A séria crise de segurança pública, sanitária e humanitária deflagrada em Roraima pela enxurrada de refugiados venezuelanos que têm se dirigido ao estado fronteiriço, agravada nas últimas semanas, proporciona uma singular oportunidade de reflexão sobre o erro estratégico cometido por sucessivos governos brasileiros desde a década de 1990, sobre o desenvolvimento daquela unidade da Federação.  

De fato, se Roraima fosse um estado que pudesse desenvolver-se normalmente com um aproveitamento otimizado dos seus importantes recursos naturais e não tivesse grandes obstáculos à atração de investimentos de fora de suas fronteiras, principalmente, industriais, o impacto da presença de um número de refugiados equivalente a 10% da população local poderia ser consideravelmente mitigado.

Em vez disso, a realidade tem assumido tons dramáticos, com a já precária infraestrutura de serviços públicos completamente saturada e sobrecarregada por doenças trazidas pelos refugiados, como o sarampo (oficialmente erradicado do Brasil em 2001), e um número crescente de conflitos entre brasileiros e venezuelanos. Um dos mais graves ocorreu em 18 de agosto, em Pacaraima, onde uma multidão enfurecida destruiu um acampamento de refugiados, depois que mascarados identificados como venezuelanos assaltaram com violência e feriram um comerciante local, levando o governo federal a enviar à cidade 60 homens da Força Nacional de Segurança, na tentativa de impedir um agravamento da situação.

A dramaticidade do quadro é descrita sem meias palavras pelo padre Jesus López Fernández de Bobadilla, um espanhol de 77 anos que há nove comanda a paróquia de Pacaraima:

Isto aqui era um vulcão que não aguentava mais e entrou em erupção. São 3 mil a 4 mil pessoas morando nas ruas de uma cidade de 10 mil habitantes, sem banheiro, sem emprego. Estamos há dois anos alertando as autoridades e procurando aliviar o drama do povo venezuelano. Não justifico a reação dos brasileiros, e a xenofobia foi crescendo. Mas existe muito medo da violência, medo de ser assaltado, o hospital em condições muito precárias. O povo está ressentido, contrariado. A cidade ficou entregue (BBC Brasil, 20/08/2018).

O pouco caso do governo federal em relação ao drama criado pelos fugitivos do país vizinho reflete a atitude que todos os ocupantes do Palácio do Planalto, desde Fernando Collor de Mello (1990-92), têm demonstrado em relação a Roraima, convertido numa virtual oferenda sacrificial ao aparato ambientalista-indigenista internacional, com uma série de concessões que, simplesmente, inviabilizam qualquer tipo de atividade produtiva moderna no estado.

Tal atitude ficou evidenciada, por exemplo, pelo então ministro da Integração Nacional Fernando Bezerra, em uma visita a Boa Vista, em junho de 2010. Na ocasião, diante de queixas sobre a inviabilização do estado para um modelo de desenvolvimento baseado na agroindústria, devido à grande extensão das áreas de proteção ambiental e indígenas (que ocupam mais de 60% do território estadual), ele admitiu que “a população de Roraima está pagando o preço em função da necessidade nacional de respeitar o conceito de desenvolvimento sustentável… tem que ser considerado que o bioma da Amazônia é um dos mais importantes do planeta e esse seria um preço a se pagar (Folha de Boa Vista, 10/06/2010)”.

Ainda mais enfático e direto foi o já então ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que, em uma palestra na Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA), em maio de 2011, disparou: “O Brasil tem que cumprir compromissos internacionais assumidos para a proteção da natureza e minorias indígenas. Então, vocês de Roraima podem esquecer a ideia de se desenvolver utilizando os recursos minerais, hidráulicos e a produção agrícola. Roraima tem só 450 mil habitantes, se sobra apenas 6% da área, têm que pensar em outra forma de desenvolver o estado (Notícias Agrícolas, 11/06/2011).”

Efetivamente, desde Collor, com a demarcação em área contínua da Terra Indígena Yanomami, nenhum dos seus sucessores deixou de pagar tributos aos “compromissos internacionais”, em prejuízo dos interesses da população roraimense, não apenas pelo temor de enfrentar o aparato ambientalista-indigenista, mas também por conta dos recursos externos despejados por governos, organismos multilaterais e entidades privadas, para fins ambientais e indígenas, com os quais os doadores e seus agentes internos têm controlado a formulação das respectivas políticas setoriais.

Um exemplo bizarro é a linha de transmissão Manaus-Boa Vista, projeto concebido para encerrar o isolamento de Roraima do Sistema Interligado Nacional (SIN) e resolver de vez o problema do precário abastecimento de eletricidade do estado, dependente de antigas usinas termelétricas alimentadas a óleo combustível e da cada vez mais incerta importação de energia da Venezuela, cujo contrato, de qualquer maneira, vence em 2021.

A licitação para a obra foi vencida em 2011 pelo consórcio Transnorte Energia, constituído pela Eletronorte e a empresa privada Alupar, e ela deveria ter sido concluída no início de 2014, mas sequer foi iniciada, devido à oposição da Fundação Nacional do Índio (Funai), que tem instigado os indígenas waimiri-atroaris contra o projeto, já que dos 715 quilômetros da linha, 123 atravessam a Terra Indígena Waimiri-Atroari, no Amazonas. Mesmo diante do fato de que a linha seria construída ao longo da faixa de domínio da rodovia BR-174 e, por conseguinte, os impactos da construção seriam limitados e temporários, Brasília não demonstrou até agora qualquer intenção de contrariar o poderio dos indigenistas encastelados numa agência federal e nas ONGs que representam as “tropas de choque” do aparato internacional.

Como resultado, o consórcio entregou os pontos, devolveu a concessão à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e está cobrando judicialmente do governo uma indenização pelos investimentos feitos e os prejuízos decorrentes da não realização da obra.

Uma esperança surgiu com o agravamento da crise dos refugiados, pois, na reunião de emergência do presidente Michel Temer com vários ministros, em 20 de agosto, convocada após os incidentes de Pacaraima, decidiu-se, finalmente, avançar com o projeto do “Linhão”. Para acelerar o licenciamento socioambiental, este será dividido em três partes, uma delas referente à travessia da terra indígena. A expectativa da Eletrobras é de que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) libere a licença ambiental do primeiro trecho até o final de setembro (Canal Energia, 21/08/2018).

Agora, será uma corrida contra o tempo, uma vez que o contrato de fornecimento de energia venezuelana está a pouco mais de dois anos do fim e a dramática combinação de instabilidade política e crise socioeconômica no país vizinho aumenta consideravelmente os riscos dessa dependência.

De qualquer maneira, a crise pode e deve converter-se na proverbial oportunidade de uma reavaliação profunda das políticas de desenvolvimento e da leniência reverencial com que os governos brasileiros têm tratado o ambientalismo-indigenismo. É mais que hora de se pôr um fim a essa maldisfarçada forma de intervencionismo externo na formulação das políticas públicas nacionais. Roraima tem sido o estado mais prejudicado por essa ofensiva, mas o País inteiro se beneficiará da recuperação da soberania plena sobre a utilização dos seus recursos naturais e a ordenação física do seu território.

in Ibero-América 24 de agosto de 2018

FONTE:   VER MAIS EM; http://msiainforma.org/roraima-crise-e-oportunidade-para-corrigir-um-erro-estrategico/

 

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