e conforme suas necessidades, pautados numa grafia própria identificada com sua língua materna.
“Grafar a língua materna tem como uma de suas finalidades primordiais criar uma conexão com a exterioridade. Uma das marcas dos Enawene é sua grande produção de documentos que, em geral, solicitam pleitos ao Estado. É uma dinâmica muito forte de marcar suas posições, já que eles escrevem esses documentos na própria língua e alguém anexa uma tradução. Mas eles fazem questão de mandar o documento original em sua própria língua”, elucida Juliana.
Zorthêa ainda explica que as dinâmicas desse processo de inclusão da escrita foram determinadas pelos interessados, a partir dos referenciais próprios de cada indivíduo em particular. Não cabia nesse contexto, portanto, aprisionar a alfabetização a tempo ou a espaço institucionalizado. A criatividade pautou esse processo. Para esse povo, o saber da escrita não se deu de forma tirânica e não foi elitizado, ainda que disseminado por grupos específicos do povo. Nas suas idiossincrasias, a escrita não precisa ser universal, tampouco restritiva. O conteúdo do saber é aberto a quem dele deseja ter acesso.
Vagner Campos
FONTE: FUNAI
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