Univaja quer que sejam identificadas as pessoas que atiraram contra base da Funai que atende indígenas isolados.
A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) cobrou das autoridades do governo federal e do Judiciário providências “enérgicas e efetivas” para inibir “novas investidas criminosas contra os povos isolados, dos índios de recente contato e das comunidades” da Terra Indígena Vale do Javari, que fica no município de Atalaia do Norte, na fronteira do estado do Amazonas com o Peru. Segundo a nota divulgada na última quinta-feira (27) pela organização, as declarações públicas do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) “têm motivado diversos invasores a investir contra a terra indígena de forma muito mais organizada e sistemática com o objetivo de caçar e pescar de forma predatória”.
A exigência dos indígenas é direcionada especificamente à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Ministério Público Federal, à Polícia Militar e à Justiça Federal.
Na madrugada do último dia 22, conforme a Polícia Militar do Amazonas, invasores atacaram a tiros uma das três bases de proteção de índios isolados da Funai na TI Vale do Javari. O ataque à base Ituí-Itacoaí foi revidado por policiais militares que davam apoio aos servidores da fundação, entre eles indígenas da etnia Matís. A área é moradia dos indígenas isolados Korubo, mas também há comunidades de índios Kanamari.
“Queremos que haja investigação para identificar quem são essas pessoas que costumam atacar, quem são os chefes, de onde esses infratores são. Se isso não acontecer, os ataques vão se repetir com mais frequência. Recentemente, assaltaram uma balsa da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) no porto de Atalaia do Norte. Levaram equipamentos e não sabemos que providências tomaram”, disse Paulo Marubo, presidente da Univaja, à Amazônia Real.
A Univaja representa as organizações e os povos da Terra Indígena Vale do Javari: Kanamari, Kulina, Marubo, Mayoruna, Korubo, entre outros grupos isolados.
Paulo Marubo disse que o ataque não pode ficar impune nem cair no esquecimento ou até mesmo ser negado pelas autoridades, a exemplo do que ocorreu em contextos semelhantes em outros anos.
“Quando os órgãos públicos não tomam providências, os infratores ficam sabendo e acham que podem continuar invadindo a terra indígena. Eles se acostumar a fazer isso porque sabem que nada vai acontecer e ainda nos ameaçam”, disse ele.
Paulo Marubo revelou que em 2017, após as denúncias de que teria acontecido um massacre de índios isolados conhecidos como Flecheiros por garimpeiros na região do rio Jandiatuba, também na TI Vale do Javari, passou a receber ameaças anônimas. Marubo foi uma das lideranças indígenas que reforçaram repetidas vezes que as mortes aos Flecheiros aconteceram. Após as denúncias e a repercussão do caso, a Funai informou que faria uma investigação, mas as mortes não foram confirmadas pelo órgão indigenista. O MPF, por sua vez, arquivou o inquérito policial por falta de provas.
“Nessa época da denúncia sobre as mortes dos índios do rio Jandiatuba recebi muitas ligações anônimas, de números privados. Queriam saber quem eu era, onde morava, para onde eu ia viajar. Acho que eram os garimpeiros. Isso pode acontecer de novo. Se eu ficar falando muito corro risco. Por isso vivo escondido”, disse ele, que não chegou a formalizar denúncia sobre as ameaças, preferindo apenas contar à sua família e amigos.
“Sobre o caso de Jandiatuba, fizemos o nosso papel, que foi denunciar. Se fizeram investigação e nada encontraram, eu já não sei o que dizer. O local é distante, de difícil acesso, não sabemos como foi a investigação. Mas espero que outros casos não sejam arquivados, pois acaba beneficiando os infratores”, disse ele.
Intitulada “Terra Indígena do Vale do Javari já revive os tempos de conflito sangrento dos anos 70”, a nota do Univaja destaca também que a maior parte do contingente de pessoal nas bases de vigilância da Funai na TI Vale do Javari é indígena devido ao número inexpressivo de servidores do órgão. “Isso significa que caso tivesse acontecido algo mais grave com um desses indígenas [durante o ataque do dia 22], as aldeias iam reagir. Há uma iminência de conflitos violentos nessa região, pois nos últimos dois incidentes, os invasores chegaram a atirar na direção dos indígenas”, diz a nota.
Polícia Militar envia reforços para a terra indígena
Até o momento, a única providência anunciada pela Funai sobre o ataque à base Ituí-Itacoaí foi o pedido de reforço policial para a área e apoio do Exército. Procurada pela reportagem, a Funai não informou se pediu investigação dos órgãos policiais.
Na última quarta-feira (26), cinco policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Amazonas seguiram de Manaus para o Alto Solimões e seguiram para Atalaia do Norte, segundo informou o Major Marlon Gomes, comandante do 8º Batalhão da Polícia Militar de Tabatinga. Eles se juntaram a outros seis policiais militares lotados em Tabatinga.
A assessoria de imprensa do Comando Militar da Amazônia (CMA), órgão vinculado ao Ministério da Defesa, confirmou que recebeu solicitação da Funai e respondeu o seguinte para a Amazônia Real: “Por se tratar de uma questão de Segurança Pública, o assunto está sendo gerenciado pelo Comando Geral da Polícia Militar do Amazonas”. Apesar das perguntas da reportagem, a assessoria não informou se o CMA enviou soldados do Exército para a base da Funai.
A assessoria da Polícia Federal respondeu que, até o momento, não chegou nada oficial [pedido de investigações] nas dependências da Superintendência no Amazonas sobre o caso.
Já a Polícia Civil do Amazonas disse, através da assessoria, que o ataque, embora tenha sido confirmado pela Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de Atalaia do Norte, não foi registrado pela Funai na unidade policial. Também não foi feito Boletim de Ocorrência na delegacia de Tabatinga e nem em Benjamim Constant, ambos municípios localizados no Alto Rio Solimões e vizinhos de Atalaia do Norte.
Procurado, o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas informou através da assessoria de imprensa que encaminhou ofício à Funai solicitando informações sobre as providências já adotadas pela fundação, em relação ao caso, e sobre a prestação de apoio por parte de outros órgãos, como Exército e Polícia Militar. “O MPF aguarda a resposta da Funai para análise sobre eventual adoção de outras medidas, caso necessário”, afirma o MPF.
Sobre o assalto na balsa da Sesai mencionado por Paulo Marubo, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde confirmou à Amazônia Real e disse que foi que foi feito boletim de ocorrência pela coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari, registrado na 50ª Delegacia Interativa de Polícia, em Atalaia do Norte (AM), no dia 30 de novembro.
Segundo a assessoria, três homens renderam e agrediram o vigilante da balsa e levaram um motor 60HP Yamaha e dois motores 15HP Yamaha, de propriedade da Sesai; um motor 225HP Yamaha, de propriedade da Funai; um motor 40HP Yamaha, de propriedade do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); um bote de alumínio de sete metros; a arma do vigilante; e cerca de 500 litros de gasolina. “A investigação do caso fica a cargo da polícia. A Sesai já está elaborando um processo de compra emergencial para reposição dos equipamentos”, disse nota do Ministério da Justiça.
Declarações incentivam invasões
O sertanista Sydney Possuelo, que fez o primeiro contato com o povo indígena isolado Korubo em 1996, concedeu uma entrevista à Amazônia Real para falar sobre o ataque à base da Funai na TI Vale do Javari. Ele atribui às declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), o incentivo às invasões.
“Quando o próprio governo demonstra interesse de tornar a terra indígena uma área para atividades financeiras é como se estivesse fazendo uma pregação. Não que ele esteja incentivando o ataque, mas é uma consequência do comportamento deste governo no que se refere aos indígenas, ao dizer que não vai mais respeitar as terras, que não vai mais demarcar. O que o governo deve fazer é vir e mostrar a importância e a contribuição das terras indígenas para a preservação da floresta, dizer que vai auxiliar na proteção deles”.
Possuelo se mostra pessimista com relações às investigações para responsabilizar os criminosos. Ele afirmou que acha pouco provável que ocorra uma investigação profunda sobre o ataque à base do rio Ituí-Itacoaí. Isso se for levado em conta outros episódios que já aconteceram na região e também não foram investigados ou não tiveram os inquéritos concluídos.
“Se eu olhar o passado, acho que não vai dar em nada. Houve uma situação em que três índios Korubo foram mortos. A PF retirou os corpos. Depois fez o inquérito, o processo rolou, passaram-se quantos anos e não aconteceu nada. Foi um caso mais grave, porque houve mortes. E agora, também pode não acontecer nada”, disse ele, que defende o porte de armas para os servidores da Funai como forma de proteção, como já acontece com os servidores públicos do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis).
Sobre o ataque à base da Funai, ele conta que não é a primeira vez que acontece na Terra Indígena Vale do Javari, embora o contexto político do país atualmente tenha contribuído para o recrudescimento das ameaças. Os casos são inúmeros e ele próprio já foi ameaçado na base, quando estava acompanhado pelo ex-superintendente da PF, delegado Mauro Spósito. “Eram 320 pescadores que nos ameaçam. Estavam todos armados, queriam invadir. Tivemos que ter muito diálogo e proteção”, disse.
Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, Sidney Possuelo foi também o criador da Coordenadoria Geral de Índios Isolados da Funai, onde ficou à frente até o ano de 2006. Atualmente, este órgão tem a denominação Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC). O sertanista já realizou expedições de proteção aos povos isolados que remonta várias décadas. Até hoje, mesmo afastado da Funai, mantém atuação na área.
No mês passado, ele viajou até a Base Ituí-Itacoaí para iniciar um novo projeto de apoio à vigilância em convênio com o órgão indigenista. Possuelo deve voltar em janeiro para a área. Ele contou que, através de sua organização Instituto Indigenista Brasileiro e recursos internacional, vai ajudar recuperar equipamentos de monitoramento, radiocomunicação, transporte, combustível, etc. “Isso vai ajudar para que possamos somar e reforçar a proteção dos indígenas”, disse.
O indigenista Armando Soares coordenou entre 2002 e 2005 a Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Hoje aposentado da Funai, ele é intransigente na defesa de investigação sobre o ataque à base Ituí-Itacoaí. Ele se diz “indignado” com ao ataque e afirma ser uma “tremenda covardia continuar deixando os povos indígenas à mercê dos invasores”.
Pelo seu conhecimento sobre o território, Armando Soares acredita que os invasores entram no Vale do Javari usando como abrigo e base de apoio comunidades ribeirinhas que ficam na divisa da terra indígena.
“Pela minha experiência, são invasores que vêm de Benjamim Constant, de Atalaia do Norte ou de outras comunidades. Eles se instalam na comunidade mais próxima e de lá fazem a entrada. No período de chuva, os lagos formam furos que permitem eles passarem direto para terra indígena. Fazem a pescaria e retornam para a comunidade [ribeirinha]. Por terra também há caminhos feitos. Se neste caso específico do ataque eles fugiram pela mata, não há outra alternativa a não ser ir para uma comunidade”, disse.
Soares também disse que lhe causa estranheza que até o momento não foi noticiado nenhuma de investigação para chegar aos criminosos.
“Tem que fazer uma investigação para saber quem está agindo dessa forma. Juntando munição em grande quantidade para atirar na base. Isso é muito grave. É um patrimônio do Estado brasileiro. Tem que ser defendido. Imagina se o patrimônio vai ser assim ultrajado com ataques de tiros. Estou surpreso que até agora não ter sido anunciado nada de investigação”, afirmou.
O indigenista também afirma que os povos indígenas vivem “momentos difíceis” em decorrência do posicionamento do novo governo do país.
“Isso está dando margem para as pessoas que têm interesse nas terras indígenas possam invadir e ameaçar. Está tirando toda a segurança que a gente passou muitos anos construindo. Todo esse trabalho de que os povos indígenas têm proteção do Estado, que o Estado promove e defende os direitos dos povos indígenas, está sendo jogado por terra. Por mais que não tenha sido com grande profundidade, a gente conseguiu colocar para as comunidades próximas que os índios têm garantia do Estado de que vai proteger o território. Já a ideia que esse governo mostra é que o Estado não vai chegar mais [nas terras indígenas]”, disse Armando Soares.
Por: Elaíze Farias
A foto que abre esta reportagem mostra a balsa da base flutuante de fiscalização da Funai da confluência dos rios Ituí-Itacoaí, TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
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