O repórter-cinematográfico Francklin Moura viajava de carro na manhã de domingo, 13 de janeiro, pela rodovia federal BR-174 (Boa Vista-Manaus), quando viu no acostamento da estrada uma carcaça de uma onça-pintada, o maior felino das Américas. O cinegrafista, junto com o filho e um primo, fazia o percurso entre as localidades de Rorainópolis e Vila Equador, em Roraima. “Ela estava (a onça) jogada no acostamento, então eu voltei e parei”, contou Francklin à Amazônia Real.

Só no trecho 125 quilômetros da rodovia, no entorno da terra indígena Waimiri Atroari, foram mortos 1.280 animais por atropelamentos de veículos no ano de 2018 (Foto: Francklin Moura) – Publicada em: Amazônia Real

“Eu não tinha visto que estava com a cabeça e as patas dianteiras cortadas”, descreve o cinegrafista sobre o crime ambiental.

Ao achar a onça decapitada na rodovia, Francklin fez duas fotos com o aparelho celular e as divulgou pelo Facebook. “Triste cena na BR-174. Encontramos esse animal jogado no acostamento. Onça-pintada decapitada, que quem fez isso seja punido”, escreveu o cinegrafista em sua rede social.”

No dia seguinte, segunda-feira (14), as imagens de Francklin foram publicadas em jornais e agências de notícias de Manaus, dando visibilidade à matança por atropelamentos de animais silvestres na rodovia.

A onça-pintada (Panthera onca) é considerada uma espécie Vulnerável (primeiro grau de ameaça) na Amazônia (primeiro grau), conforme o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Matar o animal é um crime ambiental (Lei n.º 9.605 de 12 de fevereiro de 1998).

A BR-174 tem uma extensão de 769 quilômetros, ligando o Amazonas à Venezuela. Um trecho de 125 quilômetros corta a Terra Indígena Waimiri-Atroari. Os indígenas, que se autodenominam Kinja, monitoram a estrada com o apoio de um projeto da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), justamente para proteger os animais silvestres. Segundo o levantamento dos Waimiri-Atroari, 1.280 animais morreram atropelados por veículos neste trecho da rodovia em 2018.  Entre os animais mortos estão quatro onças (Leia mais abaixo).

A agência Amazônia Real procurou a Polícia Rodoviária Federal (PRF) para saber se a instituição obteve informações sobre o possível motorista que matou a onça-pintada na BR-174 no último domingo. A assessoria de imprensa da PRF respondeu não ter informações sobre o crime ambiental. A onça decapitada apareceu entre os quilômetros 390 e 360 da rodovia, em Roraima. Mas nesta localização da estrada, a PRF não encontrou a carcaça do animal.

O cinegrafista Francklin Moura acredita que a onça-pintada tenha sido atropelado por um caminhão, pouco tempo antes de encontrá-la estendida na estrada e tirar as fotos, por volta das 10h40 da manhã de domingo. Ele contou que não havia urubus, pois a carne do bicho ainda estava vermelha e ainda não havia enrijecido. No asfalto, viu um rastro de sangue e nenhum sinal de freada. “Deve ter sido um caminhão que atropelou, porque se fosse um carro pequeno tinha quebrado toda a frente dele”, acredita ele.

No trajeto, Francklin encontrou outros animais mortos na pista. Um jacaré, duas cobras, uma preguiça. “Na onça eu parei porque é caso inusitado. Mas animais mortos, daqui (Manaus) para Boa Vista, tu achas, com facilidade. E o pessoal fala da reserva, não tem nada a ver com reserva, tudo fora da reserva, no lado de Roraima”, recorda.

O biólogo Rogério Fonseca, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador do Observatório de Imprensa de Ataques de Onças (OIAA Onça), um projeto que monitora ocorrências de conflitos envolvendo grandes felinos, também crê que a onça-pintada tenha sido vítima de atropelamento por um veículo grande. “O veículo que colidiu com esse animal é de uma caminhonete para cima, porque a estrutura óssea ficou com muitas fraturas expostas visíveis na fotografia”, afirma.

Ele não acredita que a onça-pintada tenha sido vítima de caçadores e que a cabeça e as patas tenham sido retiradas por alguém que encontrou o animal já morto.

“O animal ter sido caçado e jogado na beira da pista seria desproporcional. Depois de caçar um animal para finalidade comercial de couro ou pata, seria bobagem expor ele ao público ali, na beira da pista”, completa o biólogo. As amputações foram feitas por alguém que, na opinião dele, estava em um veículo grande o suficiente para ocultar a ação de quem passasse pela rodovia, como uma carreta.

Carcaça poderia ajudar em pesquisas

Onça-pintada encontrada decapitada na BR-174 (Foto: Francklin Moura) – Publicada em: Amazônia Real

O professor Rogério Fonseca lamenta que a carcaça da onça-pintada não tenha sido recuperada, para que fosse aproveitada para fins científicos. O biólogo explica que é possível obter muitas informações importantes sobre as espécies, ao analisar carcaças encontradas nas estradas. Ele cita como exemplo, o ecologia alimentar, possíveis doenças que acometeram o animal, especialmente que tenham sido transmitidas por bichos domésticos.

“A gente consegue um registro profundo da vida do animal, podendo fazer a autopsia, necropsia, biópsia completa”, destaca. “Consegue saber se a causa mortis foi mesmo atropelamento ou não. Como a gente viu recentemente uma onça no final do ano passado, com chumbo”, destaca.

Ele se refere a uma onça-pintada macho, encontrada morta em novembro do ano passado, na estrada que liga a BR-174, a 128 quilômetros de Manaus, perto da sede do município de Presidente Figueiredo (AM). Foram encontrados pedaços de chumbo no animal.

O professor da Ufam explica que a Instrução Normativa número 03, de 2014, que ainda está vigente, que trata de aproveitamento de animais atropelados para finalidade científica. Ela autoriza que qualquer pessoa possa fazer o transporte de animais encontrados mortos em estradas até uma instituição de pesquisa. A legislação diz que, quando possível, é preciso fazer um boletim de ocorrência, para apresentar em caso de fiscalização.

Rogério Fonseca admite, porém, que a maioria das pessoas prefere não se arriscar a ter de dar explicações para as autoridades. “O que eu aconselho sempre principalmente àquelas que trafegam nas nossas rodovias aqui na região amazônica, é que comunique onde está o animal à autoridade policial rodoviária, para que eles façam a retirada. Quando é um animal do porte de uma onça ou uma anta, eles fazem o descolamento e retiram o animal da pista e dão destinação para instituições de pesquisa”, orienta.

Monitoramento desde 1997

A onça-pintada no Zoo do Goeldi, no Pará (Foto: Paula Sampaio/MEG) – Publicada em: Amazônia Real

Segundo o monitoramento dos Waimiri-Atroari, com o apoio da Ufam, animais mortos por atropelamentos de veículos no trecho de 125 quilômetros da rodovia que corta o território indígena já somam mais de 12,8 mil desde 1997, quando eles iniciaram o trabalho.

Nos últimos três anos, conforme o levantamento, 16 grandes felinos (onças-pintadas, onças-pardas e jaguatiricas) foram atropelados por veículos neste trecho da estrada. Mas as principais vítimas são cobras, mucuras, pacas e sauins, de acordo com os dados.

“Eles fiscalizam seis dias por semana, percorrendo aquele trecho, recolhendo lixo, fazendo anotações e retirando os animais atropelados”, conta o biólogo Marcelo Gordo, professor da Ufam. A Universidade já cedeu aos índios dois freezers, para que animais sejam mantidos e encaminhados para estudos científicos.

Gordo conta que os dados obtidos pelo monitoramento indígena já ajudaram a descobrir, por exemplo, que muitas espécies atravessam o asfalto onde ele corta cursos de água, como igarapés. Espécies que dependem diretamente da água, como jacarés, tartarugas, sapos e cobras, além de mamíferos como ariranhas, lontras, capivaras e pacas, são vítimas de atropelamentos principalmente nestes locais.

“Notamos também que a alta velocidade é um determinante para atropelamentos, além do número de veículos que transitam pela rodovia”, ressalta Marcelo Gordo. “Quando a rodovia está ruim, ocorrem menos atropelamentos. Os carros têm que reduzir a velocidade por conta dos buracos”. Ele recomenda que sejam instalados redutores de velocidade, para reduzir o risco de atropelamentos.

Os pesquisadores da Ufam recomendaram também que as copas de árvores se unissem sobre vários trechos da rodovia, criando túneis para a passagem dos carros. A medida permite que animais arborícolas, como macacos e quatis, atravessem a rodovia sem descer para a pista.

Ele destaca que a taxa de mortes de animais por atropelamento durante a noite é entre 50 e 100 vezes maior do que durante o dia. De acordo com Marcelo Gordo, embora a terra indígena permaneça fechada durante a noite (das 18h às 6h, quando podem passar apenas ônibus interestaduais, ambulâncias e caminhões com carga perecível), os carros que passaram pela barreira pouco antes das seis da tarde ainda estão dentro da reserva quando escurece, aumentando a taxa de mortes.

Os dados do monitoramento indicam que 64 onças, das três espécies, já morreram atropeladas no entorno da Terra Indígena Waimiri, desde 1997. O professor da Ufam cita ainda que já foi registrado até o atropelamento de um gavião-real, uma ave que normalmente prefere a copa das árvores. “Provavelmente, desceu para pegar alguma carcaça de animal morto e foi atropelada”, acredita Marcelo Gordo.

Símbolo do Brasil em risco

Uma onça-pintada em seu habitat natural na Reserva Mamirauá (Foto: Amanda Lelis) – Publicada em: Amazônia Real

Onça-pintada é símbolo nacional da biodiversidade no Brasil e tem uma data comemorativa no calendário nacional desde 2018. O Dia Nacional da Onça-Pintada é comemorado no dia 29 de novembro. Nesta data o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) promove eventos para unir esforços em ações de divulgação sobre a importância ecológica, econômica e cultural da espécie

Segundo o site ((o)) Eco, a onça-pintada é o maior felino das Américas e, como predador de topo de cadeia em um mundo cada vez mais desmatado, está ameaçada. “Embora a onça-pintada (Panthera onca) não esteja classificada como ameaçada na lista internacional, ela é considerada uma espécie Vulnerável no Brasil (primeiro grau de ameaça), conforme o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)”. Mas seu status de conservação varia em diferentes biomas. No Cerrado, é considerada Em Perigo. Na Caatinga e na Mata Atlântica, a situação dela é bem mais preocupante, a espécie está Criticamente Ameaçada de extinção. Em 2016, a Justiça Federal proibiu o Exército brasileiro de expor animais silvestres – em especial a onça-pintada – em eventos cívicos-militares sem a devida autorização por parte dos órgãos ambientais.

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