Manaus (AM) – Poucas horas após tomar posse como presidente do país, Jair Bolsonaro (PSL) assinou uma Medida Provisória (MP) tirando da Fundação Nacional do Índio (Funai) a competência do processo de demarcação das terras indígenas e transferindo para o Ministério da Agricultura, comandada pela ruralista Tereza Cristina. Embora esperada, a MP 870 veio mais rápido do que previam as lideranças indígenas. Durante a campanha presidencial, Jair Bolsonaro declarou, em diferentes momentos, de que não daria “nem um centímetro a mais de terra indígena”.
Nesta quarta-feira (02), Bolsonaro assinou outra MP, desta vez retirando da Funai a atribuição do licenciamento ambiental de obras que afetam as terras indígenas. A decisão agora cabe à Secretaria de Assuntos Fundiários, comandado por Luiz Antonio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (URD).
Dinamam Tuxá, vice-coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), principal organização indígena do país, disse que a medida é a “institucionalização do genocídio” e o “aval declarado do Estado para a violência nas aldeias”. Dinamam contou que ainda havia expectativa de que a ameaça não se concretizasse, mas a decisão mostrou que Bolsonaro vai entregar a política indigenista para os ruralistas.
“O Ministério da Agricultura está contaminado. A ministra é uma líder ferrenha do agronegócio. Há muito templo o agronegócio vem pleiteando a paralisação das terras indígenas, o que já vinha acontecendo nos últimos anos. Agora, migrando para o Ministério da Agricultura, liderada pela bancada do agronegócio, que vem fazendo lobby no Congresso Nacional, sabemos que de fato não haverá qualquer demarcação de terra. Isso irá acarretar aumento de violência nas aldeias e desmatamento nos territórios”, disse Dinamam Tuxá.
O líder indígena destacou que com a pressão sobre as terras indígenas também vem o desequilíbrio ambiental e o aumento do aquecimento global.
“Este governo milita contra os direitos dos povos indígenas e vem com esse viés genocida. Voltamos a estaca zero, ao Brasil de 1500, quando nos massacraram e tomaram nossos territórios. Estamos cientes que dias difíceis virão, que a violência irá imperar, mas vamos lutar e resistir. A sensação é de insegurança, mas também de luta, porque os indígenas resistiram e vamos resistir os próximos quatro anos”, afirmou Dinamam Tuxá à Amazônia Real.
No final da tarde desta quarta-feira (02), a ABIP divulgou uma nota recomendando as organizações indígenas de todos os Estados organize o ingresso de uma ação popular pedindo judicialmente a nulidade da Medida Provisória. Na nota, a APIB pede que a ação seja para anular “os atos praticados pelo presidente Jair Messias Bolsonaro que destroem praticamente toda a política indigenista brasileira”.
Indígenas são contra política integracionista
A liderança indígena da região do Alto Rio Negro, no Amazonas, André Baniwa, disse à Amazônia Real que a decisão de Bolsonaro é o resgate de uma política que visa exterminar a população indígena. Ele lembra que este tipo de política de Estado já foi adotado no passado e ajudou a extinguir muitos povos.
“Ele está retomando um modelo de extinção. Está colocando em prática isso. O que vamos fazer é reagir ao que está acontecendo”, disse o André Baniwa, presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana. Na noite desta quarta-feira, ele divulgou uma carta pública contra as medidas de Bolsonaro, junto com outras duas lideranças, Marcos Apurinã e Bonifácio Baniwa.
Diz a carta: “Já fomos dizimados, tutelados e vítimas de política integracionista de governos e Estado Nacional Brasileiro, por isso vimos em público afirmar que não aceitamos mais política de integração, política de tutela e não queremos ser dizimados por meios de novas ações de governo e do Estado Nacional Brasileiro. Esse país chamado Brasil nos deve valor impagável senhor presidente, por tudo aquilo que já foi feito contra e com os nossos povos. As terras indígenas têm um papel muito importante para manutenção da riqueza da biodiversidade, purificação do ar, do equilíbrio ambiental e da própria sobrevivência da população brasileira e do mundo”, diz trecho da carta (leia o documento na íntegra).
Marcos Apurinã, liderança indígena da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Rio Purus, cobrou uma atuação mais concreta dos órgãos do judiciário, especialmente o Ministério Público Federal e a Procuradoria Geral da República.
Ele também enfatizou a necessidade das organizações indígenas estarem preparadas para reagir à MP da demarcação e outras que poderão vir e que se organizem em mobilizações. Segundo Marcos Apurinã, a retirada do processo de demarcação da estrutura da Funai é um dos maiores ataques que os povos indígenas sofreram nas últimas décadas.
“Eu nunca vi os nossos direitos em situação tão vulneráveis e tão ameaçados quanto neste momento. Uma instituição criada há mais 50 anos [Funai], hoje é destruída por este governo. O mundo indígena desaba. É muito triste ver isso. Esta MP de é um projeto maligno. No mesmo dia da posse, o presidente já assina a sentença contra os povos indígenas. Isso é destratar a Carta Magna”, disse ele.
Marcos Apurinã lembra que os territórios indígenas são originários e sagrados e que o ataque a eles é um desrespeito aos ancestrais das populações nativas.
“Nossos direitos hoje foram conquistados por quem estava lá atrás. Não seremos nós que vamos jogar a toalha. Mas é necessário que os órgãos também nos apoiem. Precisamos de apoios de aliados, dos parceiros, da PGR”, disse.
ABIP diz que indígenas defenderão seus os territórios
Na sua nota, a APIB destacou que “já no seu primeiro dia de governo, Bolsonaro deixou claro seu compromisso com o que há mais atrasado no Brasil”.
A nota completa: “Bolsonaro e os coronéis da Bancada Ruralista sabem que para colocar mais terras no mercado, vão precisar inviabilizar a demarcação das terras indígenas, quilombolas, assentamentos de reforma agraria e unidades de conservação. Mas também sabem que o mundo tende para um novo modo de produzir e consumir, e que não vamos hesitar em denunciar esse governo e o agronegócio nos quatro cantos do mundo, denunciando e exigindo, a adoção e o respeito às salvaguardas sociais e ambientais, necessárias ao fiel cumprimento de nossos direitos constitucionais. Estamos preparados, não vamos recuar, nem abrir mão dos direitos conquistados, e muito menos entregar nossos territórios para honrar o acordo entre Bolsonaro e seus coronéis.”
Nesta quarta-feira (02), Jair Bolsonaro divulgou em sua conta no Twitter uma declaração mostrando que tem intenções de “integrar” os indígenas, resgatando assim uma antiga política de Estado para os indígenas que foi substituída nas novas diretrizes da Constituição de 1988. Ele também fez críticas às Ongs (Organizações Não-Governamentais) sem especificar de que maneira elas atuam.
“Mais de 15% do território brasileiro é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por Ongs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”, disse Bolsonaro na sua conta do Twitter.
Indígena Xavante rebate Bolsonaro
Articuladora política da Namunkurá Associação Xavante (NAX), Ro’otsitsina Xavante contestou e repudiou a justificativa integracionista de Bolsonaro. Em sua rede social ela publicou: “Não estamos isolados, pois nossos ancestrais foram obrigados a se integrar durante a colonização. Os povos que estão em isolamento voluntário enfrentam sim a exploração, mas não das Ong’s e sim de um sistema agropecuário e agricultura forçada, chegando com a extração de madeira ilegal, pela cobiça de governantes como o presidente, entre outras invasões”.
Para Ro’otsitsina, se Bolsonaro tivesse intenção de valorizar os indígenas, não teria tirado a competência do processo de demarcação de terras indígenas da Funai.
“Se ele estivesse preocupado, não estaria violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre consentimento livre, prévio e informado sobre todas as ações que venham atingir diretamente ou indiretamente nossos Direitos Humanos aos Povos Indígenas. Hoje é 2 de janeiro e ainda virão muitas coisas adiante, infelizmente”, disse ela. Ro´stsitsina, que autorizou a Amazônia Real republicar seu post nesta matéria, é da aldeia Namunkurá, na Terra Indígena São Marcos, localizada no cerrado mato-grossense.
Procurada pela reportagem, a Procuradoria-Geral da República (PGR) respondeu através da assessoria de comunicação o seguinte: “Todas as medidas anunciadas pelo governo serão analisadas pelas respectivas áreas do Ministério Público, mas neste momento, não podemos adiantar posicionamento. Estamos em contato com a coordenação da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão e qualquer novidade em relação a este assunto, entraremos em contato”. A 6ª Câmara da PGR é responsável pela atenção às demandas das populações indígenas e comunidades tradicionais.
O Ministério da Agricultura também foi procurado pela Amazônia Real para saber como se dará o processo de demarcação em sua pasta e se seguirá os procedimentos adotados pela Funai. Até a publicação desta matéria, a assessoria de imprensa não respondeu.
Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo, a ministra Tereza Cristina disse que “as demarcações serão discutidas em um conselho interministerial que o governo irá criar”. O secretário de assuntos fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia, afirmou que o conselho terá representantes dos ministérios Agricultura, Mulher, Família e Direitos Humanos, Meio Ambiente, Casa Civil e Gabinete de Segurança Institucional.
Portaria da AGU dificultou demarcação
As barreiras contra a demarcação de terras indígenas não é são de agora. Uma das últimas medidas para dificultar o processo foi o Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), que passou a adotar norma do marco temporal, uma tese apoiada por ruralistas que afirma que somente terras ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, podem ser consideradas originarias dos povos indígenas.
O parecer, embora criticado por indígenas e repudiado pelo MPF, foi mantido. Na prática, isso dificultou a regularização fundiária a partir de então. Durante o governo de Michel Temer, apenas uma terra foi homologada, Baía do Guató, no Mato Grosso. No entanto, a homologação foi suspensa pelo juiz federal Leão Aparecido Alves, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Outras duas terras indígenas estão na gaveta, apenas aguardando a assinatura do presidente da República para a homologação: Rio Gregório, com 187.125,21 hectares, dos povos Yawanawá e Katukina, no Acre; e Uneiuxi, com 554.730,41 hectares, dos povos Maku e Tukano, no Amazonas. No entanto, o número de terras indígenas em diferentes estágios de processos demarcatórios soma mais de 200.
Segundo a Funai, as terras indígenas ocupam 12,2% do território nacional. A maioria (mais de 90%) se concentra na Amazônia Legal.
FONTE: AMAZÔNIA REAL
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