A língua é elemento fundamental da identidade de um povo e um dos mais dinâmicos. O seu uso e sua constante transformação fazem da língua elemento vivo representativo de distintos momentos históricos da vida de uma sociedade. A Unesco escolheu 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas.

Em todo o mundo, há quase 7 mil línguas.  De certo, uma imensa diversidade. No entanto, segundo os dados da Unesco, a maioria dos habitantes do planeta (97%) fala somente 4% de todas línguas conhecidas. Isso significa que 96% das quase 7 mil línguas conhecidas são faladas por apenas 3% das pessoas no mundo. Estes 3% se constituem, na maioria, de povos indígenas cujas línguas estão sob constante ameaça de extinção.

Só na Amazônia são mais de 300 línguas indígenas ameaçadas de desaparecer. Rondônia é o estado brasileiro com maior diversidade. “Essa herança está muito ameaçada, porque várias das línguas têm apenas 5, 10, 50 falantes, os últimos falantes,” segundo Hein van der Voort, linguista do Museu Paraense Emílio Goeldi. No Pará, o Museu Emílio Goeldi trabalha há mais de cinco décadas para registrar, pesquisar e preservar línguas indígenas na Amazônia e conta com acervo digital de cerca de 80 línguas. O esforço de manter as línguas vivas é exercido de forma colaborativa por pesquisadores e falantes nativos.

O Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas, a mais antiga em circulação no Brasil, tem sido canal para a divulgação de pesquisas na área. Em 2019, o periódico do Museu Goeldi publicará dois dossiês sobre linguística, resultantes de investigações desenvolvidas na área: o primeiro é intitulado “Novas perspectivas na terminologia de parentesco nas línguas Tupi e Caribe”; e, o segundo, “Partículas”. Ver proximamente em Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas (museu-goeldi.br) 

Fabrício Gãtagon Surui, biólogo do Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob de Rondônia, é ator nas investigações em parceria com o Museu: “Tive a oportunidade de trabalhar com o projeto de documentação e a linguagem do povo Surui, foi onde eu tive a oportunidade de aprender a entender a tonação das palavras. Existem umas palavras que são iguais para o povo Surui, por exemplo, assado, filho ou neto, velho. Você vai entender a diferença dessas palavras de acordo com a tonação que a gente procura entender através das pesquisas de linguística. A forma como essas palavras devem ser entendidas numa forma bem clara e através disso nós temos que preservar a linguagem que é bastante importante para a pesquisa e para o próprio povo falante da sua língua”. Em vídeo, Fabrício Gãtagon Surui fala sobre a iniciativa.

Os estudos linguísticos extrapolam em muito o campo científico, pois como explica Hein van der Voort, “A linguística possui uma tarefa fundamental de desenvolver soluções práticas para o uso escrito das línguas indígenas por seus falantes maternos, e na conscientização sobre a diversidade linguística, que faz parte do dia-a-dia em contatos interétnicos e inter-regionais”.

A colaboração de pesquisadores e falantes das línguas estudadas gera contribuições como a “Enciclopédia Digital da Língua dos Gavião e Suruí de Rondônia, com Foco na Cultura Tradicional”.  Com financiamento do Programa para a Documentação de Línguas Ameaçadas (Endangered Languages Documentation Programme/SOAS), o projeto documenta, por meio de gravações de áudio e de vídeo, a língua e a cultura tradicional dos Gavião de Rondônia e dos Suruí de Rondônia.

Já há mais de 100 tópicos documentados, principalmente em vídeo. Cada gravação contém informação sobre o conteúdo e os participantes (quem gravou, com quem, quando, qual assunto etc), e cada gravação é traduzida para o português. Veja vídeo de divulgação falado em Suruí, com legendas em português

Trajetória – Desde a década de 1960, o Museu Goeldi, em Belém, trabalha na área da pesquisa linguística, Mas foi na década de 1980,estabeleceu um Centro de Documentação de Culturas e Línguas Indígenas da Amazônia, que atua no registro e na preservação de línguas indígenas ameaçadas de desaparecer. A redução do número de indivíduos de uma determinada etnia e o fato de os mais jovens deixarem de aprender e de usar a língua ancestralsão fatores determinantes para o desaparecimento de uma língua.

Ana Vilacy Galúcio, linguista do Museu Paraense Emílio Goeldi, explica que no final dos anos de 1980 havia uma preocupação muito grande sobre a extinção das línguas indígenas. E reconstitui a trajetória: “Foi quando o Museu Goeldi começou a fomentar a ideia de desenvolver aqui o Centro de Documentação de Culturas e Línguas Indígenas da Amazônia que tinha como foco o estudo em campo, investigação em campo das línguas indígenas, com um fator preponderante de documentação, de registrar as línguas em uso, de valorizar o uso dessas línguas, e promover capacitação para que os indígenas falantes dessas línguas tivessem a formação técnica para contribuir na documentação técnica das suas próprias línguas.

E um outro fator que foi decisivo para a atuação do Museu Goeldi foi a formação de estudantes, desde o nível de graduação com uma orientação técnica específica em como desenvolver o trabalho de campo na Amazônia”. Em vídeo, o depoimento de pesquisadores Vilacy Galúcio e Hein van der Voort.  

Pesquisa/Documentação/Acervo – Um dos principais propósitos da pesquisa sobre línguas indígenas em risco de extinção está, segundo informa Hein van der Voort, “no conhecimento tanto das suas estruturas e relações históricas, quanto das suas conexões com as culturas indígenas e a história do povoamento do continente, conhecimento que emerge a partir do trabalho intensivo de descrição e documentação da língua”. Um exemplo é o de que “a distribuição das famílias e troncos (agrupamentos de famílias da mesma origem) linguísticos no mapa da América do Sul é representativa de evidência sobre as migrações dos povos, de vários milhares de anos antes da chegada dos europeus,” explica o pesquisador.

Vilacy Galúcio explica que foi a partir dos anos 2000 que se intensificou o registro e captação das línguas indígenas para fins de estudos científicos: “As línguas no Brasil, em geral, têm um número reduzido de falantes. São grupos pequenos que falam essas línguas na Amazônia. Muitas línguas têm uma quebra na transmissão, assim que as gerações mais novas não estão aprendendo, então isso as coloca em uma situação de risco de desaparecer.

E, desde a década de 80, e mais precisamente do ano 2000, a consciência da comunidade acadêmica como um todo de que as línguas do mundo todo tinham um sério risco de desaparecer, sem que a gente pudesse estudá-las e conhecê-las melhor, criou uma demanda enorme e uma ação dos pesquisadores de documentar essas línguas, de gerar dados, informações sobre as línguas em uso. Então intensificaram-se os trabalhos com gravação em áudio e vídeo, e esses projetos de documentação de forma mais sistematizada geraram um acervo enorme de dados dessas línguas”.

Os produtos gerados pelos pesquisadores incentivam e apóiam a revitalização das línguas em risco de extinção. O primeiro desafio em uma pesquisa linguística é registrar a língua falada com gravação, audição e transcrição da língua. A fonologia é também um dos primeiros aspectos observados durante o trabalho científico. Ao coletar as informações, o pesquisador também está atento às questões da morfologia e da sintaxe.

O trabalho de campo, com câmeras e gravadores gera produtos, como CDs e DVDs, que são devolvidos às comunidades, além de serem utilizados nas análises científicas. Além disso, os próprios indígenas aprendem a utilizar as tecnologias disponíveis para documentar sua cultura em treinamentos realizados com os pesquisadores nas aldeias ou em oficinas realizadas no Museu.

Por Jimena Felipe Beltrão, jornalista e atual editora científica do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, PA, Brasil; e Silvia de Souza Leão, jornalista e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA, Brasil.

Confira artigos sobre Linguística publicados na revista científica Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas em 2018:

ALVES, F. C. Sujeito dativo em Canela. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.377-403. ISSN 1981-8122. [viewed 29 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200007. Available from: http://ref.scielo.org/rsjc8g

CARVALHO, F. O. de. The historical phonology of Paunaka (Arawakan). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.2, pp.405-428. ISSN 1981-8122. [viewed 29 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000200008. Available from: http://ref.scielo.org/f6gyp2 

FREITAS, M. F. P. and FACUNDES, S. S. Considerações sobre a posse nominal em Apurinã (Aruák). Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2018, vol.13, n.3, pp.645-662. ISSN 1981-8122. [viewed 29 November 2018]. DOI: 10.1590/1981.81222018000300009. Available from: http://ref.scielo.org/tfykqy

Links de interesse

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas – BGOELDI: www.scielo.br/bgoeldi

Dossiê “Variação em Línguas Tupi”: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1981-812220150002&lng=en&nrm=iso

Boletim: www.editora.museu-goeldi.br/humanas

Boletim no Issuu: www.issuu.com/bgoeldi_ch

Boletim no Facebook: www.facebook.com/boletimgoeldiCH

Sobre Ana Vilacy Moreira Galúcio

Doutora em Linguística pela University of Chicago. Atualmente é pesquisadora titular do Museu Paraense Emilio Goeldi, professora do Programa de Pós-graduação em Letras: Linguística e Estudos Literários (Mestrado e Doutorado), da Universidade Federal do Pará. Dedica-se à descrição, análise e documentação de línguas indígenas, com ênfase em documentação linguística e cultural, linguística histórica, morfossintaxe, fonética e fonologia, estudos do tronco tupi, especialmente das línguas das famílias Tupari e Puruborá. E-mail: [email protected]

Sobre Fabrício Gãtagon Surui

Bacharelado e Licenciatura em Ciências Biológicas pela Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal, Rondônia. Interesse em ecologia de primatas Amazônicos e conservação in situ das espécies, com ênfase em Ecologia. E-mail: [email protected]

Sobre Hein van der Voort

Doutor em Linguística pela Universidade de Leiden. Atualmente é pesquisador titular do Museu Paraense Emílio Goeldi. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Teoria e Análise Linguística, atuando presentemente nos seguintes temas: línguas indígenas do Brasil, descrição e comparação linguística, documentação linguística e etno-histórica. E-mail: [email protected]

VER ARTIGO NA ÍNTEGRA: Ciência colaborativa mantém línguas indígenas vivas

Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas.

Jimena Felipe Beltrão
Editora Científica – Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas