A geopolítica é madrasta da Amazônia. Mesmo antes de existir, como fonte de uma visão contemporânea de mundo, teorias conspirativas ou fabulistas caracterizaram uma maneira de encarar a região.
Os primeiros colonizadores (e colonialistas) europeus transplantaram amazonas da mitologia grega para o mar Dulce, vendo-as atirar flechas contra seus barcos enquanto cavalgavam sobre pântanos marginais ao rio.
Mitos e lendas à parte (mas ainda em voga), os desatinos e desconfianças tinham por base a grandeza da região (ocupando no continente o tamanho da Europa Ocidental), sua complexidade (e diversidade física) e o domínio da floresta sobre o homem, com a presença de uma gota de água num mar verde.
Como a floresta não era um elemento de domínio dos conquistadores (e ainda é secundária, a despeito do avanço da ecologia), desde então um conceito foi fortalecendo a interpretação geopolítica da região: a noção de espaço vazio. Para torná-lo humano, seria necessário substituir o espaço vago, incluindo as terras florestadas, pela presença humana.
O ritmo e as características da ocupação e integração dos espaços vazios ao território brasileiro, dando-lhe o selo da soberania política, foram dados pelas forças armadas durante a ditadura militar. O grito de guerra dessa enorme operação, que engendrou uma das maiores expansões de fronteiras do planeta, foi “integrar para não entregar”.
Se o governo não levasse os agentes nacionais da soberania a todos os pontos, mesmo que a um preço elevado (em valor monetário e em valor simbólico), os estrangeiros, sempre cobiçosos (a cobiça internacional seria endemia amazônica), fazendo planos de anexar as áreas remotas da região, tomariam conta do seu território. Esse era um dos mandamentos sagrados da doutrina de segurança nacional, vigente durante mais de duas décadas, mas que não acabou com o fim do regime de exceção.
Ao assumir a presidência da república no alvorecer da redemocratização, em 1985, o maranhense José Sarney renovou a doutrina com o Projeto Calha Norte. As frentes pioneiras se desviariam da área central da Amazônia, se alongando pela linha de fronteira de nove mil quilômetros com os demais países regionais da América do Sul.
Essa diretriz foi seguida e ampliada pelos governos seguintes, de Collor a Temer, através do Projeto Sivam, que incorporou a tecnologia de ponta, através de satélites, à vigilância das fronteiras e das ocupações humanas na Amazônia. Os métodos indiretos passaram a prevalecer sobre a ação direta, por uma série de fatores, inclusive orçamentários.
Mas ficou na tradição geopolítica ameaças à integridade do território por guerrilheiros colombianos e peruanos, por governos considerados hostis, como os das guianas (a francesa ainda é uma possessão europeia de velho estilo, que abriga uma estação espacial da França), e os governos que seguiram tendência esquerdista inspirada nos ideais de liberdade de Simón Bolívar, como a Bolívia e a Venezuela.
Com todos os fantasmas das teorias sobre conspirações (como a iminente invasão de Roraima por cubanos infiltrados no governo da Guiana ex-inglesa, que se tornou uma febre nos anos 1980), o maior problema de fronteira na Amazônia, com os bolivianos, que engendrou combates de tropas, foi resolvido por uma prosaica operação de compra e venda pelo barão do Rio Branco, no início do século XX.
Não é, contudo, o que pensa o presidente eleito Jair Bolsonaro e o seu chanceler Ernesto Araújo. Reaquecendo a teoria dos espaços vazios, pretendem dividir a prioridade da ação oficial em favor da expansão das frentes econômicas nacionais tanto às terras devolutas quanto às reservas indígenas. Índio é considerado tão frágil – ou mesmo perigoso – quanto as florestas para servir de corredor para a invasão estrangeira.
O que estava em banho-maria deverá ser aquecido por um fogo ideológico e operacional que poderá desencadear um clima de tensão e confronto que contradiz o passado histórico de paz e desserve a um entendimento coletivo na região. Se isso ocorrer, será um dos mais danosos prejuízos à diplomacia brasileira e ao próprio Brasil – sem falar na Amazônia, é claro, muito citada e pouco compreendida.
FONTE: VER MAIS EM: http://amazoniareal.com.br/fogo-na-amazonia/
A imagem que ilustra este artigo foi feita em 2015 na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) – Comunidade Tamanduá (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)
Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Veja outros artigos do autor.
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