No início deste mês, pajés, rezadores, raizeiros e parteiras participaram de um encontro com agentes de saúde na aldeia Ipavu-Kamayurá, na Terra Indígena Parque do Xingu-MT. Durante os dias 5 a 8 de abril, o evento, que contou com a participação de diversos povos indígenas e parceiros, promoveu o compartilhamento de informações entre cuidadores, acordos entre pajés e agentes de saúde indígena e o fortalecimento do papel social, político e cultural dos pajés.

Encontro reuniu Encontro reuniu pajés, parteiras, rezadores, raizeiros, Funai, Sesai e parceiros. Foto: Andrezza Faria

Kumaré Txicão, coordenador regional do Xingu, representou a Funai durante o encontro ao lado de representantes da Coordenação Técnica Local Gaúcha do Norte I e da Coordenação de Acompanhamento de Saúde Indígena (Coasi/CGPDS). Txicão destacou a importância da troca de experiências entre pajés, parteiras e profissionais da saúde e do trabalho sintonizado e respeitoso entre as diferentes esferas. “A saúde indígena não pode prejudicar o trabalho do pajé e da parteira”, alertou o coordenador.

Cecilia Piva, coordenadora de Acompanhamento de Saúde Indígena, da Coordenação-Geral de Promoção dos Direitos Sociais (Coasi/CGPDS) da Funai, comentou com os participantes sobre o papel da Funai no acompanhamento e monitoramento da saúde dos povos indígenas. “Estamos elaborando uma instrução normativa para que possamos ter clareza do nosso papel. Estamos partindo de uma visão ampliada, com base nos Determinantes Sociais de Saúde. Dividimos nossas ações em eixos de atuação e um deles é o apoio e valorização das formas próprias de promoção e produção de saúde dos povos indígenas. Outro eixo é a garantia de direitos e a autonomia de decisão, pois sabemos que este é um campo onde os direitos ainda precisam de grande proteção. Embora a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena tenha como diretriz maior o atendimento diferenciado, sabemos que são recorrentes os casos em que os direitos dos povos indígenas a um atendimento que respeite as diversas culturas são violados”, declara.

Diferentes e complementares   

Rezadores, pajés e parteiras trabalham juntos. Cada um tem uma função diferente. Os cantos e as rezas também possuem funções e objetivos diferentes. O papel da parteira, por exemplo, é fundamental para a mulher não se machucar e não sofrer tanto. A parteira dá as orientações. Depois do parto, existem rituais e práticas a serem feitas, como a ingestão de chás específicos.

Vários relatos de parteiras e mulheres destacaram a importância da mãe não precisar ir à cidade para ganhar o bebê (antigamente 90 % dos partos eram nas aldeias. Hoje o dado se inverteu. 90% dos partos acontecem na cidade). Para que isso aconteça, no entanto, é preciso apoio da equipe de saúde indígena e conscientização dos profissionais a fim de que essa prática seja valorizada. Para a parteira Yapikaru Kamayurá “é importante que os gestores da saúde indígenas conheçam o trabalho das parteiras. Quando a moça ganha o bebê na cidade, ela não toma raiz, não fica de repouso e come qualquer alimento”.

No encontro, foram muitos os relatos dos casos de violação de direitos, como a discriminação do trabalho de pajés e parteiras por profissionais da saúde, a pressão para que tratamentos e partos sejam feitos na cidade, e maus tratos em hospitais durante os partos. Outra violação que foi relatada foi a presença de instituições religiosas dentro da Terra Indígena e a proibição que estas fazem na expressão da cultura e das práticas da medicina tradicional.

Valorização de pajés

Idealizadores do Encontro, a pajé e parteira Mapulu Kamayurá e o cacique Kotok Kamayurá falaram aos presentes sobre a importância do evento para os Povos Indígenas do Xingu e para o fortalecimento do trabalho dos cuidadores tradicionais.

Quanto ao trabalho dos pajés, o cacique Kotok Kamayurá esclarece a importância desse líder espiritual na cura dos indígenas mesmo com o avanço da medicina: “Tem doenças que o médico e o enfermeiro não tratam. Tem doenças que sim. As doenças do espírito o médico não trata. São os pajés que tratam quando a doença é espiritual. E quando o paciente precisa ir para a cidade tratar, é preciso ter vaga no avião para o pajé acompanhar o paciente. E lugar para ele ficar como acompanhante no hospital, e comida especial para ele durante este tempo, pois pajé tem uma alimentação especial”.

Mapulu Kamauyrá conta que aprendeu os conhecimentos de pajelança com seu pai, o grande pajé Tacumã Kamayurá. Ela pratica a cura por meio de cantos e rezas. Seu cuidado é com a valorização, o fortalecimento e a continuidade desse trabalho. “Nossa preocupação é levar esse trabalho para frente, para sempre, para o pajé não ser esquecido e nem nossa cultura. Sou salva-vidas do Povo Kamayurá. Isso que aconteceu agora é toda minha luta”, Mapulu conta que tem muitos alunos e que elaborou uma proposta de curso de formação de pajés para jovens indígenas, para o qual precisa de apoio.

Tuiaraiup Kayabi, pajé do povo Kayabi, conta que o pajé é o médico da comunidade. “Quando o espírito adoece, a pessoa procura ajuda. E eu vou lá verificar se é espiritual mesmo. Pajé tem poder de ver as coisas. Ai prepara o serviço”. Sobre o Encontro, ele diz que “foi bom ouvir a colocação de cada povo. Como cada pajé trata, o que ele usa. Comparei as raízes que os outros usam com as raízes que eu uso”.

Saúde mental     

De acordo com a Coasi, a Funai tem promovido a metodologia do alinhamento conceitual, fortalecimento das relações interinstitucionais e facilitação de fluxos de matriciamento junto à Coordenação Regional de Manaus e a Coordenação Regional Xavante, articulando as redes de saúde mental. Andréa Prado, servidora da Coasi, compartilhou com os presentes algumas ações exitosas que a rede de saúde mental em Manaus já fez, como uma sala do pajé na Casai de Manaus e uma assembleia entre os diversos setores (usuários, gestores e servidores).

Em boa hora 

Diferentes vozes foram alçadas para falar do conceito de saúde, da cura de doenças e da maneira de lidar com momentos como o parto e algo era comum a todos os participantes: o consenso de que o Encontro de pajemen e agentes de saúde foi realizado no momento certo.

Para Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina/Unifesp, parceira e apoiadora do Encontro, o evento ocorreu em momento-chave tendo em vista a atual realidade da política pública de saúde indígena. Ao passo em que novos profissionais agregam as equipes, a orientação a maioria é voltada à biomedicina com foco na medicalização, o que acaba abafando a medicina tradicional. Sofia declara que se faz necessário somar a biomedicina com os conhecimentos tradicionais e valorizar a autonomia dos povos, considerando como eles pensam o corpo, a promoção de saúde e o cuidado.

Aline Lima, psicóloga do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xingu, conta que o “Encontro de Pajés veio em um momento muito oportuno – considerando a necessidade de valorizar o Subsistema (Sasi-SUS) e de dar visibilidade sobre a atenção diferenciada – quando se é criado espaço em que os professores são pajés, raizeiros, parteiras, cantores e que seus conhecimentos ancestrais vão de encontro à essência da saúde indígena para depois construirmos juntos um caminho possível para que as duas medicinas aconteçam em conjunto. Para o Dsei Xingu, é um momento único, no qual os profissionais presentes saíram qualificados para atuarem em contexto intercultural. Acredito que os encaminhamentos representam a preocupação dos cuidadores tradicionais em relação ao fazer saúde e só os ouvindo e trocando podemos progredir juntos em prol da saúde indígena dos povos do Xingu”.

Cecília Reigada Piva (Coasi/CGPDS) e Assessoria de Comunicação

FONTE: FUNAI