O Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas sinalizou que vai entrar na Justiça contra a medida do governo de Jair Bolsonaro (PSL) que, na prática, autoriza a construção da linha de transmissão de energia que liga Manaus a Boa Vista, rasgando a terra indígena dos Waimiri-Atroari, sem necessidade de consulta aos indígenas.
Nesta quinta-feira (28), um dia após os Waimiri-Atroari terem denunciado, em uma audiência judicial, os ataques e violências que sofreram nos anos 1970 durante a construção da BR-174, no período da ditadura militar, Bolsonaro assinou decreto reconhecendo o Linhão de Tucuruí, como é conhecido, como de interesse da Política de Defesa Nacional.
Na quinta-feira (27), o Ministério de Minas e Energia soltou nota caracterizado o Linhão como Alternativa Energética Estratégica para soberania e Defesa Nacional.
“Essa decisão distorce o processo de consulta. A gente também questiona a justificativa de que a obra é uma emergência, sendo que vai levar dois ou três anos para ser concluída”, afirmou à Amazônia Real, o procurador da República Fernando Soave Merloto, do MPF no Amazonas. “Por que não fazer um projeto de energia solar, que é mais rápido? O potencial de energia solar em Roraima é muito alto. São várias questões que precisam ser colocadas.”
Segundo o Programa Waimiri Atroari, os Kinja (como se auto denominam os indígenas), resolveram não se manifestar em relação à decisão do governo, pois oficialmente não foram comunicados e por isso preferem não falar neste momento.
O plano do governo é iniciar as obras ainda no terceiro trimestre deste ano. O linhão tem 715 quilômetros de extensão, sendo que aproximadamente 120 deles atravessam (a Terra Indígena Waimiri-Atroari, localizada no norte do Amazonas, divisa com Roraima (1)
A medida retira dos indígenas a consulta livre, prevista nas diretrizes da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse direito aos Waimiri-Atroari está previsto na sentença do juiz federal Ricardo Salles, de 14 de novembro de 2017, que anulou a Licença Prévia da obra do Linhão no território indígena que havia sido concedido ao consórcio Transnorte Energia S. A. (TNE), pelo Ibama.
O MPF afirmou, em nota divulgada na noite desta quinta-feira (28), que está acompanhando “atentamente os fatos e as movimentações” sobre o Linhão. “O órgão vê com muita preocupação a manifestação do Conselho de Defesa Nacional e a tentativa de aceleração da obra sem qualquer tentativa de diálogo com os diversos atores envolvidos, notadamente os indígenas da etnia Waimiri-Atroari”, adverte.
A preocupação do MPF é que a escolha do traçado do linhão, que correrá em paralelo à BR-174, foi feita sem a análise de alternativas locacionais, e desconsiderou “o componente indígena”. Para o órgão, “essa definição arbitrária motivou o questionamento da validade do leilão da linha de transmissão, uma vez que o empreendimento foi idealizado de forma viciada, mediante avaliação meramente econômica, que desconsiderou os diversos aspectos socioambientais da região.”
Nesta sexta-feira (o1), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) divulgou nota de repúdio ao decreto e manifestando apoio aos Waimiri-Atroari. Conforme a Coiab, com a medida, o governo federal “busca re-editar as práticas criminosas de esbulho e extermínio cometidas contra os nossos povos, especificamente contra os Kinja, durante o regime militar, quando helicópteros que sobrevoaram as aldeias na época derramaram veneno e detonaram explosivos sobre centenas de indígenas reunidos e com ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas praticadas por militares contra indígenas”.
“Mais uma vez configura-se no país um estado de exceção, onde os povos indígenas continuam sendo considerados um empecilho ao desenvolvimento do país e em nome da soberania tem que ser ignorados ou eliminados e fadados a morreram, pois como naqueles tempos das décadas de 60 e 70”, diz. (leia a nota completa).
A questão da ‘soberania nacional’
O presidente Jair Bolsonaro vai recorrer à mesma estratégia adotada pelo antecessor, o ex-presidente Michel Temer (PMDB), que alterou as chamadas “condicionantes” na avaliação dos processos de demarcação de terras indígenas, com base em parecer da Advocacia-Geral da União. Ao decidir que o Linhão de Tucuruí é uma questão de “soberania nacional”, o atual governo informa que vai aplicar a salvaguarda “V” (cinco), imposta pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa salvaguarda diz o seguinte: “O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas, ou à Funai.”
A definição de 19 condicionantes foi estabelecida pelo STF no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (PET 3.388/RR). Mas para especialistas do Direito, as condicionantes devem valer apenas para o julgamento da Raposa Serra do Sol.
Em 2013, durante julgamento de um recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR), o plenário do STF manteve a validade das 19 salvaguardas adotadas no processo que decidiu pela manutenção da demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol, mas afirmou que elas não têm efeito vinculante, não podendo se estendendo a outros litígios que envolvam terras indígenas.
Na nota divulgada ontem, o MPF é duro nas críticas aos sucessivos governos no trato com a questão indígena. “Vale ressaltar, por fim, que os Waimiri-Atroari sempre estiveram dispostos ao diálogo aberto e informado sobre a obra em questão e que o procedimento apenas não avançou até hoje em face da resistência do governo brasileiro em respeitar as leis nacionais e internacionais que assumiu o dever de cumprir”, conclui a nota.
Pressionados por todos os lados
Há quase cinco anos, os indígenas Waimiri-Atroari enfrentam intensas pressões para aceitar o Linhão, desde que o licenciamento foi aprovado, ainda na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Parlamentares, empresários e até pela empresa Eletronorte, que mantém um programa de apoio aos indígenas, chamado de Programa Waimiri-Atroari, também fazem parte dessa frente de pressão.
Em 2018, deputados federais também se utilizaram de manobras, como a inclusão de emendas [conhecidas como “jabutis” na Medida Provisória 820, a MP dos Refugiados, com o objetivo de agilizar o processo de licenciamento ambiental do Linhão de Tucuruí.
Em novembro de 2018, o MPF ajuizou ação para impedir que a Eletronorte e a Fundação Nacional do Índio (Funai) tomem qualquer medida, no sentido de impor ou condicionar a efetivação de programa voltado ao povo Waimiri Atroari à concordância dos indígenas, com a construção do Linhão. Para o MPF, a exigência caracteriza “prática abusiva de coação”. Em decisão tomada no mês passado, a juíza Raffaela Cássia de Sousa acatou a ação.
Em defesa dos Waimiri-Atroari
Poucas vozes têm vindo a público em defesa dos Waimiri Atroari. Uma delas é a de Joênia Wapichana (REDE/RR), a primeira mulher indígena eleita deputada federal. A deputada lembrou à Amazônia Real que participou na última quarta-feira (27) de uma reunião da bancada de Roraima com Jair Bolsonaro, na qual ele mencionou que “há uma questão jurídica garantindo procedimentos de direito de consulta aos povos indígenas”. Joênia disse que que espera que o presidente cumpra esse direito dos indígenas.
“Não pode haver atropelamentos dos direitos constitucionais dos indígenas em relação à passagem de transmissão de energia do Tucuruí. Vamos ver se o governo vai respeitar ou não [o direito de consulta dos indígenas]. Tem uma decisão judicial. O governo também faz uma relação entre o ‘interesse nacional’ [para justificar o Linhão] e a decisão da Raposa Serra do Sol. Mas até mesmo essas condicionantes podem ser questionadas no Supremo. Há casos concretos que podem ser apreciados novamente”, alertou a deputada.
Para Joênia, se o governo recorrer às condicionantes do STF para autorizar a obra do Linhão, sem consulta aos indígenas, a medida pode ser levada à Justiça. “Se houver um atropelo, se querem burlar a legalidade, no sentido de não ouvir os indígenas, acho que essa decisão vai ter que ser enfrentada no Judiciário”, adiantou a deputada.
Joênia Wapichana afirmou que os povos indígenas não são contra a energia, mas não abrem mão do direito de consulta e respeito. “Eles não pediram, em nenhum momento, passagem de estrada, de linhão. É um povo que já sofreu muito. O histórico dos Waimiri-Atroari é de um povo muito sofrido, que quase foi exterminado com a [construção] rodovia, com a hidrelétrica de Balbina”, disse a deputada. “A energia em Roraima é uma necessidade, é urgente, mas temos alternativas. Não é por isso que vamos atropelar os direitos dos povos indígenas.”
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FONTE: AMAZONIAREAL.COM.BR – http://amazoniareal.com.br/mpf-vai-questionar-na-justica-decisao-que-torna-linhao-do-tucurui-questao-de-seguranca-nacional/
(1) Nota da Ecoamazônia – No texto original consta “.. localizada no norte do Amazonas, divisa com Rondônia. ..”
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